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Ostra feliz não faz pérola

12 de setembro de 2011
7 min. de leitura
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“A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Mas ela não cria. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer”.
Rubem Alves

Recentemente estava participando de um Seminário de Extensão em Foz do Iguaçu – PR, quando me caiu às mãos este livro de Rubem Alves: Ostra Feliz não faz Pérola¹.

Trouxe o livro para casa. Pego, pois, emprestado o título para encabeçar este texto e me valho da metáfora desse educador para escrever um pouco sobre “a dor e a delícia” que permeiam a vida de pessoas que se dedicam à causa animalista abolicionista.

A partir dessa metáfora, faço uma releitura própria, pois, cada um, a sua maneira, sabe das tristezas e alegrias que envolvem o cotidiano de quem decide fazer frente a concepções especistas para atuar em prol de animais humanos e não humanos.

Como bióloga, vejo na pérola produzida pela ostra, um objeto belíssimo. Mais pelo fenômeno através do qual ela é gerada do que pelo produto final. E como bióloga não especista faço questão de deixar claro que vejo a pérola como um agente neutralizador da dor. E que quando me refiro à beleza da pérola, me refiro pura e simplesmente à sua beleza intrínseca e hipnotizante, gerada de maneira natural. Uma produção natural entenda-se não forçada, que é da ostra, e não foi feita para o ser humano adornar pescoços e orelhas. A pérola é bonita não porque é valiosa do ponto de vista econômico. Ela é bonita e valiosa porque é uma produção ímpar e elaborada da natureza. Ela possui uma beleza que, embora fascinante, tem uma história de dor.

A ostra, para produzir a pérola na natureza, precisa de algum agente externo –  geralmente um grão de areia – que a faça sofrer, inflamar, doer. Então, para livrar-se do sofrimento, a ostra produz camadas e camadas de uma substância chamada nácar. Essas camadas de nácar vão, aos poucos, encobrindo as arestas agudas do grão de areia ou de outro corpo estranho que machucam a ostra.

Passado algum tempo, (dependendo da ostra e do tamanho do agente causador da dor), essas camadas sobrepostas dão origem à pérola. Se não há dor e sofrimento, não há pérola.

Rubem Alves nos lembra que, o ato criador, seja na ciência, seja na arte, nasce sempre de uma dor. Não pude deixar de notar: ato criaDOR.

Com relação às dores relacionadas à trajetória de quem sente empatia pelos animais e se dedica à causa animalista abolicionista, essa dor não precisa ser necessariamente relacionada ao sofrimento físico, como na ostra. E fica fácil aqui, tecer algumas relações contidas nessa metáfora.

De quantas dores se faz um DDA (Defensor dos Direitos dos Animais)? São muitas. Essas dores podem ser de ordem moral, espiritual, até mesmo física (como ignorar nos mais diversos contextos e macabros episódios que presenciamos, as “punhaladas no coração”, os “socos na boca do estômago”, as lágrimas)?  Essa dor pode também ter o nome de curiosidade científica. Geralmente é uma coisa que incomoda. Senão, não seria uma dor. Essa dor pode nascer da indignação frente à exploração dos animais e de seus corpos. Pode ser o escárnio, fruto da desinformação, frente ao nosso trabalho.

Essa dor pode ser, por exemplo, ver a ANDA sair do ar por dignamente não se vender a interesses escusos. Pode ser representada também, por saber de obras literárias, a nosso ver, relevantes para a causa animal, rejeitadas por editoras para dar lugar a biografias do quilate de Geisy Arruda e Justin Bieber, por exemplo. Pode ser a frustração de ver projetos gestados por nós com tanto carinho e dedicação de uma vida naufragarem temporariamente por falta de apoio. Ou por simplesmente pensar que não temos onde nos apoiar em alguns momentos.

Essa dor pode ser a negação de um patrocínio para um projeto que julgamos importante. Pode ser a criança que ri da dignidade perdida de um animal, devido à sua educação especista. A dor também pode vir de uma “Ciência” ou de uma “Academia” com venda nos olhos. Essa dor pode vir ainda da incompreensão e da cegueira seletiva massiva frente aos abusos cometidos todos os dias contra os animais, velada ou explicitamente. É o governante especista. E como se não bastasse, aí aparece a mídia tendenciosa para jogar álcool nas lesões…

Sim, todas essas dores – e outras – são agudas e perfuram diretamente nossa carne. Todas essas dores podem ser areias que entram no nosso ego, na nossa vida, na mente e na alma.

