EnglishEspañolPortuguês

Bin Laden e a vivissecção

15 de julho de 2011
14 min. de leitura
A-
A+

Não, entre os crimes atribuídos a Osama bin Laden, reais ou fictícios, não está a vivissecção. Pelo menos, não que eu saiba. É que as circunstâncias que motivaram, precederam e resultaram na sua morte me levaram a pensar na experimentação animal e o discurso usado para legitimá-la.

Explico-me…

 

Breve contextualização histórica

…Mas antes, permitam recapitular, brevemente, os fatos. Osama bin Laden era um ativista islâmico, formado na Arábia Saudita e que se reuniu às forças de resistência à ocupação da antiga União Soviética no Afeganistão, a partir de 1979. Para expulsar os soviéticos daquele país, não por motivos humanitários, mas geopolíticos (evitar a expansão da zona de influência da superpotência rival), o governo dos Estados Unidos fomentou, financiou e armou grupos islâmicos radicais que resistiam à ocupação, dos quais bin Laden fazia parte. A primeira parte da estratégia deu certo – mandar os soviéticos de volta pra casa. O evento teve, porém, desdobramentos aparentemente imprevistos pelos dirigentes estadunidenses.

Os radicais islâmicos deram impulso à nova onda de fundamentalismo religioso no Oriente Médio (antecedida pela Revolução Islâmica no Irã), uma resposta à ocidentalização que se dava naqueles países – geralmente por meio de regimes autoritários e corruptos apoiados pelos EUA. A influência estadunidense na região, combinada com seu apoio ao Estado de Israel, era vista não apenas como opressora e imperialista, mas também contrária às leis do Islã. Esses grupos buscam, ainda hoje, basicamente, instaurar regimes políticos inspirados nas suas interpretações das leis do Corão. Assim, os Estados Unidos passaram a ser percebidos como o maior inimigo ao progresso da sua causa, logo, inimigo da verdadeira fé, daí sua carinhosa alcunha de “Grande Satã”.

Osama bin Laden está entre aqueles aliados que se voltaram contra seu padrinho ocidental. Ele foi implicado, inicialmente, em atentados a bomba contra duas embaixadas dos EUA na África, no Quênia e Tanzânia, no ano de 1998.

O resto, todo mundo já sabe: os aviões colididos com as torres do World Trade Center (WTC), em 2001, atentado atribuído a bin Laden (fato por alguns contestado); a invasão do Afeganistão (aquele mesmo que antes os EUA apoiaram na resistência a outra invasão); a “Guerra ao Terrorismo”, seqüestro de suspeitos (basicamente qualquer muçulmano que estivesse no lugar errado, na hora errada) e seu confinamento na base militar de Guantánamo; invasão do Iraque em busca de armas de destruição em massa invisíveis. É aqui que a história começa a ficar interessante.

O herói e o vilão

Osama bin Laden, o homem mau, o vilão, se tornou inimigo público número um da superpotência – procurado vivo ou morto, no melhor estilo dos filmes Western.

Os Estados Unidos, o “mocinho” dessa história, sob a alegação de defesa – preventiva – invadiram alguns países, mataram alguns civis, seqüestraram alguns suspeitos, os levaram à força para outro país, os detiveram basicamente à margem de qualquer sistema legal – inclusive o estadunidense –, lá os mantiveram (e ainda mantêm alguns) por tempo indeterminado, sem acusação formal, sem acesso a advogados de defesa, sem comunicação com o mundo exterior e expostos a “técnicas especiais de interrogatório”, isto é, tortura.

Hipoteticamente, um dos detentos submetidos a essas “técnicas especiais de interrogatório” deu alguma informação que, seguida do devido trabalho de inteligência, levou à descoberta do paradeiro de Osama bin Laden. O governo estadunidense, agora sob administração de outro presidente, invadiu o domicílio onde se encontrava o homem mau, sem buscar anuência ou sequer avisar o governo do país onde este se encontrava, e lá ele, em vez de detido para o devido processo legal, foi executado. O próprio governo dos Estados Unidos muito se enrolou nas versões sobre a morte de bin Laden, fazendo com que as suspeitas quanto às circunstâncias do ocorrido sejam mais do que meras “teorias da conspiração”. Primeiro ele estava armado, depois não estava, depois estava desarmado, mas com uma arma ao alcance.

