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Tempos difíceis

31 de julho de 2014
10 min. de leitura
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Prezados Leitores, inicialmente, preciso me desculpar. Para isso, devo justificar a minha ausência.

Faz mais ou menos um ano fui aprovada em um certame público para ingresso nos quadros da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) e, como muitos sabem, o treinamento ali é bastante pesado.

Para isso, precisei concentrar minhas energias, compreender o processo pelo qual estou passando, e, “organizar a casa”. Afinal, foram quase dez anos de atividades de coordenação de grupo e jurídicas ligadas ao veganismo.

Algo mais que gostaria de compartilhar com vocês: durante muitos anos fiquei como que um estado de hibernação com relação ao meu processo criativo. Seja com relação à poesia, aos instrumentos musicais, à escrita – coisas que me davam muito prazer e eram objeto de elogios na época da escola. Penei, literalmente, durante longos anos, por conta de uma série de fatores que me travaram quase que completamente com relação às artes. Foi duro. Doloroso. Custoso.

Entretanto, procurei ajuda. E eis-me aqui, na tentativa de resgatar a doçura, a delícia e a imprevisibilidade quase que mágica do meu próprio processo de criação, que terá como desafio aliar toda a bagagem adquirida seja durante a militância no movimento pelos direitos animais (humanos e não-humanos, sempre ressalto) com o estudo acadêmico, mais precisamente com relação às ciências jurídicas que, como devem saber, acabam por imbricar em outras ciências, tais quais a psicologia, a filosofia, sociologia e antropologia.

Dito isso, darei sequência aos artigos já iniciados, lembrando que estou aberta para aprender com todos aqui, não sou dona de verdade alguma, não tenho soluções milagrosas para as atrocidades mundiais, mas permito-me buscar melhoras e tecer criticas com relação aos modelos estabelecidos.

A análise global atual de cenários de guerras bizarras, mais que nunca, determina que coloquemos o cocuruto para queimar! Gaza, Crimeia, o retorno de modelos ditatoriais seja de direita seja de esquerda, o caótico sistema penitenciário, as questões de opressão pertinentes ao gênero e à espécie, a crise no Direito e nos veículos de comunicação, o crescimento do analfabetismo funcional…São grandes os desafios que merecem o devido enfrentamento. Ufa!

Durante esta fase de preparação na Emerj, tenho separado alguns textos de autores clássicos que ilustram bem o modo como vem sendo operado o sistema acadêmico, a culminar na naturalização de como tratamos animais e mulheres. Tais questões, com a devida acuidade, procuro levar para debate junto aos colegas também concursados (e professores), obtendo resultados positivos em casos pontuais. Mas o desconhecimento é abissal!

Quando se estuda a evolução dos direitos, percorremos um longo caminho, que tem início com a corrente dos naturalistas, que seriam doutrinadores a defender a existência de direitos anteriores ao próprio ser humano e que a este seriam inerentes, intrínsecos. Direitos basilares anteriores à própria criação legal, uma vez que seríamos dotados de razão.          Posteriormente, vemos o surgimento do positivismo, a renegar direitos humanos que não estivessem positivados dentro de um código de normas (Declarações de direitos x Sistemas Normativos de direitos). Para os positivistas, tendo Kelsen como exponencial, seres humanos têm direitos e, para sabê-los e respeitá-los, haveria que se apelar para uma codificação. Dessa forma, o Direito não estaria ligado às questões éticas tampouco morais.

Tal corrente foi bastante questionada, após o caótico pós-segunda guerra, ao se perceber os estragos cometidos diante de uma codificação fechada, sem interseções com outras disciplinas – conforme já esclarecido nas colunas anteriores.

Atualmente estamos vivenciando uma releitura daqueles direitos naturais, ou seja, com o crescimento, na doutrina, do chamado neoconstitucionalismo, com o advento do pós-positivismo.

Hoje, os operadores do direito ainda se prendem aos códigos, mas permitem que sejam levadas em consideração questões éticas e morais, a fim de se garantir direitos aos indivíduos (humanos) e limitar os poderes do Estado em face daqueles.

