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Contemplação filosófica, educação matemática e direitos animais

8 de dezembro de 2015
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“E, da mesma forma como necessitamos de instrumentos de dois tipos, o telescópio e o microscópio, para ampliarmos o nosso poder visual, necessitamos de dois tipos de instrumento para ampliar a nossa capacidade lógica: um para nos fazer avançar até à matemática superior, outro para levar-nos de volta aos fundamentos lógicos das coisas que somos propensos a aceitar como factos consumados em matemática.”
Bertrand Russell – Introdução à Filosofia Matemática

Ao entrar na graduação eu tinha uma ideia pré-formada do que era a Matemática, essa ideia me foi passada na escola: Ora, Matemática é fazer conta, é fórmula, é número. Assim como eu, muitas pessoas entram no curso de matemática pensando dessa forma. Essa situação se torna mais crítica quando a pessoa entra numa licenciatura, pois ela está fazendo um curso para lecionar matemática, ou seja, vai perpetuar essa concepção equivocada do que é a Matemática quando formada.

No primeiro ano do curso me deparei com um livrinho do filósofo e matemático Bertrand Russell chamado: “Introdução à Filosofia Matemática”. Não consegui ler ele todo na época, mas os capítulos que li me encantaram, afinal, no final do primeiro ano do curso eu estava cansada daquela forma mecânica como a matemática nos era ensinada. Basicamente quando sentava para assistir as aulas entrava num mundo onde tudo era perfeito e fechado, onde todos os problemas poderiam ser resolvidos. No começo era legal, mas depois de um ano aquilo começou a me entediar. Esse livro foi o primeiro que eu li onde a Matemática não é a ciência só dos números, mas que muitas coisas estudadas na matemática não necessitavam de números.

Depois disso eu descobri que essa concepção de Matemática que aprendi na escola é uma visão equivocada do que realmente foi estabelecido no século passado como a ciência Matemática. Essa visão, de que Matemática é fazer contas e mais contas, é bem anterior a isso, nos remete a idade média com a inserção dos algarismos indo-arábicos para substituir o ábaco nas relações comerciais. Vale ressaltar que já os gregos antigos faziam a distinção entre a logística (prática de calcular números) e a aritmética (entendido hoje como teoria dos números). E porque ainda temos essa visão de matemática? Por que apesar de termos passado por reformas educacionais, a prática educacional pouco mudou. Ainda vigora nas escolas brasileiras o modelo de ensino que faz o aluno decorar o que está sendo ensinado. Ou seja, o foco é decorar a fórmula e não entender o conceito e como utilizar aquele conceito para tentar resolver uma situação problema. Deixando de lado às críticas recentes da educação matemática ao movimento da matemática moderna, baseado no formalismo do programa do matemático David Hilbert para estruturar a Matemática depois do abalo causado pela última “crise nos fundamentos”, na prática nem essa concepção se aprende na escola (principalmente na pública). O que vemos é uma mistura: um pouco de decoração de fórmulas aqui, com uma pitada de teoria dos conjuntos ali.

Venho ressaltar que estou me referindo à prática, ao dia-a-dia da sala de aula, que vivenciei como aluna de escola pública e depois como bolsista por quase dois anos no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da Capes. Claro que muitos livros didáticos têm uma concepção, muitas vezes, distinta da que o professor que os usa. Há um abismo entre o que o autor de um livro didático propõe, influenciado pelas linhas atuais de pesquisa em Educação Matemática, e a concepção e postura do professor que está ali na sala de aula.

Voltando a Bertrand Russell, ao retomar minha leitura desse livro recentemente me deparei com a seguinte frase:

“[A Lógica e a Matemática] Diferem entre si como rapaz e homem: a lógica é a juventude da matemática e a matemática é a maturidade da lógica. Este ponto de vista é mal aceite pelos lógicos que, por terem passado a vida a estudar os textos clássicos, são incapazes de acompanhar um trecho de raciocínio simbólico, e pelos matemáticos que aprenderam uma técnica sem se darem ao trabalho de indagar sobre o seu significado ou justificação.” (2006, p. 191)

Deixando de lado a longa discussão filosófica sobre a Matemática e a Lógica serem ou não uma coisa só, atentando apenas a sua crítica do porque naquela época (1919) se recusava essa ideia, por um motivo mais comodista do que pela falta de argumentação de Russell a favor, ainda hoje percebemos esta concepção presente tanto na educação básica como na educação superior. As pessoas que fazem matemática tendem a acreditar que não é necessário refletir sobre aquele conhecimento. Em “Os Problemas da Filosofia”, o autor diz: “O homem ‘prático, como esta palavra é frequentemente empregada, é alguém que reconhece apenas as necessidades materiais, que compreende que o homem deve ter alimento para o corpo, mas se esquece que é necessário procurar alimento para o espírito.” (2005, p. 119) Mais adiante afirma:

“O homem que não tem a menor noção de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época e do seu país, e das convicções que cresceram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado de sua razão. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades estranhas são desdenhosamente rejeitadas.” (2005, p. 121)

É por isso que a reflexão filosófica é necessária para a Matemática, pois se não fosse ela não teríamos tido tantos avanços nos últimos tempos. Muitos matemáticos tiveram que fazê-la para poder tentar responder aquele momento de crise e estruturação da ciência. Mas afinal, como relacionar Direitos Animais com isso? Em seguida, neste livro de Russell, leio o seguinte trecho:

“A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um alargamento do nosso Eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é procurado diretamente. Este alargamento é alcançado, quando opera exclusivamente o desejo de conhecimento, por um estudo que não deseja antecipadamente que seus objetos tenham esta ou aquela característica, mas adapta o Eu às características que encontra em seus objetos.” (2005, p. 122-123)

E dando continuidade a sua crítica ao antropocentrismo:

“Por esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a estar em conformidade com o que descobrimos em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação à visão de que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é construção humana; que o espaço e o tempo, e o mundo dos universais, são propriedades da mente, e que, se existe algo que não seja criado pela mente, é algo incognoscível e sem qualquer importância para nós. Esta visão, se nossas discussões anteriores estavam corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo aquilo que lhe da valor, visto que ela aprisiona a contemplação no Eu. O que tal visão chama de conhecimento não é uma união com o não-Eu, as uma série de preconceitos, hábitos e desejos, que constituem um impenetrável véu entre nós e o mundo além de nós. O homem que se compraz numa tal teoria do conhecimento humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por receio de que fora dele sua palavra não seja lei.” (2005, p. 123)

Esse parágrafo me chamou a atenção por ser muito próximo da crítica que, nós veganos, fazemos a moral antropocêntrica. É muito próximo do que eu penso sobre o ensino de matemática tradicional que perpetua, e muito, essa visão. Longe de tentar veganizar o filósofo, mas seu apontamento pode ser utilizado para uma educação matemática vegana e abolicionista. Assim, tomando os ensinamentos de Russell, podemos levar essa contemplação filosófica para as aulas de matemática e mostrar que ela não se resume a números e que na verdade não existe uma matemática, mas várias matemáticas.

Referências Bibliográficas
EVES, Howard (2011). Introdução à história da matemática. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
PINTO, Neuza B. O impacto da Matemática Moderna na cultura da escola primária brasileira. In: MATOS, José M.; VALENTE, Wagner R. (2010) A reforma da matemática moderna em contextos ibero-americanos. Caparica, Portugal: Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa – Campus Caparica.
RUSSELL, Bertrand (2005). Os problemas da Filosofia. Florianópolis: S/E.
_________________ (2006). Introdução à Filosofia Matemática. Évora: Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora.

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