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Veganos, às ruas - Um alerta e um incentivo

5 de julho de 2013
11 min. de leitura
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“Nosso único dever perante a história é reescrevê-la”
Oscar Wilde

Introdução: um pouco de história

Estamos vivendo um momento histórico. Quantas vezes todos já não ouvimos esse chavão? Bom, dessa vez é verdade: estamos testemunhando um pedaço da história sendo reescrito. Não apenas no nosso país, em todo o mundo. O caráter das manifestações populares mudou desde 1999, quando milhares de ativistas tomaram as ruas de Seattle, para protestar contra a Rodada do Milênio da OMC. Outros protestos igualmente massivos tomaram lugar em diferentes partes do mundo nos meses que se seguiram.

Tais manifestações tinham o seguinte caráter: elas eram múltiplas; agregavam ativistas de diferentes causas; a internet foi uma ferramenta fundamental de comunicação e mobilização; táticas não violentas (mas ativas) de bloqueio (para impedir os encontros de líderes globais) e resistência e avanço das marchas mesmo em meio à repressão policial, e também resistência passiva foram amplamente empregadas. Até que a repressão pesada do governo conservador de Silvio Berlusconi nos protestos de Gênova, no ano seguinte, em que se viu ainda ações violentas de destruição de propriedade privada, removeram parte do ímpeto dos protestos.

É de se destacar que partidos e sindicatos, antigos protagonistas, agora eram mais um dentre os vários grupos. Os confrontos de Gênova levaram ao questionamento da atuação dos Black Bloc, células de militantes anarquistas que eram os principais responsáveis pelas táticas de bloqueio, avanço e resistência não violenta. Embora alguns deles advogassem o emprego da violência, argumentou-se amplamente que os fatos ocorridos na cidade italiana foram atribuídos a policiais e fascistas infiltrados no movimento. O que condiz com o histórico dos Black Bloc nos protestos globais. O fato é: Gênova foi um evento conveniente para que os Black Bloc fossem isolados, e os grupos anarquistas em geral caíram no esquecimento da narrativa dos Dias de Ação Global – malgrado seu pioneirismo na organização de protestos inovadores e das manifestações globais em si.

Os Dias de Ação Global inspiraram o Fórum Social Mundial, cuja primeira edição se deu em 2001. Talvez por ser um evento fixo, talvez pela sua localização, ele, e seus capítulos regionais, se mostraram menos inovadores, e foram dominados pelos partidos políticos, no Brasil, na Europa e na Índia.

Mas, para resumir a história, o ímpeto por novas formas de organização política, não-hierárquicas, não morreu. O Fórum Social dos Estados Unidos teve um caráter de base que dispensou os grandes nomes e as grandes organizações que davam publicidade ao Fórum Social Mundial. E quando estourou a crise de 2008, as coisas mais estranhas aconteceram.

Fábricas fechadas nos Estados Unidos foram encampadas pelos trabalhadores e autogeridas de forma igualitária. Exemplos como esse despontaram em outros países. A Islândia foi à falência em 2009. Em vez de aceitar passivamente os pacotes de austeridade, a população decidiu que não iria pagar pela dívida que os bancos contraíram especulando com dinheiro público. Um governo caiu, outro governo, uma coalizão social-democrata com verdes e liberais não mereceu carta branca dos manifestantes. Eles o pressionaram até que uma Assembléia Nacional Constituinte, composta apenas por pessoas sem filiação partidária, diretamente eleitas, foi convocada em 2009. Na Espanha, um movimento de jovens desiludidos com a forma como eram massacrados por governos da esquerda e da direita, ineptos em tempos de prosperidade ou de crise, aflorou, rejeitando a participação de partidos políticos e preconizando um forma radicalmente democrática de organização, não-hierárquia e não-autoritária.

E, por fim, no mais divulgado dos movimentos sociais de contestação gerados pela crise, estava o Occupy Wall Street, que guardava muito do espírito dos Dias de Ação Global do início da década. Teve seus capítulos em vários países, e só foi desbaratado pela repressão do Estado.

Apenas um desses movimentos – na Islândia – foi, ao menos parcialmente, vitorioso. Mas isso pouco importa. Sim. Pouco importa. A história é feita de marchas e contra marchas, e as sementes plantadas por esses movimentos estão desabrochando, e um dia renderão frutos. E assim, o ideal de uma sociedade mais justa, livre e igualitária, sem líderes, sem hierarquias, vai cedendo, pouco a pouco, espaço à nossa sociedade altamente hierarquizada, especializada, desigual, dominada por Estados arbitrários, repressores que oferecem liberdades e direitos precários.

