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Incoerências ... do discurso à realidade

1 de junho de 2013
7 min. de leitura
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Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 236/12, que visa reformar o Código Penal. Dentre as novidades, está a incorporação de toda legislação extravagante, ou seja, aquelas normas de caráter penal que foram promulgadas depois de 1940, tais como o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Crimes Ambientais.

Muitas críticas têm sido feitas a esta iniciativa, que visa atualizar o Código Penal. Dentre elas as referentes aos crimes contra a fauna. Desarrazoada e incoerente, dentre outros, são adjetivos destinados à reforma operada nas penas e nos tipos penais ambientais, quando contrapostos a outras condutas ali tipificadas. Tais críticas vêm acompanhadas de inexplicável estranhamento, como se as incoerências não fizessem parte do mundo jurídico.

Exemplifico: o “pequeno” traficante, primário, que vicia um jovem, quando surpreendido na traficância é preso e processado, acabando por receber, no mais das vezes, pena de 1 ano e 8 meses de reclusão, convertida em prestação de serviços à comunidade.

No paralelo, aquele jovem que foi viciado, na maioria das vezes sem recursos, para manter o vício e na “fissura” de conseguir a droga, arrebata um aparelho de telefone celular, simulando estar armado; se apanhado pela polícia, será preso, processado e condenado, no mais das vezes a 5 anos e 4 meses de reclusão, sem direito à conversão, mesmo que primário.

Àquele que destruiu a vida de um jovem e de sua família: a rua, para poder continuar traficando. Àquela vítima daquele comércio maldito: o cárcere.

Este exemplo inicial retrata situação quotidiana da Justiça brasileira e revela que as incoerências existem e, no mais das vezes, traduzem uma justiça não tão justa como aquela que desborda dos manuais de direito.

Recente modificação no antigo capítulo dos crimes contra os costumes modernizou os termos, mas, na prática, despenalizou condutas criminosas altamente perniciosas. Antes da reforma, estuprar (praticar sexo convencional) e praticar atos libidinosos (praticar outras formas de sexo – anal ou oral – além dos beijos lascivos e outros abusos sexuais) eram condutas autônomas, punidas isolada e cumulativamente. Ou seja, para o estupro a pena era de reclusão de 6 a 10 anos e para o atentado violento ao pudor a pena era de reclusão de 6 a 10 anos. Quando o ataque à liberdade sexual da mulher se desse de forma ampla, englobando as duas condutas, as penas eram somadas, gravitando entre 12 a 20 anos de reclusão.

Hoje, esse mesmo ataque amplo implica em responsabilização penal única com previsão legal de reclusão de 6 a 10 anos.

Pois bem, o discurso da modernidade e evolução dos costumes é complementado pela ampliação das garantias legais, especialmente às minorias e classes especiais, dentre as quais se incluem as mulheres e os idosos, apenas para citar.

O discurso parlamentar à época da modificação legal acima retratada ressaltava a evolução, uma vez que o direito penal passaria a defender a dignidade e não os costumes. No entanto, na prática, vê-se que a proteção à liberdade sexual sofreu uma involução.

Essa mesma linha de raciocínio (!?!) é denunciada pelo mestre Damásio de Jesus ao comentar os efeitos da decisão do STF na Adin nº 4424. Peço vênia para reproduzir ipsis litteris: “ … suponha-se que sejam cometidos, em momentos distintos, porém próximos, dois crimes no ambiente familiar e doméstico: 1. O marido agride a esposa, maior e não vulnerável, ferindo-a ligeiramente (crime de lesão corporal leve); 2. Dias depois, ele a constrange mediante violência física causadora de lesão corporal leve, a praticar ato libidinoso diverso (crime de estupro). Quais os efeitos da decisão do STF? São contraditórios. Estranhamente, no primeiro caso, o crime de lesão corporal leve será de ação penal pública incondicionada; o de estupro, de ação penal pública condicionada à representação. O mestre continua explanando outras circunstâncias dessa situação no mínimo estranha para concluir: “Isso tudo lembra o famoso “mate, mas não estupre”. Hoje, “estupre, mas não agrida”.

