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Paris ensanguentada

2 de abril de 2014
Paula Brügger
8 min. de leitura
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People say I’m crazy
Doing what I’m doing
Well, they give me all kinds of warnings
To save me from ruin

Watching the wheels, de John Lennon

Imagine passear pelas ruas de Paris e encontrar rastros de violência por toda parte. Ficção? Vestígios dos acontecimentos de um passado distante? Não, realidade hoje. É claro que tais sinais de violência, embora “rastreáveis”, não são diretamente visíveis, a não ser que você seja vegana.

O ano é 2014. É inverno na Europa. Observo as lapelas, golas e acabamentos de capuzes dos casacos de pessoas que andam pelas ruas, metrô, lojas. Fico estupefata e furiosa ao me deparar com tantos agasalhos – trajados sobretudo por mulheres – com adornos de pele verdadeira. E pior: há também casacos inteiros de peles de animais. Ainda que alguns adereços dessa moda padronizada, sem criatividade, sejam certamente de material sintético – e outros deixem margem à dúvida – muitos atestam claramente sua origem animal por exibirem características como a presença de sub-pelo, brilho sedoso, e o balanço elegante característico dos “materiais” que levam a marca de milhões de anos de evolução.

Amigos não afeitos, digamos, à causa animal dizem que estou louca – que não pode ser assim! Aconselham-me, tentam me chamar à “razão” (como no trecho de Watching the wheels, citado acima) e argumentam que focalizo em excesso no que eles chamam de detalhes. Dizem-me para ver apenas os olhos e não a remela deste mundo: por que não se deleitar, por exemplo, com as obras de arte dos incontáveis museus [1], ou a exuberante arquitetura parisiense? Mas detalhes assim o são dependendo da lente por meio da qual se observa o entorno. E, uma vez sentindo o entorno através de determinadas lentes, alguns “detalhes” nos tomam de assalto, quer queiramos ou não.

Assim é que, dos ombros de algumas mulheres com quem ficava lado a lado no metrô, era quase possível escutar os gritos de terror dos indefesos peludos, transformados em meras tiras decorativas. Era como se uma tecnologia 3D fizesse emergir – como pop-ups – as expressões de pânico nos rostinhos desses seres que permanecem tão invisíveis para os “urbanóides” do século XXI.

* * *

Anos 1970. Ativistas pelos direitos animais usam tinta spray de cor vermelha para danificar casacos de peles de pessoas que transitam pelas ruas de algumas metrópoles europeias. O intuito era – além de avariar as peças, em si – protestar contra a insensibilidade dos usuários em questão e dar visibilidade à causa. O vermelho simbolizava o sangue dos animais torturados em nome dessa vaidade cruel. Alguns grupos de ativistas também chegaram a aplicar uma versão inofensiva da tinta diretamente sobre as peles de animais vivos – como os bebês focas – com o propósito de inutilizar comercialmente suas peles [2], preservando assim suas vidas. Notícias sobre esses acontecimentos correram o mundo.

Na metade daquela década, um rápido episódio num frio dia de primavera londrina me marcou positivamente de forma indelével. Convivi por uma ou duas horas com um inglês que trajava um “casaco de pele” espesso, longo e muito vistoso. Seu nome era Andy. Ele era um músico, conhecido de um amigo meu também músico. O casaco parecia sintético, mas, na dúvida, perguntei a Andy se seu casaco era “verdadeiro”. Ele riu e respondeu: – claro que não! Está me achando com cara de assassino? Além do mais, eu jogo esse casaco na máquina de lavar e ele sai novo (arrematou ele, com ar zombeteiro, apontando para seu copo de cerveja)! O belo casaco de Andy era também tão quente que, por baixo, ele usava apenas um jeans e uma camisa social cujo tecido era um tipo de flanela, enquanto eu, brasileirinha, tiritava de frio e parecia uma cebola descascada quando entrava num pub e tirava dois, três, quatro casacos… Onde está, hoje, o magnífico casaco de Andy?

Passados mais de trinta anos, era de se esperar que a lição tivesse sido aprendida, que pelo menos essa específica materialização do nosso especismo estivesse superada: Peles na constituição de peças e ornamentos do vestuário? Sintéticas, claro! A realidade, entretanto, é outra. O mundo das roupas e as roupas do mundo estão cheios de peles arrancadas de animais espancados, escalpelados, eletrocutados [3].

Lembro-me particularmente bem de uma senhora, em Paris (fevereiro de 2014), que usava um casaco de peles (parecia ser de raposa) ao fazer suas compras numa loja de produtos orgânicos (a produção “Bio” está em voga em todo o mundo…). Será que na mente daquela senhora o casaco era um exemplo de indumentária “natural” – em oposição ao que é sintético – e isso era bom? Talvez ela me respondesse prontamente (há quem o faça!) que os animais são criados para isso, e que ela não está promovendo a extinção da espécie, pelo contrário: Na medida em que são criados para abate, seus números (sic) se mantém estáveis. Certas vertentes da visão ecológica rasa conseguem ser algo verdadeiramente repugnante: funcionam como muletas para amparar os ética e emocionalmente aleijados [4]. Essa é provavelmente a mesma base moral que justifica a caça de animais “enlatados”, como leões, e o assassinato dos que estão “sobrando” nesses lugares abomináveis chamados jardins zoológicos [5].