E então, chegamos ao Brasil…

O Brasil não estava pronto para ver brotar essa semente em 2001, quando sediou o primeiro Fórum Social Mundial. Nós nunca havíamos experimentado um governo de esquerda, comprometido com as demandas da população por distribuição de renda, emprego, melhoria dos serviços públicos, probidade na administração da coisa pública, etc. Em 2002, tal governo foi finalmente eleito e, de novo, para encurtar uma longa história, 10 anos depois, grande parte daqueles que depositaram suas esperanças no PT de Lula saíram decepcionados – eles nos prometeram reformas estruturais, reforma agrária, reforma política, e o que nos entregaram? O Bolsa família em vez um programa permanente, via reforma tributária, de redistribuição de renda, que reduzisse substancialmente as desigualdades de renda, sem tornar as pessoas dependentes do governo – e das oligarquias locais que distribuem o benefício. Nos entregaram alianças com os setores mais conservadores da política nacional, primeiro os oligarcas, e agora os ruralistas e evangélicos. Não houve um setor da elite econômica que não tenha sido agraciado pelo PT, que por isso mesmo convive com ele com grande simpatia, mesmo que não seja seu partido de coração. E, por fim, os escândalos de corrupção.

Toda a insatisfação latente estourou por causa de vinte centavos. Protestos contra o aumento das passagens de ônibus subitamente se tornaram algo muito maior. As pessoas foram às ruas protestar, mas também reivindicar. As críticas iniciais partiram da direita: o que querem esses vândalos? Protestos sem pauta são a expressão de uma insatisfação ainda mal articulada. Nem por isso menos legítimos. É na luta que o povo adquire consciência política. Para afastar o perigo de um novo Collor tirar proveito da situação temos que nós, os ativistas politicamente conscientes, nos fazer presentes. E dialogar. E jamais hostilizar o manifestante despolitizado. O que nos leva ao segundo ponto…

Sem partido

Essa mesma multidão, mas não só ela: ativistas independentes, movimentos anarquistas e libertários de todos os tipos (isto é, organizações não-hierárquicas que não veem o Estado como objetivo a alcançar, mas como adversário a combater), sentindo-se plenipotentes para levar seus clamores às ruas, sem líderes, exigiram manifestações sem bandeiras partidárias.

Aqui, no Brasil, subitamente, o discurso antipartidário (ou apartidário) foi imediatamente confrontado, pelos partidos de esquerda, como um discurso de direita, fascista, golpista e despolitizado de uma massa de pessoas manipuladas pela imprensa, por grupos fascistas, pelas elites, etc., para favorecer um golpe de Estado. Tirando também proveito de alguns casos de confrontos, a maioria deles concentrados em São Paulo, em que militantes partidários foram fisicamente agredidos por elementos infiltrados da extrema-direita. Aqui não há (e não é) espaço para explicar, contudo, como toda essa narrativa criada pela esquerda é uma falácia; que não haverá golpe contra um governo amigo das elites – do agronegócio, da pecuária, das empreiteiras, dos banqueiros, e assim por diante.

O fato é: movimentos sociais e populares que questionam a forma de representação política baseada em partidos, e defendem uma forma de participação mais direta nas questões políticas têm ganhado força e se tornaram uma tendência, inspirando também muitos estudiosos e pensadores. São movimentos progressistas, por direitos e mudanças, que, se não são vitoriosos, conseguem ao menos sacudir a mesmice da política institucional.

Mas o evento me chamou a atenção para um fato que destaco em outro texto: a confirmação de que os partidos políticos da esquerda se valem de métodos sujos (muitas vezes literalmente fascistas – contemplem a ironia) e que sua tradição de organizações hierárquicas, vanguardistas, autoritárias e dispostas a usar da violência sistemática contra seus opositores não se subtraiu um milímetro, pelo menos em nosso país.

O alerta

Sei que há muitos veganos filiados ou simpatizantes desses partidos. E conheço outros tantos que embarcaram no seu discurso, nas últimas semanas. Por isso, quero lançar este alerta, pelo bem do país, da humanidade e dos animais.

Seus métodos de mentira, difamação, boatos, terror, não são meros métodos de luta política que devamos aceitar passivamente – algo do tipo “é o calor do momento”, “todos fazem assim”, “se não o fizermos, não chegaremos lá”, “os fins justificam os meios”. São métodos de luta política que não reconhecem limites éticos, ÉTICA que nós, veganos, queremos no centro da sociedade. Estivessem eles no poder, sua reação aos ativistas que rejeitam sua liderança seria muito pior. Seus métodos, mais letais.

