EnglishEspañolPortuguês

Juntos em um mesmo sonho

14 de agosto de 2015
5 min. de leitura
A-
A+

Cada época sonha com a seguinte
Jules Michelet (1815-1879)
Filósofo e historiador

Aquele que em algum momento de sua vida aderiu ao movimento de libertação ou abolição da escravidão animal, tornou-se, de alguma forma, um sonhador da época seguinte. Pois essa, definitivamente, não é a época dos animais não humanos. Como escravos são, portanto, destituídos de qualquer tipo de direito. Sua dor é silenciosa e silenciada por grossas paredes, reais ou imaginárias, que escondem as entranhas desse sistema perverso e de seu “comércio infame”.

Mas, Walter Benjamin, não para no sonho e nos provoca: “cada época não somente sonha com a seguinte como também, ao sonhá-la, a desperta”. Pergunto-me em que estágio do sonho estamos e qual tem sido nossa contribuição para o despertar dessa nova época.

Liliam Schwarcz e Heloisa Starling, no livro Brasil: uma Biografia, falam que no período em que se intensificou a campanha pela abolição da escravidão dos negros, “os tempos mudaram e pediam novos intérpretes e poetas para corrigir injustiça e desacertos”. Castro Alves foi um desses poetas, arauto da liberdade, criou uma poesia capaz de chegar “nas nuvens do chorar da humanidade”. Foi assim, lendo, e em especial sobre a escravidão dos africanos no Brasil, que encontrei padrões, fiz paralelos e reacendi metáforas. Pensei nas experiências desta caminhada de dez anos, e destaco alguns pontos que merecem nossa atenção como sonhadores de um mesmo sonho.

O primeiro é a importância de todas as estratégias e ações: os socorristas; quem alberga; os que se dedicam a estudar as leis e que defendem os animais em audiências públicas; os que financiam ou pesquisam, desde receitas culinárias, a moda, ou softwares que irão eliminar o uso de animais em pesquisas; os que atuam no campo da educação básica; os que produzem conteúdos e que são os nossos poetas, filósofos, escritores, etc. Não há hierarquia nessas ações. Elas são diferentes na sua forma, porém convergem para um mesmo fim.

Um segundo ponto é que devemos considerar a dimensão histórica. Essa não é uma causa ou movimento para durar um ano. Diria que ela não tem fim. É como a definição de utopia de Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Estamos destinados a caminhar.

Não importa a insignificância da minha atitude, diante da realidade dos 56 bilhões de animais mortos anualmente pela indústria da carne (parte deles!) ou que são torturados nos laboratórios de pesquisas. Retomo aqui, e sempre, o que diz o sociólogo alemão Norbert Elias, estudioso dos processos históricos na longa duração, que nenhuma pessoa isolada, “por maior que seja sua estatura, poderosa a sua vontade, penetrante a sua inteligência (…), pode transformar sua sociedade, de um só golpe”. Mas também é desse autor, a ideia de que a preparação do terreno para as mudanças estruturais é oriunda das pequenas tensões e das “pressões exercidas por pessoas vivas sobre pessoas vivas” aqui e acolá, no pequeno e no miúdo das relações. Ou seja, é no continuum de seres humanos interdependentes, que nós, como uma sociedade de indivíduos, caminhamos. Não esqueçamos: é no pequeno, no miúdo que vem as mudanças estruturais.

Terceiro ponto é a necessidade da busca por coerência. Sabemos que “não há casa-grande sem senzala”. No caso dos animais, não há violência e crueldade, sem o consumidor. Esse é, em última instância, quem financia, movimenta, paga e estimula o sofrimento animal. Assinamos um contrato autorizando os abatedouros (lê-se matadouros), ou qualquer outra filial do inferno animal, a realizarem o serviço sujo por nós. O não consumo de produtos de origem animal é um tiro no coração desse comércio infame, se é que assim o consideramos. O boicote ativo é, a meu ver, a forma mais eficaz para a concentração de uma experiência coletiva que irá despertar a era seguinte.

Você pode estar pensando: e aí como fazer com nosso modelo econômico que está calcado, principalmente, no agronegócio? Voltemos à história. O fim do tráfico negreiro em 1850 acabou por disponibilizar verba excedente para utilização na própria estrutura interna do Brasil, segundo Schwarcz e Starling. Curiosamente, ao invés do apocalipse, “uma massa de recursos surgiu da noite para o dia, como num passe de mágica. A saída para o Estado foi investir na infraestrutura do país, e acima de tudo na área dos transportes ferroviários”. Além disso, “com o fim da aplicação no mercado negreiro, as importações cresceram 57,2% no período de dois anos: uma grande notícia para um governo que vivia basicamente do imposto da importação”, pontua essas historiadoras. Esse é um indicativo de que sempre teremos coisas novas, que nem imaginamos, surgindo no lugar daquilo que não cabe mais. Novos nichos de mercado. É assim que funciona e caminha a humanidade.

O veganismo é um ato político, uma declaração de princípios, anúncio de quem denuncia e disposição para a ação. Sônia Felipe, em seu livro Acertos Abolicionistas, fala da não violência (ahimsa), como princípio moral que deve reger as relações dos humanos com o restante dos seres sencientes e do princípio da igualdade do direito à vida e à “liberdade para expressar seu espírito de acordo com a singularidade da espécie animal na qual nasce”. É para isso nossa luta. Se os negros se articulavam, boicotavam, rebelavam, criavam mocambos e quilombos, os animais não tem essa consciência ou possibilidades. Eles têm somente a nós. Espero que meus netos ou bisnetos me perguntem: vovó onde você estava durante o período da escravidão animal? Quero então, contar a eles, muitas e muitas histórias.

Você viu?

Ir para o topo