É aqui que a história fica realmente interessante. Perceberam alguma coisa estranha na conduta do “mocinho”? Os grandes heróis são geralmente associados a atos de bravura, altruísmo e desprendimento pessoal, elevado senso de justiça e moral, engajados em causas nobres. O problema é que 90% das vezes eles só existem no folclore. E dos outros 10%, 9,9% são apenas líderes/soldados/combatentes cujos atos de bravura envolveram muito sangue, violência e brutalidade, que apenas não aparecem nas grandes narrativas de seus feitos, seja por escassa documentação ou manipulação grosseira mesmo. Visto por esse ângulo, os atos do mocinho nem são tão estranhos assim. Merece destaque, porém, a impossibilidade de maquiar sua história. Os crimes cometidos pelo governo dos Estados Unidos são óbvios demais para serem negados.

Mas e quanto à sua justificação?

Questões morais da Guerra ao Terrorismo

Algumas questões morais podem ser suscitadas pela Guerra ao Terrorismo:

Onde começa o direito de legítima defesa? Ela pode ser “preventiva”, isto é, empregada antes da ameaça verdadeira manifestar-se?

Quais os limites dessa defesa preventiva? Ela pode recorrer à violência, mesmo que a violência não tenha sido anteriormente empregada?

(Notem que nas duas questões não estou falando dos arquitetos, reais ou imaginários, dos atentados ao WTC, e sim de invasões militares e execução e seqüestro de inúmeros indivíduos com base em tênues alegações de suspeita.)

A tortura pode ser justificada como método de interrogatório? Se sim, em que circunstância e até que limite?

É legítimo executar um homem desarmado, mesmo que seja muito, muito mau, sem sequer se dar ao trabalho de levá-lo aos tribunais primeiro?

A legítima defesa, por definição, é um ato de defesa contra ameaça real e iminente. Não existe legítima defesa preventiva. É legítimo que indivíduos, comunidades, países, busquem se proteger do perigo, mas isso não confere o direito ao uso da violência contra outrem. Mesmo que o indivíduo A me fizesse ameaças de morte, nenhum sistema legal me concederia o direito de matá-lo “preventivamente”. E se eu o fizesse invadindo sua casa e matando, além dele, esposa, filhos e algum transeunte mal informado, todos desarmados, eu certamente seria condenado por homicídio triplamente qualificado.

Notem que, na situação hipotética acima, eu não faço analogia apenas à figura de Osama bin Laden, mas a todas as operações conduzidas em nome da “Guerra ao Terrorismo”. A questão sobre se bin Laden estava armado, ou não, é relevante. No entanto, depois de todos os eventos acima narrados, faz sentido questionar a moralidade da conduta do governo estadunidense apenas pelo lugar onde se encontrava o rifle de Osama bin Laden? Mesmo que as nebulosas circunstâncias da sua morte fossem esclarecidas em favor de sua execução, isso é pouco, comparado a outros episódios bem menos nebulosos, onde o “mocinho” não sai bem na foto.

A tortura

Deixei a questão da tortura para o final, propositadamente.

Deixemos de lado, por um instante, o status legal dos prisioneiros submetidos às “técnicas especiais de interrogatório”. Abstraiamos o fato de eles terem sido seqüestrados, isolados, negados ao devido processo legal, mantidos cativos sob tempo indeterminado, muitos deles, se não a maioria, sem qualquer suspeita concreta que justificasse tal conduta. Não. Vamos nos concentrar somente na tortura.

É legítimo torturar um prisioneiro para descobrir o paradeiro de um um sujeito suspeito de arquitetar e financiar atentados terroristas que vitimaram milhares de pessoas? Ou para, de modo mais amplo, garantir a segurança do país, prevenir novos atentados?

Geralmente a legitimação da tortura é feita sob um discurso de que se está combatendo um perigo iminente, que sem uma ação rápida, a qualquer instante pode manifestar-se e causar um desastre incomparável, talvez irreparável. Milhares de pessoas vão morrer. Então, por que não se deveria usar de métodos de tortura contra um infeliz suspeito, para salvar a vida de milhares de inocentes?

A tortura é um crime inominável, injustificável. Mesmo que a vítima da tortura seja um criminoso, e haja uma situação concreta de perigo, a tortura ainda é inominável e injustificável. Pois reduz o sujeito torturado à condição de objeto, mero instrumento para alcançar nossos fins de segurança. A própria relação entre tortura e segurança é altamente improvável. É improvável que não haja outros meios de garantir a segurança, improvável que haja um perigo tão enorme que a justifique, e improvável que, se ele existisse, a tortura fosse capaz de detê-lo.

