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Muito além da matemática: Pitágoras e a defesa dos animais não-humanos

10 de setembro de 2014
12 min. de leitura
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Introdução

Pitágoras, filho de Mnesarco, nasceu na ilha de Samos (por isso Pitágoras de Samos), por volta do século VI a. C. Iniciou seus estudos com Anaximandro em geometria e astronomia, logo depois estudou com os sacerdotes egípcios, hieróglifo e, em seguida, com os hebreus a ciência dos sonhos. Fora instruído por árabes, pelos caldeus babilônicos e por último Zoroastro, que segundo Kahn (2007, pg. 22): “lhe ensinou o ritual de purificação e a natureza das coisas”.
Naquela época os jovens gregos viajavam para essas civilizações para poder se desenvolver moral e intelectualmente. Quando atingiu a idade adulta Pitágoras conviveu com o auge da filosofia e ciência naturais gregas que se desenvolviam em Mileto. Quando voltou ao mundo grego após suas viagens foi para Crotona e estabeleceu sua comunidade lá (cidade que ficava localizada na costa sudeste do que conhecemos hoje por Itália, mas que naquela época era chamada Magna Grécia).
Pitágoras era tido como um deus em forma humana, pela sua sabedoria e segundo Boyer (1996, pg. 33) era considerado “um profeta e místico”. Inclusive há várias histórias que contam que ele esteve em dois lugares ao mesmo tempo e que educava com sucesso animais não-humanos (cf. KAHN, 2007, pg. 21).
Na comunidade pitagórica as mulheres eram membros ativos, eram protegidas e tinham posição igualitária em relação aos homens, inclusive a esposa e a filha de Pitágoras eram conhecidas por sua sabedoria (cf. KAHN, pg. 24 e 26). Não só as mulheres eram respeitadas, mas os animais não-humanos também, pois Pitágoras acreditava na metempsicose (ou transmigração das almas) e um dos “mandamentos” assim como Kahn nos mostra na citação de Porfírio era: “(…) a alma é imortal e que, além disto, transforma-se em outros tipos de animais” (PORFÍRIO apud KAHN, 2007, pg. 28). Portanto o vegetarianismo (não consumo de produto de origem animal) era imposto aos membros de sua comunidade.
A Matemática Pitagórica
A concepção filosófica matemática de Pitágoras veio com Platão, que viveu entre os séculos V e IV a.C., ao deixar de retratá-lo como líder religioso e sábio. Ele e seus discípulos exaltavam Pitágoras como filósofo matemático. A teoria pitagórica deixara marcas na teoria platônica.
A visão de Pitágoras como filósofo matemático se deve a existência de duas escolas pitagóricas rivais: os akousmatikoi eram os que preservavam a tradição do ritual fielmente e o tabu, afirmavam que a escola matemática vinha de um pitagórico chamado Hipaso (filósofo naturalista e matemático do inicio do século V a.C) e não de Pitágoras; e os mathematikoi, que não negavam que a outra escola  fosse seguidora de Pitágoras, mas que eles eram mais fiéis e verdadeiros aos ensinamentos do mestre. Assim quando Platão retrata Pitágoras como filósofo matemático segue uma tradição pitagórica de atribuir todas as descobertas ao grande mestre.
Pitágoras e os primeiros pitagóricos não deixaram nada escrito. O primeiro livro pitagórico conhecido foi escrito por Filolau (viveu na segunda metade do século V a.C) a aproximadamente cem anos após Pitágoras! É através de Filolau que temos conhecimento da filosofia matemática pitagórica. Não se sabe ao certo quais são as descobertas matemáticas feitas pelo próprio Pitágoras e quais foram feitas pelos seus discípulos, por causa da tradição pitagórica de atribuir os feitos a ele.
Filolau desenvolveu o modelo cósmico baseado nos princípios da simetria e do número, estando à frente dos pensadores de seu tempo e considerado o precursor de Platão.  Mas acredita-se que sua teoria cósmica remete a princípios anteriores a ele, por isso atribuiu-se ao próprio Pitágoras grande parte da teoria cósmica de Filolau.
A teoria dos pitagóricos busca explicar como surgiram os dez primeiros números inteiros como parte fundamental da ordem cósmica, assim como mostra Hélio Cyrino a seguir:
O número um é o gerador dos números, o principio criador, o numero da razão.
O número dois é o primeiro número feminino, o número da opinião.
O número três é o primeiro numero masculino verdadeiro, o da harmonia, composto de unidade (1) e diversidade (2). É também o número da forma: não pode existir corpo sem três dimensões, comprimento, largura e altura; não é possível ações sem três condições: sujeito que age, o objeto que reflete a ação e o agir.
O número quatro representa os quatro elementos (ar, terra, fogo, água) em que cada um corresponde a uma face do tetraedro.
O número cinco é o número do casamento, união dos primeiros verdadeiros feminino (2) e masculino (3). Pode também ser entendido como a união do 1 ao 4, em que o 1 é o principio da vida (o espírito) que domina o 4, que são os elementos.
O número seis é o numero da criação.
O número sete é a combinação 4 e 3, em que quatro são os elementos e 3 a harmonia; sete são as notas da escala musical, cores do arco-íris e, presumivelmente, por causa das sete estrelas errantes, ou planetas, foi que derivou a semana.
O número oito é o dobro de quatro, representa a manifestação perfeita das formas, a balança universal das coisas.
O número nove é chamado perfeito, pois se obtém o produto da harmonia 3 × 3. É o símbolo da indestrutibilidade, pois, multiplicando-o com qualquer número, ele reproduz a si mesmo. (…)
O número dez, ou tetractys, é considerado o número sagrado (…).
O número dez representa o Universo, à medida que ele é a soma de todas as dimensões geométricas possíveis.”(CYRINO, 2006 pg. 46 e 47)
Os números eram representados como pontos em figuras geométricas e as figuras serviam para classificar os números. Assim esses números representam a união da aritmética com a geometria.
Os números quadrados começam com um ponto e se acrescenta números ímpares, esses números tinham importância especial para os pitagóricos, como vemos na figura 1 a seguir:
Figura 1 – Números Quadrados

