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Couro não tem problema ou 'Do descolamento de questões geminadas'

1 de outubro de 2014
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280914 vang marcio

Transita neste mundo um curioso tipo de pessoa. Especificamente falando, claro, pois há muitos tipos curiosos que podemos espiar pela janela. Essa pessoa em questão se autointitula defensora dos animais, militante da causa, dá voz e vez, até levanta cartazes em público. Ok-ok, sem tirar mérito quanto a isso, até porque estamos em uma brutal realidade que há muito mais soldados voluntários e generais ricos em guerra contra os não-humanos do que o contrário. Mas a mira do meu laser neste momento busca o fato de que essa pessoa, faceira, leva sua vida de ‘abobalicionista’ usando sapato de couro. Bolsa de couro. Casaco de couro. Sim, realmente conheço alguns. E couro legítimo.
Eu não consigo entender como alguém, duplamente, veste o capuz da libertação animal enquanto usa os adereços do personagem Leatherface, do filme O Massacre da Serra Elétrica. Ele foi inspirado em Ed Gein, que realmente fez uso de pele – humana – para forrar móveis e o próprio corpo. Imagino que ningúem aqui trocaria um cheque nem convidaria o sr. Gein para um café depois do expediente, certo? Certo.
Mas eis que o especismo, tal como um tarado que exibe os genitais em público, hipnotiza a capacidade de discernimento daquela pessoa que citei no parágrafo de abertura. Que não vê nada de errado em, agora convertida ao evangelho do veganismo, seguir com sua forração de pele humana – digo, bovina – fornecida por aqueles seres tão cruéis que criam, marcam a ferro, castram, confinam, derrubam no chão, separam do filhote, espremem, surram, mandam para o abatedouro, passam a faca, esquartejam, esfolam e ainda vendem os pedaços do cadáver para serem comidos. Não sei se o leitor está acompanhando meu raciocínio, mas NÃO estou falando d’O Massacre da Serra Elétrica. Só para ficar bem claro.
E então esses seres tão malvados, veja só!, é que receberam notas verdinhas de dinheiro para que a nossa citada pessoa possa carregar seus pertences em uma linda bolsa de couro. Que combina com tudo, ‘um verdadeiro achado, e ainda parcelam no cartão’.
Teimosa como uma mula, como diz minha vó, essa pessoa não percebe que poderia se desfazer da bota-bolsa-sapato-casaco-cinto-carteira-adereço. E com isso um desses soldados voluntários da guerra contra os não-humanos, que vai seguir indiferente ao sofrimento alheio e aos nossos apelos, vai em última análise deixar de pagar a extração de mais uma bolsa-bota-etc da peluda camada viva que envolve seres sencientes como a simpática vaca. Ou algum outro animal-miguxo-fofo esfolado na China. Gostemos ou não, a maioria das pessoas marchará rumo ao próprio enterro solicitando nas lojas produtos em couro legítimo.
‘Ele está defendendo o uso de couro, pessoal. Peguem paus e pedras’, diz alguém, nas redes sociais, para seus colegas de esquadrão ALF-de-apartamento.
Não é isso. É o contrário. Uma pessoa não-abolicionista a mais ou a menos usando couro não vai incentivar tanto seu uso a ponto de fazer sensível diferença, considerando que as vitrines, as celebridades, a máquina da moda e da propaganda já fazem esse serviço com força infinitamente superior. Não podemos ser ingênuos. Quem acha o contrário, que corte seu sapato em pedacinhos e use como adubo na horta, então.
‘A pessoa’ que ora observamos vai revender, doar para um brechó beneficente, trocar por álbum de figurinhas, etc., essa relíquia que pertence a seu passado moral. Ou que deveria pertencer. E vai evitar, outrossim, que se arranque mais uma bota das costas de uma vaquinha, a mesma que está nas imagens que compartilha no Feicebúqui.
E de alguma forma bizarra, há quem conteste isso dizendo que seguir usando tal peça de vestuário é MELHOR. Ou porque tem há anos. Ou porque foi presente de sei lá quem. Ou porque o estrago já foi feito. Ou porque ainda está novinha. Ou porque sintético polui. Ou porque teria que comprar algo feito na China, e lá todos comem cachorro três vezes ao dia. Ou porque não tem dinheiro, o que me dá vontade de rir.
Soltemos por um momento a mão da nossa pessoa-beagle, aqui analisada, e façamos umas abdominais mentais. O problema que proponho é o seguinte. Você comprou um sapato de couro, marca X, reconhecível na rua por ser famoso, tal como é inconfundível o tênis All-Star, por exemplo, que de longe dá para sacar. Eis que cai uma bomba na Imprensa mundial – a marca X usava pele humana em sua fabricação. Escândalo, e dá-lhe gente xingando a empresa no Feice. Agora pega mal seguir usando seu sapato X na rua, virou algo mórbido e com ares de psicopatia. As pessoas olham e até apontam, chocadas com a insensibilidade do dono dos pés em questão, no caso você.
E agora vem a pergunta valendo todos os prêmios do programa.
Considerando que seu calçado X custou caro, está novinho ainda, foi presente de sei lá quem, e o estrago já foi feito, blá-blá-blá… você seguiria usando-o, e defendendo seu uso, mesmo quando for participar de uma manifestação – justa – na porta da empresa X?
Não responda a mim, nem às redes sociais, please. Lamba o envelope e o selo, e envie sua resposta às vacas.

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