É para justificar o injustificável que as situações calamitosas acima descritas são usadas como escudo. Não obstante, via de regra, elas não passam de um discurso usado para insuflar o medo e o terror nas pessoas, de modo a fazê-las não apenas aceitar a tortura como legítima, mas sobretudo submeter-se ao poder do torturador. A tortura não tem como alvo apenas o indivíduo a ela imediatamente submetido. Nem sequer o inimigo que, supostamente, será impedido de levar adiante seus planos malignos. Tão ou mais importante é manter os próprios concidadãos alinhados e submissos ao torturador, dispostos a acatar suas ordens e contentes em satisfazer-lhe os desejos e recompensar seus atos criminosos. Afinal, não houve mesmo quem defendesse que George W. Bush recebesse o Prêmio Nobel da Paz?

Uma das muitas conclusões que podemos tirar dessa história é que a linha que separa o herói do vilão é muito tênue. Que na Guerra ao Terrorismo, o governo dos Estados Unidos usou dos mesmos recursos daqueles contra quem guerreava – inclusive o terrorismo, contra os supostos inimigos, e contra seus próprios cidadãos.

Resta-nos, então, uma última indagação: e o que dizer quando a vítima da tortura é completamente alheia às razões que a levaram a tal ignominiosa situação?

Vivissecção

O leitor analise bem as semelhanças do discurso da “Guerra ao Terrorismo” com o discurso em defesa da vivissecção e sua “Guerra ao Câncer”, “Guerra à AIDS”, “Guerra à Gripe Suína”, “Guerra às Pandemias”, guerra aos malefícios mil que, enfim, assolam o ser humano. Parece que estamos sempre na iminência de uma catástrofe. E não é que elas nunca aconteçam. Essas doenças são muito reais – como foram reais os ataques ao WTC.

Assim como no caso da Guerra ao Terrorismo, a indústria farmacêutica, as faculdades, laboratórios, vivissectores, jogam com o medo dos cidadãos para preservar seus interesses: não se pode prescindir da experimentação animal, abandoná-la seria condenar a ciência ao atraso e comprometer o tratamento de milhares de pessoas portadoras de doenças graves. Desse modo, a ciência e a saúde pública se tornam moeda para legitimar atitudes que, de outro modo, seriam publicamente execradas.

Aplicar choques, intoxicar, asfixiar, queimar, cegar, afogar, mutilar um cão em praça pública seria crime, inclusive tipificado na lei da maioria dos países. Mas se isso for feito num laboratório, torna-se um ato de alto valor moral, um método de investigação científica, a busca de soluções para males que causam tanto sofrimento a seres humanos. Sobretudo se o laboratório estiver devidamente protegido do escrutínio público, e o seu próprio pequeno terror for ignorado pelas pessoas que veneram esses heróis da ciência e da saúde pública.

Mas claro, não é só isso. Muitos indivíduos, mesmo que tenham pleno conhecimento do que se dá nas celas ou nos laboratórios, ainda apoiam esses atos como “legítima defesa” ou “proteção” contra os perigos do terrorismo ou das doenças que destroem a vida de tantos seres humanos.

É por isso que um exame racional do problema é indispensável.

Desafiando a ideologia dominante

A justificação da tortura, em ambos os casos apreciados, é um exemplo de como opera a ideologia dominante nas nossas sociedades, em que, dadas certas circunstâncias, as pessoas admitem que “os fins justificam os meios” e abdicam do respeito mais básico à dignidade inerente a cada indivíduo. Podemos, de início, confrontar essas situações com outra que não é tão incomum quanto pode parecer à primeira vista.

Houve época em que usar seres humanos para o “progresso” da medicina e da ciência era, senão socialmente aceito, ao menos prática recorrente. E não me refiro apenas ao clássico exemplo das experiências com humanos na Alemanha nazista. Antes e depois disso indivíduos socialmente excluídos ou membros de populações discriminadas foram mortos para prover cadáveres às faculdades de medicina; tiveram sua integridade violada por eletrochoques, lobotomias e experiências em casas para “pacientes psiquiátricos”; foram expostos a doenças e à contaminação nuclear, para que seus efeitos no corpo humano fossem investigados; foram supridos com tratamentos inócuos ou desconhecidos e arriscados, sem o devido esclarecimento ou consentimento, para o desenvolvimento de drogas e terapias. Dentre outros exemplos possíveis. Esses eventos podem até se repetir, ainda hoje, mas não têm qualquer legitimidade. Um sujeito culpado de tais feitos seria justamente considerado um criminoso.

