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A ética e o urubu

22 de setembro de 2010
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Na forma tradicional de se pensar a ética, os animais não humanos não são considerados dignos de respeito, a menos que sirvam a algum propósito, interesse ou necessidade humana. Naquele modo de pensar, só são dignos de respeito os seres humanos, e a razão pela qual o são é o fato de serem dotados de razão. O cuidado ético destina-se somente àqueles que podem retribuir a ação boa com outra boa, ou ainda melhor. O fim para o qual a ética existe é apenas atender mais uma necessidade considerada genuinamente humana: dar e receber na mesma medida, a da justiça.

Fora do círculo da racionalidade capaz de retribuir o bem com o bem ou com algo ainda melhor, ninguém está contemplado na ética antropocêntrica. Assim, os filósofos tradicionais trouxeram ao longo dos séculos, para não dizer, dos milênios, uma concepção na qual animais não humanos e ecossistemas naturais não são objeto de consideração ou respeito moral.

No último quartel do século XX, influenciados pelos argumentos do teólogo britânico defensor dos animais, Humphry Primatt, o filósofo australiano Peter Singer, o cientista britânico Richard Ryder e o teólogo britânico Andrew Linzey rompem com a ética antropocêntrica racionalista e colocam na pauta do debate a questão da capacidade para sentir dor, sofrer e ter a integridade física e psíquica violada pela ação de agentes morais, como critério para se julgar se um ser merece, ou não, consideração moral. Com essa virada, a ética deixa de seguir o eixo da racionalidade ou capacidade de retribuir o bem com o bem, e passa a considerar que nenhum agente moral tem direito de fazer o que quer que seja, caso sua ação implique causar dor, dano, sofrimento ou morte a qualquer ser dotado de sensibilidade e consciência. Os filósofos tradicionais não saíram de sua posição antropocêntrica, mas os críticos passaram a adotar o argumento da senciência para definir o limite da liberdade humana na interação com outros animais destituídos da forma humana da razão.

O conceito de dano e o de sofrimento abrem o círculo da comunidade dos seres capazes de serem afetados pelas ações dos agentes morais. Com esses dois conceitos cai a barreira que separa os humanos dos demais animais. Entre as ações mais capazes de causar dor, dano ou sofrimento a um animal, seja lá de qual espécie for, inclusive da humana, está o confinamento forçado. O animal é um ser vivo que se define pela liberdade física, no sentido de que provê seu corpo dos meios de subsistência através da capacidade de mover-se no ambiente natural e social próprio de sua espécie. Em cada animal se forma a mente capaz de mantê-lo em vida às próprias custas. Sem essa liberdade, a de prover-se a si mesmo com os meios que sua espécie lhe dá, o animal sofre. Se tal privação se prolonga, não apenas o corpo do animal sofre alterações, mas também seu espírito passa a enfraquecer, como se fosse gradativamente privado da mente que se formou desde o dia do seu nascimento para mantê-lo vivo e preservar o bem próprio que isso representa para si.

Os seres humanos, ao longo dos dois milênios nos quais prevaleceu a ética antropocêntrica e hierárquica, pela qual se nega aos animais o estatuto de seres dignos de consideração e respeito moral, consideram que seres vivos podem ser aprisionados, usados, explorados e até mesmo mortos para atender quaisquer propósitos humanos, porque são destituídos de finalidade própria, dado que não possuem a racionalidade típica dos humanos. Com esse pretexto faz-se de tudo com os animais, tratados como objetos dos quais nos apropriamos sem mais nem menos, como se não fossem seres vivos sensíveis, não tivessem uma mente própria de sua espécie, não vivessem para realizar os propósitos de sua espécie de vida. Os humanos chegaram a pensar com tal lógica, por muitos séculos, que isso também valia, mesmo em relação a outros humanos, considerados destituídos de alma: índios, negros e mulheres, por exemplo.

Tal lógica formata a mente da quase totalidade dos humanos, ainda em nossos dias. Animais são forçados ao nascimento sem que haja um ser humano interessado em suas vidas, apenas nos restos mortos de suas carcaças. Outros são forçados ao nascimento sem que haja um ser humano sequer interessado em que permaneçam em vida depois de serem exauridos por experimentos ditos científicos e médicos. Há animais que são forçados ao nascimento apenas porque humanos querem vendê-los como mercadorias, e com a mesma leviandade os descartam assim que apresentam algum “defeito”. Mas a lista das coisas que podemos fazer injustamente aos animais não para por aí. Alimentação, experimentação, estimação e diversão não esgotam o leque de maus costumes adotados e seguidos por muitos humanos quando se trata da vida animal.

