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Natal, pedaladas emocionais e faca no peru

15 de dezembro de 2015
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Todo ano é a mesma coisa, e nos shoppings centers a beleza parece estar na simetria. Em finais de outubro, o comércio já se antecipa e coloca uma cabeça de Papai Noel na vitrine. Ou umas bolas vermelhas. É a senha para os demais fazerem o mesmo, enquanto a clientela pensa ‘puxa, já chegou o Natal, nem vi o ano passar’. Na mídia, o assunto é o décimo-terceiro salário e como melhor gastá-lo com presentes e festejos natalinos, ‘dicas em tempo de crise’ e ‘o que cabe no bolso e na mesa do brasileiro’. Carne como cúspide.
De alguma forma, a coisa toda foi se distorcendo ao longo dos séculos – ou eu é que sou ingênuo – e agora a maior prova de amor e amizade é uma mesa farta na véspera de Natal. O que eventualmente faltou ao longo dos doze messes, seja a palavra, a presença ou o carinho, é magicamente reposto em uma refeição especial. Uma espécie de pedalada emocional.
A carne assada não pode faltar, e o animal recheado em questão tem que ser da mesma espécie que o vizinho também está assando. Outro alimento se configuraria em ofensa às tradições e divindades, essas coisas invisíveis que tanta gente sente a fungar em seus cangotes.
Enquanto um peru morto é marinado – no rádio, ensinavam receita para fazer um frango ter o mesmo gosto de seu parente ‘turkey’ – os pedidos e pensamentos elevados desenterram aqueles termos ‘mais batidos do que chicote em lombo de cavalo’. Amor. Paz. Compreensão. Solidariedade. Fraternidade. Perdão. Bondade.
Corte para uma lembrança relacionada. Certa vez, em um antigo emprego, serviram torta na semana do Natal, antes do recesso de final de ano. Os votos de sempre, brindados com Coca-Cola. Aí ouviram um barulho de uma pessoa chegando na outra ponta do corredor, e alguém disse “fecha a porta, fecha a porta, deve ser o Fulano, senão vai querer comer também”. Não perdi a deixa. “Vem cá, vocês falavam palavras bonitas minutos atrás, e já mudou?!”. Silêncio sepulcral, disfarçado em mastigação da torta, obviamente feita com bastante ovo, manteiga, leite condensado, creme de leite e demais produtos oriundos da exploração e dor de animais-propriedade-de-pessoas-de-bem. Ao final da ‘celebração’, sobrara torta suficiente para muitas pessoas. Dentro da minha ingenuidade de acreditar que aquelas pessoas seguiam no dia a dia a ideologia que tanto defendiam nas urnas, fiz uma proposta que me pareceu lógica. “Que tal descermos e distribuirmos todas essas fatias a moradores de rua?”. Novo silêncio sepulcral, desta vez disfarçado em goles de refrigerante e limpadas de boca com o guardanapo.
Voltando ao presente. As famílias que precisam aparentar felicidade correm ao açougue. Esta frase parece boba, mas oxalá algum dia, neste milênio, seja lida com a mesma indignação/condescendência que sentimos ao ler sobre sacrifícios ancestrais para aplacar os deuses, com virgens, primogênitos, bebês recém-nascidos ou qualquer que seja o objeto do TOC em questão. A cena da loira amarrada à espera do King Kong.
Eu sempre torci pelo King Kong.
Aí tem os que toparam, no seu dia a dia em que a ideologia é aplicada, não comer o tal peru na noite de Natal. Ou nem tomar conhecimento da data e da exigência social. Esses são vistos como curiosidade, ainda, exceção que se permite nos dias de hoje. E parte da população começa a pensar na relação entre pedir paz mas pagar carnê para que o verdugo, lá longe, bem longe, trancafie animais não-humanos ao longo de sua curta existência para, no momento certo, quando as toucas de Papai Noel infestarem as vitrines, passar a faca afiada-como-língua-de-comadre no pescoço do futuro assado. Um pagamento que ajuda a fazer deste um mundo melhor, Natal após Natal.
E nesse pacote há uns que dizem ‘amar os animais’. Usam camiseta com cara de cachorro, postam fotos nas redes sociais, choram e exaltam as virtudes de seu melhor amigo. Sem dó nem piedade, sem questionar, sacam de sua faca afiada para cortar o peito do peru, servir aos filhos sorrindo e perguntando se ‘ficou bom’, certos de que tudo está certo. A Amazônia, a COP21, os veganos e os perus podem esperar.
O azar é de quem nasceu com asas e penas, pois quem nasceu pelado e sem asas, óbvio, tem preferência no guichê das divindades e tradições. Para minimizar o olho no remorso e o cafungar no cangote.

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