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ARTIGO

O enredo especista das “Aventuras de Pi”

20 de novembro de 2013
Paula Brügger
13 min. de leitura
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Foto: Reprodução

Acabei assistindo “As aventuras de Pi” [1] e, francamente, não gostei do filme. Aconteceu meio por acaso, durante uma longa viagem de volta da Ásia, há cerca de dois meses atrás. Foram dois vôos de onze horas e quarenta minutos cada, e já não sabia mais o que fazer para passar o tempo…

Fiz umas anotações que pensei em postar nesta coluna, mas, em aqui chegando, fui atropelada por uma agenda impossível de cumprir na UFSC e acabei desistindo da idéia. Vi que uma colega colunista da ANDA – Bia Dantas – havia escrito alguma coisa sobre o filme, mas resisti à tentação de possivelmente fazer coro com ela, já que a falta de tempo era absoluta.

Vez por outra, porém, ouvia alguém fazer comentários sobre o filme. E sempre com elogios do tipo “que linda mensagem!”, “que fotografia maravilhosa”, etc. Passaram-se, assim, dois meses. Minha resistência em compartilhar meus apontamentos foi finalmente vencida ao ouvir os comentários de uns conhecidos sobre a beleza da dimensão espiritual do filme e da sua vertente educativa no que tange aos animais (sic).
Ouvir comentários tão diferentes das impressões que tive foi algo que me causou uma profunda solidão. Ao ler a coluna “Eu não vi Pi”, de Bia Dantas, notei que houve – em pelo menos um comentário – uma troca de farpas por conta da exploração ou não de animais durante a filmagem, o assim chamado “making of” [2]. Mas, independentemente desse aspecto (que inclusive me parece controverso), gostaria de discorrer brevemente sobre essa peça cinematográfica que, embora premiada, versa sobre uma história sofrível, inconsistente, repleta de lacunas e, pior: especista.

A história de Pi, ou Piscine Molitor Patel (interpretado por Suraj Shrama) é, resumidamente, a saga de um rapaz indiano cujo pai tem um zoológico na cidade de Pondicherry, na Índia. A família decide abandonar o país devido à instabilidade política que o abalou na década de 1970, e, por conta disso, embarca num navio cargueiro rumo à América do Norte, com os animais do zoológico a bordo. Os animais seriam vendidos para que a família pudesse iniciar uma nova vida.

Ocorre que, logo nos primeiros dias de viagem, o navio naufraga restando apenas cinco sobreviventes: Pi e quatro animais do zoológico – uma zebra, uma hiena, uma orangotango e um tigre-de-bengala. Esse insólito grupo é obrigado a conviver num pequeno barco salva-vidas, único equipamento que restou do naufrágio. Trava-se uma luta acirrada pela sobrevivência na qual a hiena mata a zebra e depois a orangotango. Por fim, o tigre mata a hiena. A história se desenvolve, então, em torno de dois personagens: Pi e o tigre, cujo nome é Richard Parker. Após um sem-número de momentos muito difíceis em alto mar (ou seja, as aventuras em si), os dois chegam ao México, sãos e salvos, embora com a saúde bastante debilitada. Richard Parker some na mata contígua à praia onde aportaram e Pi é resgatado por pescadores e levado a um hospital. Ainda hospitalizado, Pi recebe a visita de dois funcionários da seguradora da empresa do cargueiro naufragado e, pressionado por estes (que não deram crédito à sua história inverossímil), apresenta uma segunda versão dos fatos (que comentarei a seguir).

Essa é uma espécie de síntese oficial do filme. Mas o que vi foi a narrativa de um homem que conta a história de um adolescente fanático religioso [3] – a sua própria história – a um jornalista cuja intenção é escrever um livro sobre sua mirabolante odisséia na imensidão do oceano Pacífico, num pequeno barco salva-vidas, ao lado de um tigre-de-bengala. No final do filme, ao terminar de contar sua aventura, Pi percebe o ar de incredulidade do seu interlocutor e parte para uma outra versão da história (a versão contada aos funcionários da companhia do cargueiro naufragado): os sobreviventes foram de fato ele, sua mãe, um cozinheiro (com quem seu pai havia travado uma discussão violenta acerca de não abrir mão de refeições vegetarianas a bordo) e um budista [4] que intercedera em favor dele e sua família. Nota-se, então, algo também destacado pelo jornalista que o ouvia – existia uma correspondência entre as personagens das duas histórias: o budista (ferido) corresponderia à zebra (que tinha uma perna quebrada); o cozinheiro cruel à hiena; e a orangotango à mãe de Pi. E ele próprio seria Richard Parker, o tigre-de-bengala.

