EnglishEspañolPortuguês

Ecologismo e antiespecismo: discrepância científica ou moral?

18 de março de 2015
7 min. de leitura
A-
A+

Frequentemente é defendida a existência de uma discrepância científica entre o ecologismo e o antiespecismo. Pensa-se que somente a partir de uma posição ecologista é possível ter um ponto de vista informado de acordo com o que nos dizem as ciências naturais. Esta ideia assenta, contudo, num erro. É possível, manter, com o mesmo rigor científico, uma posição antiespecista que estenda a consideração moral a todos os animais não humanos.
Ecologia e ecologismo: uma distinção crucial
É necessário, antes de mais, fazer uma distinção fundamental entre a ecologia e o ecologismo. A ecologia é uma ciência descritiva sobre as relações biológicas que se dão no seio dos ecossistemas. O ecologismo, por outro lado, é uma posição moral sobre como deve ser a nossa interação com o meio natural dados certos valores a conservar. Não é, portanto, certo que só quem defende uma posição ecologista leva a sério os dados das ciências empíricas, em particular, da ecologia. De uma posição contrária ao especismo fazemo-lo igualmente. Estudamos a ciência da ecologia e informamo-nos dela, sendo tal um requisito necessário a toda a investigação racional. Contudo, partindo da mesma base científica podemos usá-la para procurar fazer aquilo que é melhor para os animais ou para conseguir outros fins diferentes.
A discrepância entre ambas posições dá-se, ao invés, no plano estritamente moral. De acordo com a posição antiespecista os interesses de todos os animais sencientes dão-nos razões para atuar de forma a prevenir os danos que estes possam sofrer. De acordo com a posição ecologista, pelo contrário, os interesses dos animais sencientes estão subordinados à preservação de outros valores, em particular, a evitar alterações significativas nos ecossistemas ou a conservar certas espécies. Isto é assim porque para o ecologismo as entidades moralmente consideráveis não são os indivíduos sencientes, mas, sobretudo, os ecossistemas ou as espécies, no seu conjunto. Ou, pelo menos, os primeiros são consideráveis em menor medida que os segundos.
Em termos práticos, isto implicará que sempre que exista um conflito entre os interesses de indivíduos sencientes não humanos e a preservação dos referidos valores ecologistas, o antiespecismo e o ecologismo manterão posições irreconciliáveis. Enquanto o antiespecismo se oporá a aquelas intervenções que suponham a morte e o sofrimento de todos aqueles animais que podem desfrutar das suas vidas (humanos e não humanos), o ecologismo estará disposto a aceitá-las e a defendê-las. Sempre que (i) isso promova a estabilidade dos ecossistemas, a conservação das espécies ou da biodiversidade e (ii) os indivíduos afetados não sejam seres humanos.
Este segundo ponto é crucial. As consequências que se derivariam de sacrificar seres humanos de forma a promover aqueles valores ecologistas, tal como se faz com animais de outras espécies, tornaria o ecologismo uma posição altamente implausível aos olhos da maioria das pessoas. Isto mostra claramente como a posição ecologista acaba por sucumbir ao especismo. Isto é, recusando promover os valores ecologistas quando isso frustra os interesses em não sofrer e em viver dos seres humanos, mas admitindo fazê-lo quando se trata de interesses similares de não humanos. De um ponto de vista antiespecista isto é, evidentemente, inaceitável. Não existe nenhuma característica moralmente relevante que todos os humanos exibam e que nenhum não humano possua que permita estabelecer essa diferença. Assim, a consideração desigual de interesses similares de humanos e não humanos é moralmente injustificada e qualquer posição que a assuma também o será.
São as intervenções ecologistas valiosas para os animais?