É claro que tampouco faltam, nos menus dos seletos restaurantes da capital francesa, animais massacrados em matadouros imundos. A língua francesa, que na geração de minha avó era sinônimo de tudo o que se considerava “chic” – fosse na moda ou na cozinha – escamoteia uma tradição ocidental de exploração animal que se tornou símbolo de sofisticação culinária em todo o mundo: boeuf bourguignon, foie gras, escargots, gigot d´agneau e a longa lista continua. Quitutes amanteigados também são abundantes e, é claro, numa cozinha com tantos laticínios não é surpresa que, entre os mortos, encontremos freqüentemente as carnes de vitela (veaux). Para os veganos, as vitrines das charmosas padarias (boulangeries e pâtisseries) francesas se tornam literalmente “viagens do olhar” (parafraseando o historiador francês Michel de Certeau), a menos que se faça o esforço de procurar locais especializados em “veganices”. Ah, velha Europa apegada às “tradições”!

Mas por que a implicância com Paris, alguns indagariam? A pergunta é pertinente, mas a resposta é que Paris ¬– embora seja apenas um locus dessa ocidentalidade retrógada – é sem dúvida o exemplo mais emblemático do que se pode chamar de “civilização”. Paris é um ícone: Se nem aqui, então onde? Se não conseguimos dar nem esse passo (não me refiro ao hiper-mega-arraigado hábito de se alimentar de animais), o que esperar do resto, em termos de abolicionismo animal? Por que o sofrimento desses animais, em seus cativeiros nauseabundos, continua (ou pior, voltou a ser) tão irrelevante? É impressionante a força de recriação das “engrenagens do mal”.

O que acontece na assim denominada “era da informação”? Na era da massificação das redes sociais, dos instagrams e dos muitos outros aplicativos high tech que remodelam nossa relação com o outro e com o entorno? Paradoxalmente, na era da informação e do “conhecimento” o essencial continua invisível aos olhos: “Eis o segredo: só se vê bem com o coração”, diz a talvez mais famosa frase do livro “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry.

Também estive em Londres por poucos dias. Não foi possível fazer um juízo razoável acerca do uso de peles verdadeiras naquela cidade. Uma coisa, porém, é certa. Como os ingleses não têm uma tradição culinária considerada refinada, ou modelo a ser seguido, é mais fácil comer em Londres. Além dos nutritivos e variados pães integrais (e cereais) “anglo-saxões”, baratos e fáceis de achar, há muitos restaurantes pequenos e simples, fartos em opções veganas. Como afirmou o filósofo Herbert Marcuse, às vezes um “bom” estilo de vida (caso da cozinha francesa) milita contra a transformação qualitativa. De fato, a maioria dos chefs de renome que segue essa “tradição” gastronômica, continua a cozinhar “como nossos pais”, nas palavras de Belchior [6].

Europa: Banho de civilização? Cultura? Arte? Sei não, seu moço. Sei que há outras esquinas no mundo muito piores. No que tange aos animais, trata-se de um planeta ensanguentado. Resta, todavia, a frustração da promessa do que seja civilização. E isso, em muitos outros sentidos também.

Notas:

[1]: Mesmo a apreciação de obras de arte pode ser um problema quando se mergulha de forma mais profunda na realidade. Veja, por exemplo: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,egito-acusa-louvre-de-roubo-e-rompe-lacos-com-museu,447350,0.htm

[2]: Veja, por exemplo: http://seashepherd.org.br/sscs/

[3]: Lembro que couro também é pele. Para mais informações sobre o tema deste texto acessar https://www.change.org/petitions/burlington-coat-factory-go-fur-free-to-help-animals?utm_source=action_alert&utm_medium=email&utm_campaign=52233&alert_id=ajDqRDyyEk_yiCEUNxQfS
Assistir: “A testemunha”: http://www.youtube.com/watch?v=rBa-Nu7DGBo; “The ghosts in our machine”: http://www.youtube.com/watch?v=DzJvcPmX79w

[4]: É interessante como muitos otimistas de plantão conseguem ver sempre o lado positivo de todas as coisas. Recentemente ouvi uma cidadã afirmar que, apesar de o trabalho escravo (na moda) ser algo que deva ser combatido, ele tem o mérito de disponibilizar mais bens de consumo, o que é bom para as pessoas e para a economia. Sempre há algo a ser sacrificado (sic).

[5]: Acessar: https://www.anda.jor.br/16/03/2014/comeca-africa-sul-manifestacao-mundial-caca-enlatada-leoes; https://www.anda.jor.br/26/03/2014/girafa-marius-zoologico-dinamarques-mata-familia-leoes

[6]: Acessar: http://www.euroveg.eu/lang/pt/news/press/20111014.php . Não sei se o Decreto-Lei em questão (que determina que todas as refeições servidas em cantinas escolares na França devam conter produtos animais) se encontra em vigor. Mas penso que algumas informações deste mesmo link são esclarecedoras, em termos de tendências, no que tange ao vegetarianismo naquele país.

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