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Em defesa da vida

5 de janeiro de 2015
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Para algumas pessoas, ser feminista e defensora dos animais pode parecer incoerente quando se trata de uma agenda fundamental do movimento feminista: a questão da interrupção voluntária da gravidez, ou seja, do aborto. A suposta incoerência advém, em termos gerais, da ideia de que defender os animais é ser a favor da vida e, portanto, não seria possível defender a “interrupção da vida”. Entretanto, o que defendo é justamente o oposto: quando se trata do direito ao aborto, a defesa da vida dos animais não é incompatível com esse posicionamento. Pelo contrário, o discurso antiaborto é permeado por um viés machista, que impede o reconhecimento da autonomia da mulher e contribui para uma visão antropocêntrica da vida.
Essa aparente dicotomia pode ser explicada em razão de que o debate sobre o aborto é marcado por duas posições contrárias, comumente identificadas como “pró-vida”, por parte daquelas que defendem a proibição da interrupção da gravidez e defendem a vida do feto, e “pró-escolha”, a favor do direito de a mulher decidir sobre a continuidade ou não da gestação.
Por vezes, o discurso e as estratégias de argumentação em defesa dos animais se aproximam do movimento pelo direito à vida do feto (pró-vida). Por outro lado, a ênfase na “escolha” conecta as defensoras da produção, venda e uso de animais com o movimento pró-escolha. Contudo, da mesma forma que defensoras dos animais enfrentam o desafio de mostrar a verdade sobre a vida e realidade às quais eles são submetidos, o movimento pró-escolha tem o desafio de mostrar a verdade sobre a vida das mulheres.
O aborto passa a ser uma questão ecofeminista quando, em alguma medida, a defesa dos animais pode incorrer na violação dos direitos humanos das mulheres. O raciocínio deve ser exatamente ao contrário: a defesa do direito ao aborto contribui para uma ética não-antropocêntrica, a qual é vislumbrada pelas defensoras dos animais. O ecofeminismo mostra, portanto, que os sistemas de dominação estão interligados e que o machismo pode estar presente também nos discursos em defesa os animais. Prestar atenção aos motivos e aos argumentos pelos quais os animais e a vida, de forma geral, são defendidos, é fundamental para avançar efetivamente na considerabilidade moral de humanos e outros que não humanos.
Com o apelo à vida do embrião independentemente do corpo da mulher ao qual pertence, as mulheres são destituídas de sua condição de sujeitos históricos e políticos e a identidade da mulher grávida passa a ser associada somente à maternidade, destituída de sua singularidade. “A mulher é reduzida ao seu corpo, e a única potencialidade que interessa é a de que pode ser mãe”, afirma Marcia Tiburi (2014, p. 167). Contrariando o princípio kantiano, a mulher deixa de ser, enquanto ser humano, um fim em si mesmo, e passa a ser um meio pelo qual o embrião se torna um bebê. A vida em potencial do embrião recebe uma condição especial de “mais vida”, enquanto a mulher torna-se “mais corpo”, destituída de sua vida atual. “A vida potencial é considerada nesse argumento idealista como maior e mais valiosa do que a atual. É isto o que torna sua relação assimétrica: mesmo que o embrião precise do corpo da mulher, não derivaria dele.” (TIBURI, 2014, p. 172).
Um estudo realizado no Brasil em 2010, por Debora Diniz e Marcelo Medeiros (2010), mostra que, ao completar 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto, geralmente realizado no centro do período reprodutivo, ou seja, entre 18 e 29 anos. Esse fato tem relação direta com o alto índice de mortalidade materna. Dados da Organização Mundial de Saúde (2013) estimam que sejam realizados 22 milhões de abortamentos em condições inseguras, os quais acarretam a morte de 47 mil mulheres, além de disfunções físicas e mentais a cinco milhões de mulheres. No Brasil, a cada dois dias uma mulher morre devido a abortos inseguros. Por outro lado, nos países onde o aborto é descriminalizado, tanto o número de abortos quanto o de mortalidade materna diminuem exponencialmente. No Uruguai, por exemplo, esse número diminuiu de 33 mil por ano para 4 mil.
A questão do aborto não é dissociada da questão ambiental. No âmbito da Organização das Nações Unidas, por exemplo, nas Conferências realizadas tanto em 1992 (Eco-92) quanto em 2012 (Rio+20), a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, inclusive em relação à saúde sexual e reprodutiva, são tidos como questões transversais em relação ao desenvolvimento sustentável.
A polêmica em relação ao aborto se coloca diante de um conflito entre o direito à vida do feto e o direito à autonomia da mulher, e comumente reflete os discursos de dois movimentos, o religioso em defesa da vida e o feminista em defesa das mulheres. Entretanto, a defesa da vida dos animais não implica na defesa da vida do feto. Na verdade, há um deslocamento da vida da mulher, enquanto indivíduo, para o feto. Assim, é necessário voltar o olhar às mulheres e reconhecê-las como sujeitos morais capazes de tomar as decisões sobre seus próprios corpos. Quando o aborto se mantem na ilegalidade, a vida que corre um alto risco é a da mulher. Nesse sentido, entende-se que o direito ao aborto deve ser compreendido como parte dos direitos reprodutivos, sob a guarda dos direitos humanos.
Se a precariedade no debate sobre o aborto é fruto de uma sociedade machista, é preciso ter cuidado com a defesa dos animais que incorra nesse mesmo erro. Assim como as mulheres não podem se libertar sozinhas da opressão sexista e deixar os animais na condição de inferioridade imposta pelos dualismos de valor marcados pelo especismo, a defesa dos animais também não pode manter as mulheres aprisionadas ao sistema machista que impede sua autonomia reprodutiva. Aliás, essa autonomia também não é concedida a todas as vacas e galinhas mantidas em aprisionamento para exploração de suas capacidades reprodutivas e extração de leite e ovos, respectivamente. Sexismo e especismo estão de mãos dadas e possuem a mesma matriz moral e cognitiva. Feministas, defensores e defensoras dos animais também precisam dar as mãos para vencerem a opressão.
Referências
DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. In: Ciência e Saúde Coletiva, v. 15, supl. 1, jun. 2010, p. 959-966. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000700002&lng=en&nrm=iso> Acesso em: 02 nov. 2014.
TIBURI, Márcia. Aborto como metáfora. In: BORGES, Maria de Lourdes; TIBURI, Márcia (org.). Filosofia: Machismos e feminismos. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014. p. 163-176.

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