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Velhinhos, "cãopanheiros" viveram muito e difícil agora é aceitar a despedida

18 de julho de 2014
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Mel com 14 anos continua com as orelhas compridas, mas já não ouve igual. (Foto: Marcelo Victor)
Mel com 14 anos continua com as orelhas compridas, mas já não ouve igual. (Foto: Marcelo Victor)

As quatro patas da Mel já não correm com a mesma agilidade de quando entraram na vida da família Coelho, 14 anos atrás. A cocker spaniel prefere passar os dias deitadinha, mal senta, e se cansa logo no início da caminhada. As orelhas compridas não ouvem tão bem quanto antes. Os olhos que hoje aparentam cansaço de quem muito viu a tutora chegar em casa, também estão deixando de funcionar aos poucos. É hora de se preparar para a despedida.

Que eles vivem menos do que nós, isso é certo. A expectativa de vida de um pet varia de acordo com a raça, mas não vai além dos 16, 17 anos. Por terem menos tempo, parece que eles têm a necessidade de aproveitar tudo ao máximo. Latem, brincam, sorriem, dão amor e fazem arte para que a vida não passe batido. Nem a deles e nem a nossa.

“A Mel entrou na nossa vida assim, eu tinha um poodle que levava num pet shop e um senhor de lá me ofereceu ela. Queria vender, eu disse que eu não comprava cachorro, porque tinha muitos de rua, mas se ele quisesse dar, eu pegava”, relembra a aposentada Joelma da Silva Coelho, de 68 anos.

Uma bela noite, o mesmo senhor bateu à porta de Joelma. “Quando eu abri, ela correu e pulou em cima do sofá, tinha quatro meses, era magrinha. Eu perguntei e aí vai me dar ou vai vender e ele respondeu que ia me dar”. As travessuras de Mel levavam a tutora à loucura. As portas do quarto precisavam ficar fechadas e a casa teve de abandonar o hábito das plantas. As colchas de cama viravam chupeta para a cocker até que fossem furadas e nas plantas, a filhote enxergava um inimigo em potencial, porque quando menos se esperava, estava ela destruindo o vaso.

Companheira e amiga da dona Joelma, filhote chegou à casa com 4 meses (Foto: Marcelo Victor)
Companheira e amiga da tutora Joelma, filhote chegou à casa com 4 meses (Foto: Marcelo Victor)

“Olha eu só fiquei com ela porque eu gosto muito de cachorro mesmo”, lembra. Mel já tinha passado por seis casas, mas só encontrou um lar com Joelma. “Agora ela está com 14 anos e não quero nem pensar, se um dia…” A frase ela não termina. O medo da despedida cala a voz e as palavras. Na teoria Joelma sempre soube que aquela filhote morreria um dia.

“Hoje ela é assim, muito mais calma, mas foram quase duas eutanásias. A veterinária sempre disse que ia tentar, mas que não sabia se haveria um jeito. Uma das vezes, uma doença na pele evoluiu tanto que Joelma não queria chegar até a clínica. “Meu medo era chegar lá e ter uma notícia ruim. Dessa vez eu cheguei e ela estava me esperando no portão com um lacinho. A veterinária só disse que era um milagre e porque ela era muito amada”, afirma.

Amor nunca faltou à Mel. A tutora já tinha experiência com cães, inclusive da raça da cadela, e sabia que cedo ou tarde, teria de se despedir. “Essa raça não dura tudo isso, vai no máximo até 11, 12 anos”, tenta se consolar. Joelma sabe que a partir de agora o caminho é o de se despedir.

Mel é quase gente na casa e se fosse pessoa a tutora avalia que seria das melhores para se conviver. Ela que sempre morou em apartamento já dividiu teto com cachorro, seis filhotes recém nascidos da “irmã” e gatos. Mas o que gosta mesmo, além do carinho da tutora, é de laranja. Quando Joelma chama para comer “lala”, ela espera que descasque a fruta e se esbalda.

O cenário de uma cadela brincalhona e espivetada tem ficado no passado. “Ela já anda muito devagar, às vezes para na rua e eu tenho que carregar, levantar ela é um custo”, comenta Joelma – em parte porque o animal sempre esteve acima do peso.

“Eles se tornam da família, sabe? Os cachorros, eles não cobram nada de você, são uma retribuição infinita do amor que a gente dá. Pode chegar em casa chateado, que ao abrir a porta, a primeira coisa é encontrar com eles e eles nem querem saber se você trouxe alguma coisa”, explica.

Sobrevivente de um tumor e totalmente surda, Kiara não se dá conta da idade e foge até hoje (Foto: Marcelo Victor)
Sobrevivente de um tumor e totalmente surda, Kiara não se dá conta da idade e foge até hoje (Foto: Marcelo Victor)

Nos dias de angústia, tristeza e até solidão, Mel foi a fiel escudeira. “Ela põe a patinha na minha perna como quem diz: não fica assim. Ela é uma grande amiga, minha companheira e nós já passamos por altos e baixos”, relata.

