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CRMV tenta impedir mas justiça garante trabalho voluntário de veterinários em SC

23 de agosto de 2013
10 min. de leitura
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O Conselho Regional de Medicina Veterinária de Santa Catarina estava impedindo a participação de médicos veterinários em mutirões de castração de cães e gatos. Em virtude disso, alguns veterinários entraram na justiça para requerer uma liminar para continuarem com os trabalhos. No início do mês, o juiz Hildo Nicolau Peron deu parecer favorável aos médicos veterinários voluntários. Leia abaixo o parecer na íntegra:

SENTENÇA

I – Relatório

Trata-se de ação preventiva na qual as impetrantes, veterinárias inscritas no Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV/SC) para ordenar que a autoridade impetrada abstenha-se de impedi-las de participar dos mutirões de esterilização de controle populacional de cães e gatos.

As impetrantes alegam, em síntese, que a autoridade impetrada está lhes impedindo de exercer livremente sua profissão, pois realizam trabalhos voluntários para organizações não governamentais (ONGs), em mutirões de esterilização de controle populacional de cães e gatos, os quais, segundo o CRMV/SC, só podem ser realizados com sua autorização prévia.

As impetrantes instruíram a petição inicial com procuração, documentos e com o comprovante do recolhimento das custas processuais (evento 1).

O MM. Juiz que me antecedeu no feito indeferiu a medida liminar, por considerar ausente o requisito de risco de ineficácia da medida, caso concedida apenas ao final, uma vez que não havia nos autos comprovação de que as impetrantes realizariam, em breve, novos mutirões (evento 10).

As impetrantes pedem reconsideração da decisão de indeferimento da medida liminar, tendo em vista as novas solicitações de realização de mutirões de esterilização de controle populacional de cães e gatos. E instruem esse pedido com novos documentos (eventos 15 e 18).

Deferi a ordem liminar (evento 21).

O CRMV/SC requereu seu ingresso na lide (evento 24).

Notificada, a autoridade impetrada prestou informações (evento 25). Preliminarmente, arguiu a inadequação da via eleita. No mérito, requereu a denegação da segurança.

O Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se pela concessão da segurança (evento 28).

O CRMV/SC interpôs agravo de instrumento (evento 30) e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) negou seguimento ao recurso (evento 32).

II – Fundamentação

Analiso, inicialmente, questão formal.

Adequação da via eleita. O CRMV/SC alega que pretende a realização de prova testemunhal e pericial para desconstituir as alegações das impetrantes (INF_MAND_SEG1/evento 25). Todavia, os pedidos das impetrantes não se referem a fatos, mas sim a conduta contra legem da autarquia, ou seja, a matéria é de direito. Frise-se que os fatos narrados quanto aos atos praticados pelo CRMV/SC para impedir a atuação das impetrantes são irrelevantes para julgar a lide, que, repito, versa unicamente sobre matéria de direito. Logo, afasto a preliminar.

Mérito

Diante das informações trazidas aos autos, não vejo razões para modificar a decisão liminar (evento 21), mantida pelo TRF4 (evento 32) e corroborada pela manifestação do MPF (evento 28), motivo pelo qual a reedito e a utilizo como fundamentos para decidir a lide, conforme segue.

É fato público e notório que as cidades catarinenses (como de resto na maior parte do Brasil) contam com inúmeros cães e gatos domésticos vivendo nas ruas.

Na busca de soluções, não é incomum autoridades recorrerem a medidas radicais e notoriamente ilegais, como é a captura e eliminação, noticiada em maio/2013, em relação ao município de Santa Cruz do Arari – PA.

Chega a ser difícil imaginar a quantidade. Seria necessário montar equação matemática para visualizar a imensidão de indivíduos das espécies canina e felina que poderiam advir a partir de duas ou mais ninhadas/ano, com início de vida fértil desde tenra idade e por muitos anos.

Nesse contexto, acentua-se a relevância social, sanitária e ambiental das campanhas de controle populacional de animais domésticos (em especial quanto aos animais que vivem nas ruas ou estão sob a guarda de famílias de baixa renda), inclusive com esterilização cirúrgica, associada à educação para guarda consciente e responsável de animais.