Nessa segunda versão, tanto sua mãe quanto o budista haviam sido mortos pelo cozinheiro no bote. Depois, revoltado com a violência dispensada à sua mãe, Pi teria matado o cozinheiro.

Essa analogia especista seletiva perpetua a visão dos animais zebra e orangotango como “bichos bonzinhos”, enquanto a hiena – predadora agressiva, carnívora – corresponderia ao “malvado cozinheiro”. Mas, desde o início, o filme já vinha fazendo um desserviço à causa animal ao apresentar o zoológico citado como um lugar idílico. Zoológicos são locais abomináveis onde os animais são mantidos em cativeiro e privados de sua liberdade e das vivências que a natureza lhes proporcionaria. Mesmo nos casos em que se encontram “soltos”, vivem uma vida artificial pela qual não optaram (ou seja, lá estão para o deleite humano; seu valor é instrumental), fora a exploração, o sofrimento e a morte que é imposta a outros animais, no caso da manutenção de carnívoros que precisam ser alimentados. Também a decisão do pai de Pi pela venda sumária dos animais – em razão da crise que teria provocado a malfadada tentativa de emigração de sua família para o Canadá – comprova o lamentável fato de que, embora fossem “bem tratados” (sic), os animais nada mais eram do que objetos, recursos financeiros para a família Patel: enfiar os animais num navio em jaulas exíguas – numa longa viagem – e simplesmente vendê-los, foi apresentado como algo aceitável e mesmo eticamente correto.

O filme – que provoca um permanente desconforto num coração abolicionista – tem muitas cenas assaz desagradáveis de assistir, cenas que beiram o terror, como a agonia da convivência forçada dos quatro animais no barco, ou os ataques da “malvada” hiena aos “bonzinhos” orangotango e zebra (sic). Também é uma cena angustiante aquela em que Richard Parker – o tigre – nada desesperadamente em volta do bote, tentando entrar nele, até que Pi decide socorrê-lo.

Outra cena muito “biodesagradável”, que resultou numa mensagem nada educativa, foi aquela em que o menino Pi se aproxima de Richard Parker, ainda no zoológico de seus pais, com um pedaço de carne nas mãos para oferecer-lhe. O ambiente é de silêncio, de solenidade. O menino olha nos olhos do animal e conclui que “os animais têm alma”, que “ele havia visto isso no olhar do tigre”. Essa passagem – que poderia ter tido um desenrolar maravilhoso – foi rapidamente interrompida pela chegada do pai de Pi que o puxa pelo braço e diz que o tigre não era e nem podia ser seu amigo em circunstância alguma. Reduziu o animal a uma besta furiosa e ordenou que uma cabra fosse atada à grade da jaula do tigre para provar que o animal era apenas uma máquina assassina instintiva e que devoraria a cabra, o que realmente aconteceu na cena seguinte. Ora, o fato de um predador de topo de cadeia devorar um animal que inclusive é do tipo “presa potencial” para sua espécie, não ensina absolutamente nada sobre a possível alma daquele animal. É como acusar de falta de critério na dieta uma criança de seis anos que se atira sobre um prato cheio de “brigadeiros” de chocolate!

Deve ter havido a intenção de mostrar um pai zeloso no que toca à segurança de seu filho, mas, se a obra é de ficção por que ser tão pretensamente realista nesse caso e não em outras passagens? A resposta está na mente de quem escreve a história/dirige o filme: uma mente dominada por uma visão especista.