Isso se dá porque existe um consenso, ou um quase-consenso, de que a dignidade do indivíduo humano, qualquer indivíduo, não pode ser violada para atender a tais objetivos. Nós não temos o direito de usar e dispor da vida de um indivíduo humano, tratá-lo como objeto quando, segundo a percepção geral, ele não representa nenhum risco para a sociedade. Quando este direito é violado, nós cobramos uma justificativa razoável para isso. Por isso os governos são tão ágeis em elaborar farsas, forjar provas, manipular informações e distorcer fatos, de modo a tentar convencer-nos de que aquilo era o justo.

Eventualmente essas tentativas são bem sucedidas, mas uma análise detida dos fatos quase sempre revela não apenas a falsidade das alegações, mas também a impossibilidade de justificar tais feitos.

A “justificativa razoável” que nós, geralmente, procuramos, é que aquele dano era necessário para conter um mal iminente. Isto é, uma forma de legítima defesa. Quando inocentes são vitimados como “dano colateral”, nós em geral indagamos se esse dano não poderia ser evitado, se houve negligência ou imperícia, ou até questionamos a legitimidade de algo antes tido como legítimo – uma guerra, por exemplo. Dependendo das circunstâncias, esse questionamento faz o caminho completo até a retirada do apoio e oposição aberta.

O discurso em prol da experimentação animal funciona sob lógica semelhante: primeiro, a prevenção ou cura de um mal terrível, com algum fundamento na realidade, seja verdadeiro ou fabricado; a absoluta necessidade de sacrificar algumas vidas, de animais de outras espécies, para prevenir ou curar esses males; a ausência de alternativas; os eventuais efeitos positivos que comprovam a necessidade e sucesso desse método; acima de tudo, a ideia de que a vida daquele indivíduo vale menos que a nossa própria – seja um inimigo, uma “raça inferior”, um criminoso, um doente mental ou um animal de outra espécie.

Conclusão

Enfim, a análise racional dos fatos mostra que o objetivo da segurança, por mais legítimo que seja, não justifica a tortura, nem qualquer tipo de redução de um indivíduo à condição de objeto e os danos daí decorrentes. Em primeiro lugar, porque não é nosso direito dispor da vida de A para salvar a vida de B, se não é A o responsável pelo risco imediato contra a vida de B. Não podemos matar civis para proteger o nosso país de uma ameaça externa; não podemos executar indivíduos desarmados, mesmo que sejam terroristas perigosos; não podemos deter sujeitos e levá-los à força para outro país, sem uma evidência forte e o devido processo legal; não podemos usar um ser humano como cobaia para um tratamento que possa salvar a vida de muitos outros seres humanos. Porque a vida daquele indivíduo tem o mesmo valor inerente que a nossa própria. Assim sendo, que direito tenho eu de dispor da vida dele em favor da minha própria, de meus interesses pessoais, por mais legítimos que sejam, se aquele indivíduo não posa qualquer ameaça real e imediata à minha vida?

O mesmo vale para os animais de outras espécies. Suas vidas não são menos importantes, simplesmente porque eles não são dotados das mesmas características e aptidões que os seres humanos. Afinal, nem mesmo os humanos são dotados, em igual medida, das mesmas características e aptidões. E, tão ou mais importante, tais características e aptidões são absolutamente irrelevantes para avaliar a importância de suas vidas. Pois eles são sensíveis e conscientes, e assim dispõem de todos os atributos necessários para aproveitar suas vidas.

Perceba-se que não estou questionando a validade de se desenvolver pesquisas e terapias para o tratamento de doenças e males afins, mas sim o método que é empregado para atingir tal objetivo. E, diante de tal conflito moral, é absolutamente ocioso discutir se esse é o único método disponível para alcançar esse objetivo. Ademais, esse é um argumento falacioso. Abandonar a experimentação animal seria abandonar um método ultrapassado, baseado em falsas premissas, e assim estimular o progresso da ciência. A maioria das pesquisas pode continuar sem esse expediente.

Mas e quando isso não for possível? Nesse caso improvável, o uso de animais não humanos ainda não se justificaria. As restrições éticas às experiências com seres humanos comprometeu, por exemplo, certas pesquisas da psicologia experimental. Essa disciplina teve, então, de recorrer a outras formas de observar a psicologia humana. Da mesma forma, o pesquisador que usa animais de outras espécies, na impossibilidade de dar continuidade a determinado tipo de pesquisa, deve procurar outros caminhos.

A ciência não está acima da ética. Não é nosso direito reduzir a objeto um sujeito com individualidade e interesses próprios. Tampouco causar dano e sofrimento num ser senciente que, de outro modo, teria condições de usufruir de tudo aquilo de bom e prazeroso que a vida poderia lhe oferecer.

Você viu?

Ir para o topo