A Constituição Federal de 1988 – CF/88 estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225).

Para assegurar a efetividade desse direito, a CF/88 incumbiu ao Poder Público obrigações específicas, dentre as quais se encontra a de proteger a fauna e flora, sendo vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225, §1°, VII).

Porém, são notoriamente escassos os investimentos governamentais nessa seara da educação para a posse e guarda responsável de ‘animais domésticos de estimação’, no caso de cães e gatos, o que não chega a gerar perplexidade quando tantas necessidades básicas humanas pendem insatisfeitas, dentre outras, também por razões financeiras.

Bem por isso proliferaram diversas ONGs e profissionais da área, dentre os quais se incluem as impetrantes, para minimizar as carências educacionais e ambientais, nestas inseridas os mutirões de castração de cães e gatos, que são uma questão de saúde pública que devem, indubitavelmente, não apenas ser facilitada e oportunizada, mas, sobretudo, estimulada pelo Poder Público.

A problemática parece já estar sendo objeto de atenção por parte do Ministério Público Federal em Santa Catarina, o qual já expediu recomendação ao CRMV para que apóie, estimule e auxilie, no âmbito de suas atribuições legais, as campanhas de controle populacional de cães e gatos no Estado de Santa Catarina (evento 8, INF16). Recomendação esta que parece não estar sendo seguida. Pelo contrário!

O que se tem é que o CRMV/SC vem dificultando a atuação das impetrantes quando intentam participar de campanhas de esterilização de cães e gatos, e enfrentam o óbice de uma burocracia desarrazoada e ilegal envolvendo a exigência de prévia autorização (evento 8, NOT/PROP7). Foi o que se deu quando requereram aprovação ao CRMV/SC do Projeto de Mutirão de Esterilização Cirúrgica (protocolo n° 12328 de 24/09/12), com pedido de averbação de responsabilidade técnica (ART), indeferidas, por não atender aos requisitos da Resolução 962/2010 e por focarem suas ações no volume de cirurgias, em detrimento da educação em saúde e guarda responsável dos animais (evento 8, INF10), depois da malfadada atuação do CRMV/SC envolvendo o mutirão realizado em Alfredo Wagner/SC.

A CF/88 em seu art. 5°, inciso XIII dispõe: é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

A Lei n° 5.517/68 dispõe sobre o exercício da profissão de médico-veterinário e cria os Conselhos de Medicina Veterinária. Em seu Capítulo I, constam as exigências para o exercício profissional, as quais presumo são atendidas pelo simples fato de as impetrantes estarem, há longa data, inscritas no CRMV/SC.

Da análise dessa lei (art. 18), verifico, também, que dentre as atribuições do CRMV não se inclui a de autorizar a realização dos programas de controle populacional de cães e gatos, mormente quando organizados pelas ONGs com a colaboração de veterinários voluntários, como responsáveis técnicos.

Assim sendo, por melhor que seja a intenção, não cabe ao CFMV ou ao CRMV/SC estabelecer limitação ao exercício profissional com base em mera Resolução, sem respaldo legal, conforme já se decidiu no TRF da 4ª Região:

EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA – CRMV/SC. SANÇÃO. LEI. RESOLUÇÃO. Somente a lei em sentido estrito é que pode estipular condições para o exercício da profissão, não podendo uma mera resolução estipular sanções ou condições para o exercício profissional. (TRF4, APELREEX 5003570-50.2012.404.7206, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Loraci Flores de Lima, D.E. 27/02/2013)

Por outro lado, analisando o projeto apresentado pelas impetrantes ao CRMV/SC (evento 8, PROJ9), não é possível inferir que esteja em desacordo com a Resolução 962/2010 do CFMV. Tanto que idêntico projeto da impetrante Marina Moneta Dantes obteve aprovação junto ao CRMV/SP, com a averbação da Anotação de Responsabilidade Técnica da profissional, com vigência para todo o ano de 2013 (evento 8, PROJ11).

São relevantes, pois, as alegações de que o ato impetrado se mostra ilegal ou abusivo.

