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Parte IV: Por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas: uma introdução ao carnismo

2 de dezembro de 2011
6 min. de leitura
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PAarte IV – A importância do testemunho

Confirmation Bias
(Síndrome de Tolstói)

Muitas pessoas, após uma rica conversa com algum ativista pelos direitos dos animais, ou mesmo quando diante de um vídeo com cenas de abate de animais, se sentem profundamente impactadas, mas, pouco tempo depois, esse impacto já foi significantemente reduzido.

Isso ocorre porque temos a tendência de noticiar e nos lembrar apenas das nossas suposições preexistentes, prendendo-nos às nossas justificativas e esquecendo os argumentos contrários.

Esse fenômeno é conhecido na psicologia como “confirmation bias”, ou “Síndrome de Tolstói”.

(Ao ler esta parte do livro, me veio à mente a experiência que tenho como ativista pelos direitos dos animais: quantas não foram as conversas com pessoas que em um primeiro momento pareceram concordar veementemente com a argumentação, mas com o tempo perderam o interesse pela teoria…)

IV – A importância do testemunho

A história de Emily

Na parte final de seu livro, Melanie Joy nos conta a comovente história da vaca Emily:

Em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos, Emily aguardava em fila a hora de seu abate. Não se sabe se foi por causa do cheiro de sangue, ou porque aqueles que estavam à sua frente não retornavam, mas Emily de repente saiu da fila e, em disparada, correu em direção à cerca que havia ao redor, traspassando-a com os seus mais de 500 quilos, e desaparecendo por entre as árvores.

Por quarenta dias e noites congelantes, Emily conseguiu se manter escondida e, enquanto os donos do abatedouro estavam determinados a encontrá-la, os habitantes locais tentavam a todo o custo ajudá-la em seu “voo para a liberdade”.

Fazendeiros deixavam montes de feno para ela; residentes deliberadamente confundiam a polícia fornecendo informações falsas sobre o seu paradeiro.

Ao final, o dono do abatedouro se comoveu pela história de Emily, concordando em vendê-la para um santuário de animais pelo preço simbólico de um dólar.

Emily viveu o resto de sua vida no santuário que a acolheu, vindo a falecer aos dez anos de idade, em razão de um câncer.

Melanie Joy analisa que Emily, antes uma vaca leiteira anônima, veio a ser um indivíduo que inspirou compaixão na vida de milhares de pessoas, sendo que muitas tornaram-se vegetarianas simplesmente ao tomar conhecimento de sua história.

Para a autora, as defesas do carnismo ruíram e foram substituídas por compaixão. Por que outro motivo uma comunidade de carnistas e fazendeiros ajudariam uma vaca que fugia do abate?

Joy conclui que a história de vida de Emily continua a ser uma lembrança, pois mantém acordadas duas verdades fundamentais que o carnismo a todo o custo se empenha em esconder: a verdade dos bilhões de animais vitimados pelo homem, e a verdade que nós nos importamos com eles.

A importância do testemunho

“O paradoxo é que a grande razão pela qual nos recusamos a testemunhar a verdade do carnismo é a mesma razão que nos motiva a testemunhar: nos importamos”.
(Melanie Joy, do livro)

Finalizando a sua obra, a autora passa a tecer considerações a respeito da importância do testemunho.

Segundo Joy, o carnismo se mantém criando um vazio em nossa consciência, vazio esse que apenas é preenchido quando testemunhamos.

Ao testemunharmos, não somos apenas meros observadores: nos conectamos emocionalmente com a experiência testemunhada. Experimentamos empatia. Permitimos o alinhamento de nossos valores e práticas.

O testemunho pode ser individual ou coletivo: assim como o testemunho individual preenche o vazio de nossa consciência, o testemunho coletivo preenche o vazio da consciência social.

O objetivo de todo o movimento por justiça social é ativar o testemunho coletivo, de modo que práticas sociais reflitam em valores sociais. Um movimento tem êxito quando alcança uma massa crítica de testemunhas, suficiente para influenciar as “escalas do poder” em seu favor.

Com um simples exemplo, a autora nos demonstra como o testemunho faz a diferença:

“Todas as atrocidades na história da humanidade foram permitidas por uma população que virou o rosto para uma realidade que pareceu ser dolorosa demais para enxergar. Ao mesmo tempo, todas as revoluções pela paz e justiça foram possibilitadas por um grupo de pessoas que escolheu suportar o testemunho e demandou que os outros também o suportassem”.

Joy ainda nos explica que o oposto de testemunhar é dissociar: assim como o testemunho é a maior ameaça ao carnismo, a dissociação é uma das suas principais defesas.

Como dito, o carnismo, para se manter, cria um vazio em nossa consciência, permitindo um desalinhamento entre os nossos valores e práticas.

E é por meio da dissociação que o carnismo cria esse vazio, nos desconectando psicológica e emocionalmente da real experiência, como se não estivéssemos totalmente presentes ou conscientes. A nossa empatia é transformada em apatia.

A dissociação não é de todo ruim, podendo até ser benéfica em determinadas situações, pois vivemos em mundo violento e imprevisível. Quando alguém é vítima de algo, por exemplo, é possível dissociar para amenizar o estresse.

Por outro lado, a dissociação se torna destrutiva, quando usada para tolerar a violência. Melanie Joy exemplifica que a dissociação permitiu que médicos nazistas fossem assassinos e torturadores durante o dia, e voltassem a noite para a sua casa como maridos e pais normais.

A maioria das pessoas não dissocia a ponto de matar os outros, mas o suficiente para suportar a morte de animais executada por terceiros.

Na hora de comer carne, a dissociação evita que liguemos os pontos sobre o que estamos fazendo e como deveríamos estar nos sentindo, permitindo que façamos escolhas que não condizem com os nossos valores.

Daí a importância do testemunho, que preenche esse vazio, nos conduzindo a uma atitude mais realista.

Contudo, apesar de seu poder transformador, muitas pessoas resistem em testemunhar a realidade do carnismo. Uma das razões para tal seria o sentimento de impotência em mudar um sofrimento de tamanha magnitude, considerando a impossibilidade de uma transformação imediata e total.

Quanto a este temor, Joy pede que consideremos o exemplo do Farm Sanctuary, hoje um dos principais santuários de animais dos Estados Unidos, com milhares de membros e patrocinadores: tudo começou com dois ativistas vendendo hot dogs vegetarianos em uma van.

De qualquer modo, mesmo que um testemunho individual não tenha grandes consequências práticas, cai como uma luva a afirmação mencionada pela autora, do ativista norte americano pelos direitos dos animais, Eddie Lama, que disse: “Eu tenho consciência de que os animais continuarão a sofrer e a morrer – mas não por minha causa”.

Citando parte de um discurso de James O´Dea, ex-diretor da Anistia Internacional, a autora nos conclama a fazer do testemunho o nosso lema: “Na realidade, nunca somos observadores externos. Estamos dentro da ferida também (…) Estamos dentro daquilo que necessita ser transformado”.

Nesse contexto, Joy nos remete à célebre citação de Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz e sobrevivente do holocausto: “A neutralidade ajuda ao opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o atormentador, nunca o atormentado”.

E como a autora bem coloca: “Testemunhar nos permite escolher o nosso papel, ao invés de ter um que nos foi escolhido”.

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