Há outras passagens potencialmente boas que, como no exemplo acima, são neutralizadas por desdobramentos inadequados, ou por outras de mau conteúdo [5]. Isso acaba por promover um ideário “gelatinoso” acerca do que seja uma relação eticamente correta com os animais não-humanos. A questão da opção vegetariana por parte da família de Pi, como parte de uma tradição religiosa, ilustra bem como os critérios religiosos e abolicionistas podem divergir. Exemplo emblemático é o da passagem em que Pi – que vivia gritando no meio do oceano frases como “Deus, obrigado por me dar minha vida!, Eu tô pronto agora!”, ou “ Louvado seja Deus, o compassivo!” – agradece a Vishnu [6] por ter vindo na forma de um peixe e salvado as vidas dele e de Richard Parker. Pi diz isso em um dos vários momentos em que ele e o tigre estavam quase morrendo de fome e, finalmente, conseguem algo para comer. Mas é curioso pensar que esse fundamento ético transforma Vishnu num especista seletivo que considera as vidas de Pi e do tigre mais valiosas do que a do peixe. É por essas e outras que acho imprudente que pautemos nossas atitudes em explicações e soluções religiosas, em detrimento daquelas baseadas em preceitos éticos. Há situações que não permitem optar por uma dieta sem matar. Esse é o caso de pelo menos alguns povos caçadores-coletores e de situações extremas, como, em tese, aquelas decorrentes de desastres de grande magnitude. Em tais circunstâncias, não é eticamente errado matar para comer – como último recurso – embora muitos possam até preferir a própria morte para não serem obrigados a tirar a vida de outros ou, por exemplo, se virem obrigados a praticar o canibalismo [7].

Eis o tipo de relativismo ético que me incomodou durante todo o filme: ter zoológicos, tudo bem; vender os animais como se fossem bens materiais, impecável eticamente. Mas comer um peixe quando se está no meio do oceano, sem a menor perspectiva de ter acesso a outra fonte de alimento, aquilo sim, gerou um profundo questionamento moral…Me perdoem o trocadilho, mas pode-se dizer que esse é um típico drama moral “zen”, isto é, “zen critério”. Então, quando Pi diz que “a fome pode mudar tudo o que você sabe sobre você mesmo”, penso que ele estaria melhor preparado se estivesse municiado de preceitos éticos, em vez de fundamentalismos religiosos. Mas tudo para ele incluía Deus, até as “boas” frases como “Deus fez dos tigres carnívoros”…

É interessante notar – e essa é uma das várias inconsistências da história – que logo no início do filme, o pai de Pi o alerta para que (ele e seu irmão) não se deixem enganar por histórias e luzes bonitas: “Meninos, religião é escuridão”, completa ele. Mas Pi desenvolve sua personalidade e seus valores em torno de sua devoção religiosa. Não faz muito sentido, portanto, quando ele diz que conseguiu sobreviver naquelas condições adversas por conta do que seu pai lhe ensinara. Havia sim, um lado racional e pragmático sobre a vida – transmitido por seu pai – que foi útil para a sua sobrevivência em alto mar. Todavia o filme exalta muito mais a primazia da vertente religiosa no que tange à sua salvação. Isso fica claro quando ele termina de contar a segunda versão da sua odisséia e diz: “A melhor história é aquela que tem Deus”.

Não quero me estender muito sobre o aspecto dito “espiritual” do filme, mas vale mencionar mais duas passagens. Uma delas diz respeito à aproximação de Pi com o Cristianismo. Um padre lhe ensina que Jesus se sacrificou para salvar os pecados do mundo. Ele próprio – Pi – reflete sobre a questão e diz que “Aquilo não fez sentido: sacrificar a vida de um inocente para redimir os pecados dos culpados? Que tipo de amor é esse?” Mesmo assim, a cada dia, Pi gostava mais de Jesus e do Cristianismo, ou seja, ele deixa seu lado questionador sucumbir em favor de seu pretenso sincretismo religioso. O filme também perdeu a chance de explorar belas metáforas ao ter se limitado em apresentar de forma literal algumas narrativas místicas hinduístas (p.ex. o fato de a boca de Krishna conter o Universo). Há quem trace interessantes paralelos entre tais narrativas e a Física Quântica [8].