Do risco de danos irreparáveis ou de difícil reparação

Também esse requisito está devidamente comprovado nos autos (evento 18), visto que diversos municípios catarinenses (Ituporanga, Rio do Sul, Alfredo Wagner, Bom Retiro e São Joaquim) enfrentam ameaças à saúde pública com os animais domésticos que vivem nas suas ruas, multiplicando-se descontroladamente, sem disporem de Centros de Zoonose.

Educar e conscientizar a população quanto à posse e guarda responsável dos animais domésticos é extremamente importante, mas não estanca, de imediato, o grave aumento do seu número nas ruas dos municípios. Portanto, são vias que não podem ser colocadas como excludentes da atuação do médico veterinário, até porque o papel educacional não é seu, e sim do Poder Público.

Vale dizer: enquanto a população não for educada e conscientizada, a esterilização é a forma mais eficaz de combater a raiz do problema e minimizar os impactos com os nascimentos, mortes nas ruas por múltiplas formas cruéis (v.g., atropelamentos, fome, doenças, envenenamentos, maus-tratos).

Portanto, há ilegalidade no ato impetrado.

Embargos declaratórios (art. 535, Código de Processo Civil – CPC). Depois de sentenciada é reduzidíssima a atuação do juiz da causa (art. 461, I e II, CPC). Cada recurso tem sua adequação e esse cabe apenas para obter integração válida de decisão obscura, contraditória ou omissa. É dizer: trata-se de exceção à hipótese de encerramento da jurisdição e, como tal, exige interpretação literal. Por isso, causa repulsa o seu uso indevido e, mais ainda, para fim protelatório, em prejuízo da Administração da Justiça, o que não tem sido incomum. Anoto ainda, que: a) mesmo quando utilizado para fins infringentes sua admissão é restrita a casos de nulidade manifesta do julgado (RTJ 89/548, 94/1.167, 103/1.210, 114/351); e b) para arguir erro material é descabido, pois basta uma simples petição. Daí este registro, para advertir sobre a possibilidade de imposição da multa legal (arts. 14 a 17, CPC), com amparo na jurisprudência, v.g.: STF, EDcl no AgR no AI 460253 AgR-ED, 2ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, D.Je 18.2.2010; STJ, EDcl nos EDcl no AgRg nos EREsp 838061, S1, Rel. Min. Humberto Martins, D.Je 6.11.09; e TRF4, AC 2004.71.00.034361-2, 3ª T., Rel. Juíza Federal Marina Vasques Duarte de Barros Falcão, D.E. 27.1.2010.

III – Dispositivo

Ante o exposto, AFASTO a preliminar, CONFIRMO a ordem liminar, CONCEDO a segurança e julgo o processo com resolução do mérito – art. 269, I, CPC. Por conseguinte, DETERMINO ao CRMV/SC que se ABSTENHA de praticar quaisquer atos tendentes a impedi-las de participarem profissionalmente dos eventos de esterilização de cães e gatos no Estado de Santa Catarina, quer sejam patrocinados por ONGs e/ou em parceria com o Poder Público, inclusive homologando a ART já apresentada pelas impetrantes, bem como outras idênticas que venha/m a apresentar.
Sem honorários advocatícios – art. 25, Lei n. 12.016/2009.

Condeno o CRMV/SC a reembolsar as custas iniciais adiantadas pelas impetrantes (GRU3/evento 1), atualizadas pelo IPCA-E desde a data do desembolso. Custas finais isentas – art. 4º, I, Lei n. 9.289/96.

Defiro o ingresso do CRMV/SC na lide – art. 7º, II, Lei n. 12.016/2009. Intime-se-lhe desta sentença e dos demais atos processuais.

Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição – art. 14, § 1º, Lei n. 12.016/2009. Caso seja interposta apelação (tempestiva e, se for o caso, preparada), recebo-a somente no efeito devolutivo – art. 14, § 3º, Lei n. 12.016/2009. Nesse caso, deverá a Secretaria da Vara intimar a parte adversa e, após, remeter os autos ao TRF4.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Florianópolis, 02 de agosto de 2013.
Hildo Nicolau Peron
Juiz Federal Substituto

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