Como se não houvesse matéria suficiente nesse mundo para ser plasticizada, humanos que se dizem artistas passam a usar animais vivos para montarem suas “criações”. O animal é usado com a mesma naturalidade com a qual se usa matéria inerte, como objeto. Para isso, é preciso ser levado do seu ambiente natural, confinado num espaço artificial que emite estímulos olfativos, sonoros, visuais e táteis não apropriados ao bem-estar da ave transformada em personagem numa montagem tirânica, pois o único ser beneficiado com o sequestro do animal de seu ambiente natural e social específico é o próprio artista, cujo nome passa a ser estampado nos jornais, na internet e vira alvo da crítica dos defensores dos direitos animais.

A ciência, do mesmo modo que a arte, tem costume de se autoqualificar de neutra. Na arte, como na ciência, não há espaço para qualquer juízo de valor, a não ser que o cientista ou o artista tenham seus projetos recusados pelas agências financiadoras. Daí, sim, eles passam a emitir juízos de valor sobre os pareceristas que lhes negaram o financiamento de suas performances “criativas”.

Um urubu tem direitos? Um humano tem direito de usar um urubu para fazer montagens performáticas numa exposição de arte? O que dá ao urubu o direito de não ser atormentado pelo artista? O que tira do artista o direito de atormentar o urubu?

Toda ação criativa implica uma intervenção humana na matéria fonte a partir da qual a mente criativa projeta ou inventa uma nova dimensão para aquilo que até então se julgava ser o “mesmo”. Novas formas nada mais são do que espaços novos, abertos para que a mente humana possa prosseguir com seus sonhos, escapando da imobilidade à qual sua materialidade parece lhe condenar (agradeço aqui ao arquiteto Américo Ishida a leitura de Mafesoli sobre o nomadismo…).

Mas, que sentido tem usar um ser vivo de outra espécie para plasmar uma realidade que, mesmo servindo à imaginação criativa ou à crítica criativa, possíveis à mente humana, de nada adianta ao animal sequestrado e confinado no espaço da mostra internacional de arte? Quando usamos outro ser senciente, que tem um bem próprio segundo o alcance e os limites de sua realidade biológica e, portanto, mental, sem que esse ser tenha qualquer proveito disso, estamos simplesmente, mais uma vez, explorando um animal para atender propósitos nossos, bastante triviais.

Uma coisa é interagir com seres vivos de outras espécies; outra, intervir em suas vidas de modo tal que sejam impedidos de gozar o que seu espírito ou mente lhe propicia. Nesse caso, nossa interação deixa de ser ética, pois implica uma inter-ferência, essa forma negativa de intervir na vida alheia ferindo-a ou trazendo-lhe prejuízos em vez de benefícios, ferindo, em vez de defender. Não adianta alegar que o animal está sendo bem tratado, porque cada espécie animal só é bem tratada se não for privada da liberdade de buscar por si mesma os meios de que necessita para assegurar seu próprio bem a seu próprio modo. Isso vale para todas as interações humanas com todos os tipos de animais. Lutamos, no Brasil, para que nenhum circo volte a usar animais em suas apresentações. É preciso que nenhuma mostra de arte seja autorizada a fazer uso de animais para criar realidades absolutamente desnecessárias ao espírito dos animais.

Deixamos de ser éticos quando fazemos aos animais algo de que eles não precisam, pois isso significa que o único interesse buscado é o daquele que teve a ideia de usar um ser vivo em sua montagem, como se esse ser fosse um vivo-vazio. Descartes afirmou isso, que os animais são vivos-vazios ou autômatas, há quase quatrocentos anos. Mas nos últimos vinte anos se publicou imensamente sobre a mente, os sentimentos, as emoções, a linguagem, a consciência e a racionalidade específicas de cada animal. Por que o artista não lê nenhum desses livros? Sua ação não está além do bem e do mal (Nietzsche). Se seu propósito, ao expor uma ave catartídea, é chamar a atenção dos visitantes para o fato de que esse animal se alimenta de cadáveres, por que o artista não se pôs ele mesmo na cena a comer cadáveres? Afinal, comer cadáveres lhe é algo bastante corriqueiro, habitual. Chamaria bastante a atenção dos passantes. Seu gesto seria olhado de forma indagativa. Poderia ter deixado o urubu em paz. Na natureza, o urubu faz uma faxina ao comer carnes em decomposição. Ao contrário, os humanos, em sua necrorexia, alastram lixo e sujeira pelo planeta afora, ao produzirem e abaterem animais para extrair matéria morta e ingeri-la como alimento. Um humano necroréxico bastaria para compor a montagem carnivorista. Urubus não podem escolher não comer carne decomposta. Humanos podem escolher não comer o que implica assassinato.

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