Deixando de lado evidentemente muitas outras observações, gostaria de concluir dizendo que mesmo o salvamento e o permanente cuidado de Pi para com o tigre, desvelam um elemento antropocêntrico: manter Richard Parker vivo – não abandoná-lo no meio do oceano – era sinônimo de cuidar de si mesmo, de não se abandonar, o que confere uma aura pouco altruísta ou compassiva à motivação ética (ou religiosa) de Pi. Mais uma vez ressalta-se o valor instrumental do animal – desse “segundo corpo”, ou “avatar selvagem” – que expressa a força da natureza bruta em luta pela sobrevivência.

Se tudo era metáfora, ficção, o autor poderia ter estabelecido uma relação de amizade ou parceria entre Pi e o tigre (algo que, durante todo o filme, esperei em vão que acontecesse). Em vez disso, o relacionamento dos dois no bote começou com o medo, prosseguiu num adestramento – na doma de um animal selvagem – e continuou basicamente entre o medo e a desconfiança. Houve cenas de ternura. Mas foram poucas.

Com relação ao fato de o tigre ter desaparecido na floresta, quando eles chegam ao México, Pi comenta com o jornalista que o ouve: “Richard Parker foi para a floresta sem se despedir, me deixou sem nenhuma cerimônia; Meu pai estava certo: Richard Parker não era meu amigo, mas havia mais nos olhos dele…”. Mais uma vez eu esperava que emergisse algum tipo de desdobramento a partir dessas frases, mas, como no resto do filme, tais questionamentos se perderam no mar das afirmações de cunho religioso.

Não vou tecer especulações sobre a ilha flutuante de suricatos porque daria mais umas duas páginas… Mas tenho uma última observação acerca do binômio conteúdo-forma: pode-se fazer uma analogia entre as luzes inebriantes das festas religiosas – objeto de crítica do pai de Pi – e o espetáculo “pirotécnico” dos efeitos especiais da tecnologia 3D. O fato de eu estar desprovida do show visual em 3D – e reduzida à telinha de um palmo quadrado do encosto do assento do avião – tornou mais evidente a mediocridade da história de Pi. Mas a mesma tela diminuta não tirou o brilho do magnífico filme Royal Affair [9], que também assisti durante um desses longos vôos que mencionei. A técnica não garante uma boa história. Tampouco a ausência de exploração animal na filmagem (se é que isso procede) faz de “Pi” um filme com conteúdo animalista eticamente correto.

Dizem ainda que o filme é um plágio da obra do autor brasileiro Moacyr Scliar denominada “Max e os felinos”. Mas disso não tratarei aqui. Confiram o depoimento do próprio autor sobre essa questão [10].

Notas:

[1]: Baseado no livro Life of Pi, de Yann Martel; dirigido por Ang Lee.

[2]: Veja, por exemplo, http://pitangadigital.wordpress.com/2013/01/24/por-que-o-tigre-se-chama-richard-parker-ele-e-real-saiba-mais-sobre-o-tigre-em-as-aventuras-de-pi/

De acordo com o link acima havia um tigre de verdade no set de filmagem e ele foi usado em 14% das cenas, mas serviu sobretudo para os estudos de finalização. O tigre teve seus movimentos analisados minuciosamente e foi até estimulado a mover-se dentro de um bote para a posterior reprodução de seus movimentos através da construção em 3D.

[3]: Um traço muito marcante em todo o filme é o seu caráter religioso. Pi, desde menino, cultiva sua forte vocação religiosa que se traduz num profundo interesse por três diferentes tradições: o Induísmo, o Cristianismo e o Islamismo.

[4]: Os atores eram: o marinheiro (Po-Chieh Wang), o cozinheiro (Gérard Depardieu) e a mãe de Pi (Tabu).

[5]: Refiro-me a conteúdos especistas, fanático-religiosos e inconsistentes eticamente.

[6]: Como dito no filme, Vishnu é a alma suprema, a fonte de todas as coisas.

[7]: Pode-se especular se, na segunda história, o cozinheiro e mesmo Pi chegam a se alimentar de carne humana para sobreviver.

[8]: O autor mais conhecido nesse sentido é Fritjof Capra, sobretudo no livro “O Tao da Física- Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental”, de 1975.

[9]: No Brasil, “O amante da rainha”, de Nicolaj Arcel (2012).

[10]: Veja, por exemplo, http://www.youtube.com/watch?v=jIQitu5oYWw

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