Agora o relógio corre mais rápido, os ponteiros puxam consigo os dias do calendário, diminuindo assim o tempo de Mel na casa onde fez um lar. “Eu me arrependo de nunca ter deixado ela cruzar. Quando eu perder ela, não vai ter mais nada aqui para falar, era da Mel. A gente nunca está preparado. Eu tenho que estar, eu sei disso, é a vida. A gente nasce e morre, mas vou sentir falta, muita falta”.

Fujona até hoje – Nas nossas andanças em busca de cães na terceira idade, encontramos Kiara Pelúcia. O nome completo é este, mas a tutora, Jacqueline Nascimento, de 32 anos, nunca a chamou assim, nem para dar bronca, o que segundo ela, nunca foi preciso.

Aos 15 anos, Kiara é fruto de uma mistura de fox paulistinha com pequinês. Nasceu branca e chocolate, mas agora as manchinhas coloridas deram lugar aos pelos brancos. Ela já não ouve nada, nadinha mesmo. Para chamá-la é preciso ir até ela. A vantagem é que a pequenina continua espoleta como se fosse um filhote. “É que ainda não contaram que ela é uma idosa”, brinca Jacqueline.

A cadela foi dada por um amigo logo que nasceu e chegou à casa da tutora ainda como uma “bolinha de pelo”. A surdez de hoje foi gradativa, no entanto ano passado ela ‘baqueou’ mais um pouquinho e já começou a preparar a família para sua despedida. Kiara teve um tumor na mama, correu risco na cirurgia, mas teve uma recuperação milagrosa.

Nos 15 anos de vida, Kiara já fez até aula de dança com a tutora. “Ela foi me seguindo até lá, quando eu vi, não dava para trazer ela de volta, então ela entrou comigo. Ficou deitada de barriga para cima como eu e ficava me olhando”, recorda uma das histórias que vai ficar para sempre na memória de Jacqueline.

“A morte é inevitável, é a única certeza da vida. A gente pode até falar que está preparado, mas nunca está”, comenta. E não é que durante a entrevista, a cachorrinha escapou pela grade do portão e fugiu pra rua? Continua fujona e dando susto até hoje.

O Soneca – Com 17 anos de vida, o cachorro “salsichinha” ganhou o nome devido ao sono que sempre foi em abundância. Hoje, ele se locomove pela casa bem devagar, já não sobe ou desce degraus sozinho e nem ouve quando alguém o chama.

A tutora, Lenita Cavalheiro de Lima, de 54 anos, teve de aprender a assoviar. “Só assim que ele escuta”, explica. As complicações da idade lhe tiraram além da audição, a visão nítida e em troca disso deixaram a sensação de frio e problemas renais. “Ele só fica de roupinha porque sente muito frio”, afirma. Há cinco anos ele saiu para passear e não voltou por 15 dias. Depois do sumiço repentino, passou a começar a apresentar problemas. “Ele vai fazer 17 anos, é membro da família, presenciou tudo. O crescimento do meu filho”, conta.

Se não tivesse o Soneca na casa, era certo que haveria outro cão. “Cachorro sempre traz harmonia para a casa. E eu só peço a Deus, quando ele for, para que não sofra”.

A expectativa de vida dos cães aumentaram de uns anos para cá, devido aos cuidados com alimentação, vacina e visitas ao veterinário, mas nada que ultrapasse a maioridade, ou seja, os 18 anos. Veterinária Débora Cristina Ribeiro Lachi, de 37 anos, explica que a anatomia dos cães é inversamente proporcional à expectativa de vida deles. “Quando maior o porte, menos dura o cachorro. Um poodle pode durar até 17 anos, um rottweiler até 10”.

De um modo geral, a partir dos 9 anos, os cães já precisam mudar a alimentação e adotar a ração específica de idosos. “Alguns apresentam cataratas, problemas de visão, articulares”, explica.

Soneca sempre gostou de dormir, hoje sente mais frio e só escuta o chamado se vier de um assovio (Foto: Marcelo Victor)
Soneca sempre gostou de dormir, hoje sente mais frio e só escuta o chamado se vier de um assovio (Foto: Marcelo Victor)

Há 11 anos na área, ela já viu tutores sofrerem muito quando a temporada das despedidas é aberta. “Às vezes a pessoa tem cachorro desde que o filho nasceu. Há os que sabem que o animal não vai durar muito, mas faz o possível para melhorar a sobrevida”, afirma.

Sobre o que sempre se ouviu, de que para morrer os cães se afastam dos tutores, Débora explica o porquê se entendeu por tanto tempo que este era um hábito dos pets. “Antigamente o cão ele não ficava próximo da residência, dentro de casa, ele ficava no quintal. O que se percebia era que com o tempo ele não vinha mais ao encontro do tutor e ficava essa impressão, mas acredito que é exatamente ao contrário. Hoje eles convivem mais perto, dentro de casa e para mostrar que não estão bem é que eles se aproximam. O convívio e a soalização do cão com o homem é muito maior”, considera a veterinária.

O melhor amigo do homem também parte. Mas diferente dos tutores, eles não esperam a velhice para mostrar o amor que sempre tiveram no coração.

Fonte: Campo Grande News

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