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A crueldade nossa de cada dia

17 de março de 2016
5 min. de leitura
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Eu não vou mentir; eu fiquei chocada quando li que o ator e galã Rodrigo Hilbert, hoje mais conhecido pelo seu programa culinário “Tempero de família”, da GNT, matou impiedosamente um filhote de ovelha diante das câmeras de televisão. Eu fui tomada por um horror imenso, mesmo sem ver a cena. De fato, como vegana, não assisto aos programas de culinária que existem por aí, por razões óbvias, mas vi de relance a cena em uma fotografia. Foi o suficiente para me abalar. Pergunto-me, no entanto, por que este fato me produziu ainda mais horror do que os milhares que sei por dia? É claro que razões não faltam para o meu sentimento de pesar e mal-estar, desde a vida que foi roubada daquele pequenino e inocente ser, por motivo torpe e banal, até o fato de que não se espera ver um homem ligado à arte, cuja marca é uma sensibilidade mais aguçada, agir de maneira tão fria e brutal. Mas a pergunta mais importante é: de onde vem esta frieza que faz tanto o Rodrigo quanto milhares de outros seres humanos (nos campos ou nas cidades, pois são muitos os matadouros em todo o mundo) não sentirem qualquer empatia com estas vidas escravizadas, humilhadas, tratadas como objetos, peças descartáveis? Vidas que sentem, que sofrem, que também querem viver…
Enquanto escrevo isso, as lágrimas voltam, e não só por aquela ovelha criança (e não digam que estou antropomorfizando os animais; ao contrário, eu nos “animalizo”, porque somos animais antes de tudo, e não há vergonha em ser um animal; vergonha devemos ter de sermos animais tão tiranos e tão cegos, a ponto de, sendo tão inteligentes, não entendermos como somos os próprios atores da nossa tragédia); as lágrimas são por todos os milhões de animais que são mortos todos os dias, só para o dito bem-estar humano, uma degenerescência atávica dos tempos primitivos, em que a luta pela vida fez o homem optar pela escravidão de outras vidas ou também pela nossa ignorância, quando se pensava que o homem não poderia sobreviver sem consumir cadáveres, porque é isso que é a carne dos animais mortos.
Hoje isso não mais faz sentido, ou melhor, a verdade é que não se trata de sentido. A tirania é uma marca humana das mais terríveis; lutamos contra ela o tempo todo, mas não percebemos que o tirano vive em nós. O tirano não está fora; ele foi introjetado para nos fazer servir melhor ao sistema criado e assim reproduzirmos, tal como no filme “Matrix”, um mundo que só é sedutor para quem não sabe as consequências e os impactos reais disso na vida humana como um todo. Todos os nossos desajustes, desesperos, toda nossa dor, somos vítimas e algozes de nós mesmos.
É fato, no entanto, que muitos preferem não saber, como em “Matrix”, para não ter que deixar de saborear os pratos que estão acostumados (um churrasco de bebê ovelha, por exemplo; aliás, nas churrascarias, muitos daqueles que se indignaram, como eu, com o Hilbert, costumam pedir uma carne bem tenra e não ligam a mínima se ela é ou não de um filhote que nem teve tempo de viver direito). Em suma, preferem não ver ou não pensar nisso, para não terem que deixar de saborear ou simplesmente não precisarem ter que admitir que, mesmo sabendo, preferem continuar explorando as vidas para realizar desejos que julgam essenciais. Sim, pode parecer a muitos que viver sem um churrasco ou até sem um bolo de chocolate, feito com leite condensado de origem animal, torna a vida sem sentido, mas, para além da fragilidade de uma vida que torna a sua alegria refém da culinária, estes não sabem, ou talvez não queiram saber, que existem formas alternativas e saborosas de comer, que até incluem hoje alimentos que se parecem com aqueles (talvez por conta de um capitalismo oportunista, mas que não deixa de servir aqui, se levamos em conta que o sabor, o paladar, são fatos culturais e afetivos).
É claro que esse tema aponta agora mais diretamente para a questão da nossa alimentação, mas os animais são abusados em todos os âmbitos. E isso vai muito além de Rodrigo Hilbert ou de sua maneira irrefletidamente cruel de viver desprezando os outros seres vivos do mundo. Sim, ele matou com as próprias mãos um ser indefeso e gentil (exatamente porque foi domesticado e confia em nós), e isso é muito chocante, mas, como ele, há muitos que fazem a mesma coisa, e outros que não fazem com as próprias mãos, mas que se beneficiam dos que fazem. Sem contar dos que fazem disso um negócio próspero e altamente enriquecedor. Todos estão anestesiados, mortificados, já insensíveis. Está na hora de tomarmos a “pílula certa”, porque outros continuarão aparecendo para nos lembrar que o animal humano não tem sido aquele dos nossos sonhos, e que nós mesmos não somos o que pensamos ser. A pílula certa não nos levará à guerra contra outros homens. Levará à guerra contra nós mesmos, contra o tirano que ainda habita em nós e que nos faz escravos cegos de um mundo que não fomos nós que construímos, mas que reforçamos a cada dia, mesmo sabendo que está errado. Um mundo que podemos transformar, desde que a gente resista e não desista de ser verdadeiramente humano.

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Divulgação

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