A vida dos DDAs que trabalham, estudam, escrevem e militam pelos animais é cheia desses incomodativos “grãos”. Quem tem a capacidade de, por instantes trocar de lugar com os animais e através dessa empatia, sair do comodismo, deve se preparar para enfrentar esses grãos que poderão perfurar o ego e por vezes, a auto-estima dos mais desavisados.

Essas dores e esses grãos de areia incomodam. Mas não o suficiente para abalar nossas convicções. Muito menos para nos fazer abandonar nossos ideais. Porque a exemplo das ostras, de acordo com o tamanho e a quantidade de grãos de areia, vamos, pouco a pouco, ou de uma vez, produzindo o nácar que encobre essas arestas, fazendo com que as areias pontudas parem de nos machucar.

O “nácar” que produzimos tem a forma de nossos propósitos. E este “nácar” à semelhança da dor, também pode assumir muitas formas. Ele pode ser representado por nossas leituras embasadas que nos sustentam em nossa argumentação quando o contexto pede. Também é produzido quando respondemos com um sorriso discreto ou com o silêncio (que não deixa de ser uma resposta) às agressões às nossas convicções. O “nácar” pode ser também o apoio dos nossos companheiros de ideal. Pode ser as produções científicas sérias a respeito. Pode ser nossos argumentos muito bem embasados e fundamentados de que lançamos mão em ambientes hostis e insensíveis à causa. Pode ser o trabalho educativo realizado diuturnamente por professores visionários. Como na ostra, a produção do “nácar” é silenciosa e sem alardes.

Como resposta à dor, surgem então, as pérolas. Nas mais variadas formas: em vitórias judiciais em favor dos animais que até então pensávamos impossíveis, nos educadores que tem a ousadia de serem pioneiros em suas escolas levantando a bandeira do abolicionismo animal, no pai que respeita a opção alimentar vegana do filho desde pequeno. Nos promotores, juízes e advogados preocupados em justiça para todas as espécies. As pérolas são as produções, científicas ou não, que informam e desconstroem padrões arraigados de pensamento. São os estudantes que se rebelam e se manifestam contra a venda de animais, contra os rodeios, contra os circos com animais. São os estudantes universitários que se recusam a assistir aulas experimentais arcaicas que ainda utilizam animais. É o colega, professor universitário que abre a mente para conhecer metodologias que não utilizam animais. São as pessoas que, devido à informação vão, aos poucos, através de suas escolhas diárias na mesa, no vestuário, na sua higiene pessoal, adotando um modelo de ética e de vida baseados em respeito ao outro, humano ou não. É tomar conhecimento de pessoas que nunca haviam lido ou pensado sobre veganismo virem nos dizer que estão começando a repensar seus hábitos e a mudar. É a mídia fazendo o papel de realmente informar justamente. É a ANDA (novamente no ar). Quanta dor e quanto nácar foram produzidos para vermos as muitas pérolas que circulam nesse site?

Mas creio que a maior pérola reside no olhar de um animal que tem restabelecida sua dignidade. Reside em sabermos que um ou vários animais foram poupados da dor e do sofrimento devido a algum tipo de mobilização. E não se trata de utopia. Seríamos masoquistas morais se não acreditássemos que nossas pequenas atitudes contribuem para diminuir o numero de animais que sofrem sob a tirania humana.

Mas ainda há muito, muito trabalho por fazer. Gosto de ler biografias. E quando leio as biografias das pessoas que admiro, percebo que todas, sem exceção, subverteram a ordem, arrancaram as vendas, arcaram com as conseqüências de seus atos e fizeram a diferença. Conscientemente. Estamos conscientes. Que venham as dores. Porque estas, inevitavelmente se transformarão em pérolas. Pérolas belíssimas cintilando para quem quiser ver, mas principalmente para lembrar-nos da importância da perseverança.

E porque principalmente, pelos animais, todas as dores e todos os grãos de areia, sempre valerão a pena.

¹ALVES, Rubem. Ostra Feliz não faz Pérola. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Marcela Godoy é bióloga e professora universitária.

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