E na execução da pena também é possível verificar outras “injustiças”: um motorista de táxi, pai de 5 filhos é assaltado e morto. O latrocida, também pai de 5 filhos, é preso, processado e condenado a 20 anos de reclusão. Enquanto estiver no cárcere sua família poderá receber auxílio reclusão, hoje em valores mensais que variam de R$622,00 a R$915,05. A família da vítima, no entanto, nada receberá do Estado, restando-lhe apenas a dor e a orfandade…

Estes exemplos mostram que estas, sim, são incoerências e desajustes reais.

O projeto que está no Senado ainda está admitindo contribuições da sociedade, passará pelo crivo dos Senhores Senadores, depois pelas considerações dos Senhores Deputados … Enfim, estamos apenas no começo do processo legislativo.

Mas algumas vozes críticas afirmam estar eivado de equívocos insanáveis (!!). Fato é que os crimes contra os animais têm sido utilizados como “bode expiatório”, daí a oportunidade para este artigo.

Pensemos direito: recentemente, neurocientistas respeitados mundialmente que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro assinaram um manifesto onde afirmam que todos os mamíferos, todos os pássaros e muitas outras criaturas, como o polvo, possuem as estruturas nervosas que produzem a consciência. Já sabíamos, por afirmação científica, que esses animais são sensíveis e têm inteligência, agora estamos diante de outra “verdade inconveniente”, como afirma o neurocientista canadense Philip Low.

Mais inconveniente ainda é o fato de que nossos legisladores, por força do disposto no artigo 37, da Constituição Federal, não podem ignorar esta descoberta científica. O princípio da eficiência também se aplica ao processo legislativo.

Isso quer dizer que as condutas que atentam contra os direitos dos animais e as penas previstas para elas e de resto todo o capítulo que trata dos crimes ambientais, não devem sofrer modificações que se lhes amesquinhe a proteção hoje existente.

Critica-se o projeto principalmente em razão do descompasso entre as penas previstas para os animais humanos e para os animais não humanos.

Se está assim, e de fato assim está, que se resolvam as divergências em favor da vida e dos hipossuficientes. Que se elevem as penas previstas para o abandono de humanos que hoje, de fato, não expressam a repulsa social a quem, por exemplo, deixa um recém-nascido na rua.

De fato, o projeto admite críticas, como toda obra humana. Esperava-se, no entanto, que elas fossem construtivas, objetivas e realistas.

Esperava-se, especialmente, que não se apoiassem em discurso populista e vazio de conteúdo, quando se afirma que será melhor abandonar uma criança que um animal.

A realidade científica e moral assevera que não se deve abandonar nenhum deles. O avanço na proteção dos direitos dos animais estampado no projeto de lei em comento representa, no entanto, arcabouço mínimo quando se pensa na gravidade das consequências das condutas ali tipificadas.

É que os 15 anos de vigência da Lei dos Crimes Ambientais demonstram a necessidade da preservação de muitos tipos ali existentes, a criação de outros, mas, principalmente, a impostergável e urgente necessidade de agravamento das penas, para acabar com a impunidade hoje existente para quem atenta contra bens valorados constitucionalmente, cuja concretude é função essencial do legislativo.

Desde 1988 não basta proteger os animais exclusivamente sob a ótica de recurso ambiental. Efetivamente eles são fundamentais para a recuperação, manutenção e preservação das nossas florestas e dos processos ecológicos essenciais à manutenção da vida no planeta. Mas, além, muito além disso, eles têm consciência e sentem dor, medo, alegria e outros sentimentos de modo semelhante ao nosso.

O manifesto assinado pelos cientistas contém verdades incontroversas. Apontam para a realidade e implicam em atualização da legislação que deve apenar mais gravemente as condutas praticadas contra os animais, seres conscientes e sencientes. Os discursos que ouvimos, no entanto …

Assim, faço minhas as palavras do Dr. Philip Low e as dirijo, especialmente, aos Senhores Congressistas e àqueles que fazem o discurso estéril: “Não é mais possível dizer que não sabíamos”.

 1 Jornal Carta Forense. Setembro 2012, pg. A6.
2 Pesquisado na internet em 4/10/12: http://www.portalbrasil.net/salariominimo.htm#sileiro
3 Pesquisa na internet em 4/10/2012: http://www.previdencia.gov.br/conteudoDinamico.php?id=22
4 Pesquisa na internet em 22/11/12: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/nao-e-mais-possivel-dizer-que-nao-sabiamos-diz-philip-low

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