 figura1

Fonte: Elaborada pelo Autor

Os números retangulares começam por dois pontos e depois se acrescentam números pares, como vemos na figura 2 a seguir:
Figura 2 – Números retangulares

 figura2

Fonte: Elaborada pelo Autor

Ao formarmos um triângulo começando por um ponto e acrescentando os quatro primeiros inteiros, teremos uma figura importante para os pitagóricos que é o tetractys, como vemos na figura 3:
Figura 3 – Tetractys

 figura3

 Fonte: Elaborada pelo Autor

O tetractys é uma figura especial para os pitagóricos porque ele é um triângulo equilátero (possui os três lados iguais) em que o número quatro é representado nos três lados do triângulo e a soma de seus pontos é dez, o número perfeito, além disso continha as razões musicais, que era a relação entre os intervalos musicais e as razões numéricas que os pitagóricos descobriram “considerando cordas sujeitas à mesma tensão, eles encontraram que para a oitava os comprimentos devem ter razão 2 para 1, para a quinta 3 para 2, e para a quarta 4 para 3.” (EVES,  2011 pg. 103). Logo a figura do tetractys era o símbolo perfeito para a ordem do cosmo, que era numérica e musical.
A partir desses números em formas geométricas podem-se estabelecer vários teoremas, dentre eles o que diz que “todo número quadrado é a soma de dois números triangulares sucessivos” (EVES. 2011, pg. 101), como vemos a seguir:

Figura 4 – Soma de números triangulares: 6 + 10 = 16

 figura4

Fonte: Elaborada pelo Autor

Os números triangulares eram usados para a construção de ângulos retos, com um trio de unidades especial, como 3, 4 e 5 formam o chamado triângulo retângulo, mas achar tais números inteiros que o formassem era complicado, acredita-se que a fórmula  m² = (m²/2 – 1/2)² = (m²/2 + 1/2)² , sendo m ímpar, foi feita pelos pitagóricos para achar alguns trios desses números especiais, mas ela não fornece todos os números. O trio 3, 4 e 5 é a forma mais simples de exemplificar o teorema sobre o triangulo retângulo (a soma dos quadrados dos dois lados é igual ao quadrado sobre hipotenusa) que atribuímos a Pitágoras, apesar de levar seu nome hoje, historiadores divergem sobre tal atribuição, pelo fato de que os babilônios já faziam uso prático do teorema e chegaram até a construir tabelas desses trios numéricos que formam ângulos retos.
Outro ponto que discordam, os historiadores, da confiabilidade da atribuição de que Pitágoras tenha realizado a demonstração do teorema. É que Plutarco (I d.C.), que é a fonte histórica mais antiga, ao mencionar que Pitágoras tenha realizado tal feito, sacrificou um touro para comemorar (Cf. KAHN. 2007, pag. 52), ato que vai contra os princípios de respeito aos animais não-humanos que ele pregava. Acreditasse que essa atribuição a Pitágoras deve-se ao misticismo em que foi envolvido, em acreditar que ele era a fonte de toda saber filosófico-matemático. Sobre isso Ubiratan D’Ambrosio comenta:
“O nome de Pitágoras ficou associado a algo extremamente prático e útil em praticamente todos os ramos da técnica, que é o teorema que leva seu nome (…). Sabemos que esse resultado amplamente conhecido entre hindus quando Pitágoras visitou a Índia, e que era também muito conhecido dos chineses, o que retira a originalidade criativa atribuída a Pitágoras ao nomeá-lo como o autor do teorema. No entanto, a contribuição essencial e original de Pitágoras para a aritmética é ignorada e marginalizada. A linguagem numérica, que nas tradições de chineses, hindus, egípcios, judeus, era parte integrante de práticas divinatórias, que é uma forma de aproximação com as divindades ― para quem o futuro não é mistério ―, teve em Pitágoras um grande cultor que procura introduzi-las na Grécia, em substituição as práticas utilizando o exame de entranhas de seres vivos sacrificados. Dizia ele que assim a natureza não seria violada e que portanto os deuses estariam mais felizes. Prevaleceu o sacrifício! E a contribuição de Pitágoras para a ciência é lembrada através de um resultado reconhecidamente de outros, mas de grande utilidade prática, que é hoje o famoso teorema de Pitágoras.” (D’AMBROSIO. 1993, pg. 45)
A metempsicose e o vegetarianismo
Como D’Ambrosio coloca, a principal contribuição de Pitágoras foi sua nova doutrina, baseada na imortalidade da alma, através da transmigração de um animal a outro, para ele nada era absolutamente novo, mas sim as coisas se repetiam em ciclos. A visão de vida após a morte que se tinha na época de Pitágoras era sombria, onde a psyche era um fantasma do homem (ou da mulher) que vagava incessantemente pelo Hades, condenado a tormentos eternos. Para Kahn (2007, p. 37) a nova doutrina deve estar ligada a tradição religiosa pré-budista, que desde os Upanixades acreditavam no conceito de karma. Essa tese se torna plausível devido ao fato histórico do império persa ter se estendido da Jônia a Índia a partir de 530 a.C, aproximadamente. Já para Montaigne “Pitágoras foi buscar nos egípcios o dogma da metempsicose”, e ressalta que Pitágoras comprava peixes e pássaros para soltá-los, com o intuito de libertá-los.
Ao considerar que as almas eram imortais e que a cada encarnação aparecem em várias formas animais, a doutrina pitagórica implicava o respeito aos animais não-humanos, pois poderiam ser conhecidos em outros corpos e ao matar-se um animal estaria se cometendo crime de assassinato. Uma das práticas comuns dos membros da comunidade pitagórica era não serem enterrados com vestimentas feitas com lã e Pitágoras chegou a ser ridicularizado por impedir que batessem em um cão, dizendo que reconhecia o espírito de um amigo.
Teofrasto (século IV a.C.) seguindo a doutrina pitagórica argumentou contra o sacrifício animal, dizendo que este aparecera tardiamente, advindo da substituição do sacrifício humano (que nascera em tempos de fome, onde se praticava o canibalismo). Um dos principais argumentos era que quem governava antes de Zeus era a deusa Afrodite e a ela eram oferecidos apenas frutos da terra.
O modo de vida pitagórico, que hoje conhecemos como vegetarianismo, também era tido para elevação espiritual, onde este era um método de aproximação com os deuses e purificação da alma.
Conclusão
A maioria dos matemáticos e professores de matemática ignora a ligação de Pitágoras com o vegetarianismo, seus ensinamentos de respeito aos animais não-humanos e sua doutrina filosófica de que tudo se renova. O que nos foi ensinado na escola foi apenas um teorema, de modo mecânico que aprendemos a decorar, que como vimos na citação de D’Ambrosio nem fora criado originalmente por ele, mas é erroneamente creditado a ele.
Pitágoras foi um grande sábio da antiguidade e seus ensinamentos não se restringem apenas a Matemática, mas expandem-se, principalmente, à Ética ao propor já no século VI a.C uma moral que respeitava e via como iguais os não-humanos.
Nota: Agradeço ao historiador estadunidense Rynn Berry (in memorian) e a Chris Abreu-Suzuki professora da City University of New York pelas palestras e diálogos sobre Pitágoras e, a Isabella Liberato pela ajuda com a tradução do inglês.
 

Referências Bibliográficas

 

BERRY, Rynn (2003). Famous vegetarians. New York: PythagoranPublishers.
BOYER, Carl B. (1996). História da Matemática. 2ª ed. São Paulo: Edgard Bluncher.
CYRINO, Hélio (2006). Matemática & Gregos. Campinas: Editora Átomo.
D’AMBROSIO, U. (1993). Etnomatemática. São Paulo: Ática.
DENIS, Leon (2012). Educação Vegana: tópicos de direitos animais no ensino médio. São Paulo: LibraTrês.
EVES, Howard (2011). Introdução à história da matemática. 5ª ed. Campinas: Editora da Unicamp.
KAHN, H. Charles (2007). Pitágoras e os Pitagóricos. São Paulo: Loyola.
LIMA, Elon L; et. all. (2013). Temas e problemas elementares. Rio de Janeiro: SBM.
MONTAIGNE, M. (1972). Ensaios. São Paulo: Abril Cultural.
RAVEN, J. E; SCHOFIELD, M; KIRK, G. S (1984). Os filósofos pré-socráticos: historia crítica com seleção de textos. Lisboa: Fundação Calouster Gulbenkian. (edição bilíngue: grego/português).

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