Defende-se, por vezes, que certas práticas comuns de gestão ambiental, ainda que atentem contra os interesses de alguns animais são, na realidade, favoráveis para a maioria. Assume-se, portanto, que a preservação dos ecossistemas, das espécies ou da biodiversidade tem um valor instrumental para a diminuição do sofrimento na natureza. Isto, porém, está longe de ser certo. Consideremos um caso célebre da chamada “espécie invasora” de patos-de-rabo-alçado americano na Europa. Esta espécie, introduzida nos anos 60 pelo ser humano naquele continente, coexistem com os patos-de-rabo-alçado autóctones e desempenham funções ecológicas similares. Contudo, recomenda-se a erradicação das primeiras como forma de impedir a hibridação e conservar, assim, os rasgos específicos da segunda. Evidentemente, neste caso, a preservação da biodiversidade não tem um valor instrumental para a vida dos animais, dado que muitos animais são prejudicados e nenhum se vê beneficiado pela intervenção. Alguém poderia afirmar que o pato-de-rabo-alçado se vê, em si, beneficiado. No entanto, as espécies são entidades abstratas, insuscetíveis de ser beneficiadas ou prejudicadas em nenhum sentido para além do metafórico. Apenas os indivíduos sencientes, com a capacidade para sofrer e desfrutar, podem ser beneficiados ou prejudicados pelo que lhes acontece. O que se pretende, neste caso, é conservar a biodiversidade como um valor em si mesmo, independentemente dos danos ou benefícios que de tal se derivem para as vidas dos animais sencientes.
Uma vez mais as conseqüências que se derivariam de aceitar tal cenário para a consideração de interesses humanos são claramente inaceitáveis. Isto é, aceitar a erradicação de seres humanos com determinados rasgos físicos de forma a evitar a miscigenação com os indivíduos autóctonos, perservando, assim, a pureza destes. Como antes, a analogia com o caso humano mostra que, na realidade, o que é moralmente relevante quando decidimos como actuar não é a preservação das espécies (ou dos ecossistemas). O que é relevante são os interesses em não sofrer e em desfrutar dos individuos, que podem ser frustrados quer pela ação humana quer por eventos naturais. E, ambos, humanos e não humanos, possuem tais interesses. É, por este motivo, arbitrário intervir na natureza com fins ecologistas de formas que causam enorme dano a outros animais sencientes quando nunca o faríamos si os afectados e afectadas fossem humanos, mesmo se fazê-lo fosse também necessário para obter tais fins. Do mesmo modo, é arbitrário intervir na natureza para ajudar a seres humanos mas recusar fazê-lo quando os beneficiários são animais não humanos.
Intervençoes positivas para os animais na natureza: objeção prática
Alguém poderia argumentar que intervir na natureza de forma a beneficiar os animais que sofrem por causas naturais não poderia, na prática, ser levada a cabo, dadas as atuais limitações científicas do ser humano. Contudo, se reflexionamos pausadamente podemos observar que o mesmo raciocínio não tem lugar quando estão em jogo interesses humanos. É certo que não disponemos atualmente do conhecimento científico necessário para erradicar a Sida, o Ébola ou outras doenças mortais para os seres humanos. No entanto, temos claro que se dispuséssemos de tais meios, os usaríamos para salvar vidas humanas. Além disso, consideramos prioritária a investigação científica  no sentido de desenvolver tais meios. A questão radica, pois, em que no momento em que seja possível atuar em beneficio dos animais não humanos que sofrem por motivos naturais não haveria razoes para recusar faze-lo. Sempre e quando, evidentemente, tal fosse possível sem causar um mal maior. Em qualquer caso, o que estaria em jogo seria uma mera dificuldade prática para atender os interesses dos animais e não a falta de razoes morais para levar a cabo as intervenções que o tornariam possível atender.
Em suma, dado o nosso conhecimento científico atual não dispomos de meios para atender os interesses da maioria dos animais sencientes que vivem na natureza. Mas isso não significa que não haja que te-los em consideração. O que implica é, por uma parte, abster-se de todas aquelas ações que, em vez de reduzir o sofrimento na natureza, o incrementam, como acontece, por exemplo, com a erradicação das chamadas especies invasoras. Por outra parte, implica intervir de forma a beneficiar os animais que vivem na natureza, sempre que tal seja viável, como sucede já em muitos casos. Isto deverá ser levado a cabo de forma prudente, sem que intervir suponha um dano maior do que aquele que se pretende prevenir ou minimizar (Como expliquei aqui, o atual estado de coisas para os animais na natureza consiste já em sofrimento e morte para a ampla maioria deles). Mas este último é um debate prático que aponta meramente à necessidade de continuar a investigar sobre como beneficiar os animais e intervir no futuro de maneira mais eficiente.
*Esta notícia foi escrita, originalmente, em português europeu e foi mantida em seus padrões linguísticos e ortográficos, em respeito a nossos leitores.

Você viu?

Ir para o topo