Infelizmente, as releituras do Direito ainda não se aperceberam do grande hiato deixado, do grande espaço vazio quando é constatado que, nesse processo por busca por direitos, homens, mulheres, crianças e, pasmem, até pessoas jurídicas vêm obtendo parte de seu quinhão nesse latifúndio. Mas…E os animais? Quem está a olhar por estas “coisas”, ditas sem alma, sem sentimentos, sem consciência?

Até entendo que o processo de catequização doutrinária realizada nos estudantes, ao longo dos séculos, vem cumprindo com maestria o papel de mantê-los praticamente alienados com relação à uma análise séria, aprofundada e crítica com relação ao processo histórico da evolução dos direitos e de sua relação com os grupos então marginalizados.

O processo de catequização acadêmica é antigo e, nas salas de aulas, o berço do aprendizado nos aponta, como substrato, os mesmos autores, em sua maioria homens, a serviço da manutenção do poder e da justificativa de que estamos a caminhar para um processo em constante evolução. Nada contra tais apresentações. Mas que haja um espaço para a leitura crítica de suas obras dentro de um cenário de combate às discriminações negativas advindas da leitura das obras.

Certo dia, me deparei, no livro I da obra “Política”, de Aristóteles (384-322 a.C.), com o seguinte argumento por ele utilizado para justificar a escravidão: ”Porque aquele que pode antever com a mente é destinado por natureza a ser senhor e mestre, e aquele que sabe trabalhar com seu corpo é um súdito, e, por natureza, um escravo; daí que senhor e escravo têm os mesmos interesses. A natureza, entretanto, distinguiu entre a mulher e o escravo. Porque ela não é sovina como o ferreiro” E, logo após, numa referencia a Hesíodo, quando este teria razão ao afirmar: “Primeiro casa e esposa e um boi para o arado”, porque o boi é o escravo do homem pobre, finalizava.

Na mesma obra – e me parece que a Bíblia bebeu desta água: “Se a natureza não faz nada incompleto, e nada em vão, deve-se concluir que ela fez todos os animais e plantas para benefício do homem. E assim, num certo ponto de vista, a arte da guerra é uma arte natural de aquisição, porque inclui a caça, arte que devíamos praticar contra bestas selvagens e contra os homens que, embora destinados por natureza a serem governados, não se submetem;pois guerra desse tipo é naturalmente justa

Bem, não preciso dizer que as águas de Aristóteles são bebidas com gosto até os presentes dias!

Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) aprimorou tais ideias, a conceber o homem como o único dotado de razão, assim como Deus. Vejamos, no seu Livro I de “Leis”: “que o animal que chamamos homem, dotado de presciência e inteligência rápida, complexo, perspicaz, dotado de memória, cheio de razão e prudência, recebeu certa condição distinta do deus supremo que o criou; porque ele é o único entre tantas espécies e variedades diferentes de seres vivos que tem uma porção de razão e pensamento, ao passo que todo o restante é privado disso. Mas o que é mais divino, não direi apenas no homem, mas sim em todo céu e terra, do que a razão?”

No que tange à apropriação da mulher, vejamos parte do legado do tão festejado São Tomás de Aquino (1225-1274) perpetrados pelos Liceus, em sua obra Suma Teológica, mais precisamente do quinto artigo: “De maneira semelhante, o adultério é o intercurso sexual com a esposa de um outro, destinada a ele pela lei que provém de Deus. Como consequência, o intercurso sexual com qualquer mulher, por ordem de Deus, não é adultério nem fornicação.

Hugo Grócio (1583-1645) também nos “brinda”, em sua “Sobre os Direitos de Guerra e Paz”, com a seguinte observação: “Dessa significação resultou um outro sentido maior de Jus; porque, na medida em que o homem é superior aos outros animais, não apenas no impulso sócia, mas também em seu juízo e poder de avaliar vantagens e desvantagens (…)”l

Aliada à doutrina vem ratificando a superioridade humana sobre a não-humana seja porque um tal deus assim o quis seja por conta da existência de razão naquele primeiro grupo e a ausência no segundo.