Eles nada aprenderam com os erros de 1917-21 (a Revolução Russa e a Guerra Civil); 1929-32 (as “deskulakizações” na União Soviética e o genocídio na Ucrânia) 1936-39 (a Guerra Civil Espanhola); 1937-38 (os expurgos de Stalin), 1956 (a denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, e a repressão à Revolução Húngara, que mostrou os limites da “desestalinização”); 1968 (a Primavera de Praga, na Tchecoslováquia, também reprimida violentamente), e 1989 (quandos os regimes burocráticos e decadentes caíram pela força de protestos populares, em movimentos em grande parte pacíficos). Esses são alguns de vários exemplos em que os marxistas-leninistas se mostraram renitentes ou ineptos para reformarem-se, para criar as sociedades prósperas e justas que prometiam, pelo contrário reprimindo quem as reivindicasse, e por fim entrando em colapso pela incapacidade de fazê-lo. O mesmo vale para os trotskistas, críticos das experiências socialistas até hoje implantadas. Eles também são marxistas-leninistas, e mesmo que fizessem uma ou outra coisa de diferente, sua prática dificilmente diferiria de modo substancial.

Esses partidos têm uma perspectiva ética instrumental, como é próprio do marxismo. Uma perspectiva que não combina com os direitos animais. Por isso alerto aos veganos, filiados, simpatizantes e seduzidos pela campanha de difamação contra os protestos populares: vocês estão colaborando com aqueles que tornariam nossa causa ilegal no dia seguinte à sua tomada de poder. Usem o seu senso crítico, não se deixem levar por mentiras nem pelo medo. Seja no contexto atual, seja num plano mais amplo.

Infelizmente, ao escrever um texto desta natureza, sempre é preciso ressaltar: eu não estou fazem uma profissão de fé direitista. Meu ímpeto para participar das mobilizações recente é o mesmo de 99% dos que lá estão presentes: desejo de mudanças sociais – conquanto tenhamos discordâncias em vários pontos, inclusive na profundidade. E, como vegano, eu tenho consciência de que o sistema precisa ser totalmente subvertido.

Contudo, se o sistema atual nos aprisiona, não podemos nos deixar iludir pelos caminhos da esquerda tradicional, vanguardista, autoritária, centralista, violenta. Descaminhos que já mostraram todo seu potencial destrutivo, sanguinolento, sem sequer um potencial criativo equivalente que talvez o justificasse.

O que os partidos políticos de esquerda (com a ajuda dos seus aparentes inimigos, a direita) querem, é nos impor um falso dilema: só há dois caminhos a seguir. Isso não é verdade. Há alternativas libertárias, igualitárias, não hierárquicas, pacíficas. Há uma miríade de movimentos, tendências e indivíduos que não comungam da política tradicional. Informem-se. Nós temos escolhas.

A política tradicional, com partidos representativos, esgotou seu potencial progressista. Nós não precisamos desses parasitas ou servos do sistema. E mesmo os que se consideram antissistema, por uma série de paradoxos que ficaram claros com os eventos recentes, não fazem senão colaborar com o sistema. A via para influenciar as políticas de Estado hoje e subverter o sistema como um todo amanhã – abolicionismo – está nas ruas.

O incentivo

E aqui, para concluir, quero lançar meu incentivo: ÀS RUAS, VEGANOS. Levem seus cartazes, levemos a causa animal para as ruas, mas sempre lembrando que ela nos inclui, pois somos nós, também, animais. No início, ainda um pouco influenciado pelo discurso alienante tanto da direita quanto da esquerda, eu estava reticente de levar o veganismo às ruas. Acordamos, os ativistas do Rio de Janeiro, de fazê-lo da forma acima descrita: associando, sempre, críticas ao sistema, problemas sociais, direitos humanos e direitos animais.

A transformação do Brasil numa sociedade mais livre, mais justa, mais igualitária, favorece a nossa causa. Menos preocupada com pão do dia seguinte, o dinheiro da passagem, o estado dos hospitais e escolas, sendo reconhecida como um conjunto cidadãs e cidadãos, trabalhadoras e trabalhadores dignos, que têm seus direitos respeitados – em vez de ser tratados como rebanho – a população brasileira certamente estará mais aberta a discutir os direitos dos outros rebanhos que são cotidianamente explorados em nosso território; e daqueles animais que são torturados em laboratórios, fisgados no mar, esfolados vivos, e assim por diante.

O destino dos demais animais está intrinsecamente ligado ao destina da humanidade. Somente seres humanos livres terão o esclarecimento e os meios para libertar seus semelhantes de outras espécies.

 

“A política é a ciência da liberdade. O governo do homem pelo homem (seja sob qual nome se disfarce) é opressão. A sociedade encontra sua mais alta perfeição na combinação da ordem com a anarquia”
Pierre-Joseph Proudhon

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