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Do Amor

6 de maio de 2010
3 min. de leitura
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Por Fernando Portela

Eu sei, eu sei que ele é muito velho e que existe o tal do tempo implacável, as regras da natureza, e a sobrevida pode ser uma questão de meses, mas, meu Deus, ele está aí, respirando, ainda se levanta, e anda um pouco, até engordou uma coisinha nas últimas semanas. Mas veja o quanto existe de vida, de alegria, até, nos olhos dele! Ele me olha assim, tão profundamente, que toda vez choro. E, quando choro, sou meio histérica mesmo, nunca me contive, o olhar dele muda para um outro sentimento, meu Deus, é uma coisa tão evidente… transforma-se em um olhar de piedade. Por mim! Ele está morrendo, mas tem pena de mim! Não quero nem imaginar as dores que sente. O linfoma tomou boa parte da genitália e foi preciso extrair quase tudo.  Está, naturalmente, com incontinência urinária, mas isso, pra mim, é o de menos. Imagina se vou ter nojo de xixi. Me preocupo mais com a quimioterapia – porque o linfoma volta – , ela pode acabar com sua resistência. Acho que já foi um milagre ter sobrevivido à anestesia, mas teria sido pior a inalatória; a peridural lhe deu chances. Olha, vou falar sério com vocês: não me provoquem com essas histórias de que o tempo dele acabou porque do tempo só sabe Deus. Já vi outros da raça viver mais de doze anos, assim como já vi também os que não passaram dos seis. Vocês vêm falar comigo como se o Meninão fosse um problema burocrático, ou, pior ainda, um estorvo, algo de que preciso me livrar. Pobres de espírito! Vocês projetam sua insensibilidade e eu percebo isso no olho de vocês, assim como todo o amor do mundo está no olho do meu querido. Nunca senti um amor assim. Juro! Meu marido Ribamar dizia que me amava, às vezes até parecia, mas esse amor não o impediu de me tascar um chifre daqueles, e com uma rampeira aqui do bairro. Aliás, Meninão nunca gostou dele. Respeitava-o pelo fato de ser meu marido, morar aqui, mas não atendia quando ele chamava, ficava quieto, na dele.  No entanto, quando eu estava a um quilômetro de casa, o garotinho começava a se agitar, e ao ouvir o motor da caminhonete, gemia, gemia de amor, de amor puro! E quando eu entrava em casa ele se mijava todo. Tem amor assim, tem? Então, não me amolem e se algum de vocês citar – vejam bem: citar – a palavra “eutanásia”, eu vou lá dentro, pego a espingarda que Ribamar esqueceu aqui, depois que o expulsei, e encho de chumbinho suas bundas gordas. Nunca engoli essa teoria de que “eutanásia” se faz por amor. Essa é a pior hipocrisia, a irônica!  Coisa nenhuma! Quem ama agoniza, cai junto, alivia, dá a mão, sente, chora, grita, e pode até matar, mas não a coisa amada, e sim os egoístas, empedernidos, que não passam de psicopatas disfarçados – o mundo, hoje, está cheio deles! Eu, se for o caso, morro junto com o Meninão, vou aguardar o tempo de Deus e lhes digo mais: esse atendimento especial ao doentinho não vai atrapalhar em nada minha dedicação aos outros 34 meninos e meninas que sobrevivem porque eu existo!

Fernando Portela é jornalista, escritor e autor do blog http://fernandoportela.wordpress.com

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