Permanecemos doutrinados a pensar que somos, na essência, cruéis e que precisamos de um grande poder controlador. Hobbes (1588-1679), em sua famigerada obra Leviatã, não me deixa mentir: “Deus com certeza designou o governo para restringir a parcialidade e a violência dos homens. Admito facilmente que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza”. Mais: De modo encontramos na natureza do homem três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; terceiro, a glória”.

Pois é, fomos condicionados a pensar que somos o horror de nossa própria espécie e que precisaríamos de mecanismos autoritários e hierárquicos para nos manter domesticados, uma vez que aquele estágio anterior à criação civilizatória seria de uma terrível selvageria, argumento hoje rechaçado por centenas de antropólogos que vêm demonstrando que não vivíamos como essas tais bestas selvagens, mas em relações de afinidade e organizações não hierárquicas antes dos últimos dez mil anos.

Pegamos de Locke o seguinte trecho de Dois Tratados sobre o Governo: “A finalidade do governo é o bem da espécie humana”, em vista da fase de conquistas por direitos vivida naquele momento onde vigia o monarquismo absolutista.

Para fechar o artigo, trago Barão de Montesquieu para fechá-lo com chave de ouro: “A natureza, que distinguiu os homens por sua razão e força física, não impôs qualquer outro limite a seu poder a não ser o dessa força e razão. Ela deu encantos às mulheres e determinou que sua ascendência sobre os homens terminará quando cessarem esses encantos; nos países quentes, porém, eles só são encontrados no começo e nunca no decurso da vida. Desse modo, a lei que permite apenas uma mulher é fisicamente compatível com o clima da Europa, não com o da Ásia…”.

Leitores, entendo como essencial que analisemos o histórico dos rumos acadêmicos, cujos pilares antropocêntricos, patriarcais e sexistas ainda retumbam nos anais da Academia, protagonizada por homens.

Basta abrir as revistas das Instituições de Classe para constatar a grande presença masculina dos personagens a figurar em suas páginas. Por mais que haja um crescimento das mulheres no mercado de trabalho, essas ainda são subjugadas a um segundo plano e, muitas vezes, precisam se masculinizar para serem aceitas nesse verdadeiro e secular Clube do Bolinha.

Espero que a coletânea aqui apresentada possa ser objeto de boas reflexões, a permitir uma futura compreensão acerca da necessidade de desenvolvimento de mecanismos críticos dentro das salas de aula.

Acredito que, mesmo as melhores mentes atuais, na maioria das vezes, nunca pararam para pensar em tais questões sob tal ponto de vista. Consigo perceber as boas intenções do mundo acadêmico ao questionar-se o atual sistema carcerário, da prevalência pelos direitos humanos, a cobrança de um outro tipo de tratamento por parte do Estado com relação aos cidadãos…Enxergo a grande vontade acadêmica de primar pelo fortalecimento da democracia, mas insisto: Nada disso estará em harmonia enquanto não abrirmos o debate – como ele merece, como algo necessário – no intuito de que discutamos as questões de gênero e de espécie no cenário atual.

O Direito não pode virar suas costas para os animais. E, mais, para as mulheres veganas, que buscam espaço para expor suas ideias.

Os mesmos discursos de razão, força e poder são comumente repetidos em exaustão dentro das salas de aula das melhores instituições acadêmicas deste país, muitas das vezes entremeadas por piadas sexistas ocorridas entre as explicações, no intuito de apaziguar os ânimos dos alunos cansados, por horas sentados. Fora os exemplos utilizados para a elucidação de um caso concreto nos moldes de “fulano vendeu um cavalo”, ou “a fazenda de beltrano”…

Bem, é muito bom voltar a estar aqui entre vocês. Desejo a cada um força e coragem para transformar o que merece e pode, sim, ser substituído.

Há muito a ser feito.

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