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No limite da senciência

1 de abril de 2014
7 min. de leitura
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cnidários

De tempos em tempos somos surpreendidos por “novas descobertas científicas” no que diz respeito ao sentimento de dor em animais. Recente estudo da Universidade do Texas demonstrou o que qualquer pessoa que já tenha manipulado ou observado cefalópodes deveria saber: Polvos e lulas são capazes de sentir dor.

Estudo semelhante, de uma universidade da Irlanda do Norte, havia constatado não muito antes que lagostas, camarões, caranguejos e siris sentem dor – nada que qualquer pessoa que já tenha sido abordada por vendedores de lagostas frescas no litoral do Nordeste brasileiro não pudesse saber, pois quando o vendedor aperta os olhos do animal esse pula de dor. É a prova que o vendedor usa para demonstrar que a lagosta está tão fresca quanto viva, e para o cliente a prova de que esses animais sentem, de fato, dor.

E quem não conhece a expressão “como um siri na lata”? Esses animais são costumeiramente fervidos vivos e não há tampa de panela que os segure quando a água se aquece. É necessário colocar tijolos ou outros pesos para que os animais não escapem. Ora, o que seria essa força muitas vezes superior as suas capacidades naturais senão uma tentativa desesperada de fugir a dor?

Esse mesmo estudo considera razoável concluir que o mesmo se aplique a outros artrópodes, tais como os insetos e aranhas, que possuem sistema nervoso semelhante. Mas podemos ir mais longe: Qualquer pessoa que já tenha batido uma picareta na terra e partido, sem querer, uma minhoca ao meio, deve tê-la visto pulando e se contorcendo. Isso é sinal externo de dor.

Em 07 de julho de 2012, um grupo de proeminentes cientistas da área das neurociências se reuniu, na Universidade de Cambridge, para declarar que devido as semelhanças entre o cérebro humano e o cérebro de outros vertebrados, podemos inferir que esses animais não-humanos também são conscientes e sujeitos ao mesmo estado interno pelos quais passamos no que se refere as emoções.

Nada que alguém que conviva com animais já não saiba. Não precisamos saber quão complexo é seu sistema nervoso e se o animal possui nociceptores, basta observar o animal em seu comportamento diário. De que forma o animal se comporta perante estímulos potencialmente ou efetivamente danosos?

O animal manifesta sintomas de ansiedade, tédio, irritação, ou pelo contrário, alegria, satisfação ou afeto? Muitas pessoas tendem a crer que apenas os animais mais próximos de nós são passíveis de sentimentos, enquanto que os mais distantes ou menos simpáticos são praticamente animais-máquinas cartesianos. Nada mais longe da verdade.

A dor, embora uma sensação negativa, possui um motivo positivo para existir. Trata-se de um mecanismo evolutivo que alerta o indivíduo em relação a perigos iminentes, com possível ameaça à vida, possibilitando a fuga ou defesa. Se os animais semoventes não sentissem a dor como uma sensação desagradável eles não evitariam os perigos e, por conseguinte, morreriam mais cedo.

É fácil verificar como a sensação de dor é importante. Pessoas que por algum motivo não sentem dor (hansênicos ou portadores de Insensibilidade Congênita à Dor com Anidrose – CIPA, p. ex.) não se cuidam. Estão sempre com os ossos fraturados, com a língua mastigada ou com pedaços de membros arrancados ou cortados. Pessoas com lepra na antiguidade constantemente eram comidas por roedores enquanto dormiam, elas acordavam literalmente com pedaços de seus corpos desfigurados.

Tratando ainda do sentido evolutivo da dor, fica aqui uma resposta para a ladainha boçal carnistas: “E alface, não sente dor?” A resposta é que não, até onde sabemos. Alfaces não tem qualquer defesa contra predadores, eles permanecem imóveis seja lá o que se passe no ambiente à sua volta. Elas não se movem para perseguir seu alimento, para buscar o sol ou a sombra, nem por qualquer outro motivo.

Sua própria imobilidade tornaria as sensações desagradáveis evolutivamente desnecessárias. Além disso, não vemos nada que lembre um sistema nervoso nos vegetais (movimentos como geotropismo, hidrotropismo, fototropismo, quimiotropismoetc não ocorrem de forma intencional e, portanto, não devem ser considerados indícios de senciência).

E ainda que seja dado aos vegetais o benefício da duvida, os animais que comemos consumiram número muito maior de vegetais que consumiríamos se os consumíssemos diretamente. Questão de entender a pirâmide de níveis tróficos, onde mais alto nos encontramos mais recursos animais e vegetais consumimos.

Embora vegetais supostamente não sintam dor, animais certamente o fazem e é nesse ponto que devemos nos concentrar, ao menos em um primeiro momento, nos organismos que evidentemente possuem substrato neurológico que permita a consciência.

O ser humano evoluiu, através de longo processo gradual, de outras formas de vida animal, tendo a senciência surgido ao longo desse processo em tempos muito remotos.

No grupo dos vertebrados todos os organismos partilham estruturas homólogas no que diz respeito à estrutura cerebral. A Declaração de Cambridge declara que os substratos neurais das emoções parecem não estar confinados às estruturas corticais, portanto não são exclusivas dos mamíferos mais inteligentes ou do ser humano.

A crença de que animais agem meramente por instinto não procede, porque no que diz respeito às sensações e emoções, eles agem exatamente como os seres humanos. Não é a capacidade de raciocínio que torna um animal (ou um ser humano, mais ou menos sensível à dor ou mais ou menos passível de sentimentos).

No entanto, agir como humanos ou “quase” como humanos não é o objetivo dos animais não humanos. Tendemos a ver golfinhos, chimpanzés, cães, papagaios africanos cinzentos e outros animais como quase humanos, seja porque sonham, seja porque são capazes de perceber seu próprio reflexo no espelho e saber que olham para si mesmos (auto-percepção). Tomar a nós mesmos como medida para conferir senciência para o outro é um grande erro especista.

Sabemos com certeza que, no grupo dos vertebrados, pelo menos mamíferos e aves experimentam o sofrimento psicológico, além da dor física que certamente é sentida também por todos os demais vertebrados e pela maioria dos invertebrados. No entanto, é falho crer que devamos respeitar apenas os direitos de seres auto-conscientes ou capazes de sentirem a dor psicológica, pois a dor física deve ser motivo suficiente para evitarmos causá-la.

Porquanto a ciência seja falha em poder determinar o limite da senciência, creio que devamos adotar o principio da precaução em relação aos sentimentos dos animais. Animais que apresentam sinais externos de dor e estresse certamente sentem dor, mas não apenas eles. Animais que não apresentam sinais perceptivos de dor, mas que fogem propositalmente a estímulos dolorosos devem ser considerados sencientes, quais sejam.

Animais que apresentam sistema nervoso organizado ou mesmo difuso, como no caso dos cnidários, devem ser organismos sensíveis. Vemos como anêmonas se retraem perante ameaças, e como buscam ativamente seu alimento mesmo sendo fixas ao substrato. Vemos como hidras, medusas e caravelas forrageiam atrás de seu alimento, e como fogem de predadores. Se isso não for senciência não sabemos o que é.

Cnidários são o grupo de invertebrados mais complexo após os poríferos e neste grupo já encontramos células nervosas e células sensoriais, já encontramos células contráteis e toda a maquinaria necessária para perceber o ambiente à sua volta e fugir da dor. Esses animais não possuem cérebro, mas redes nervosas espalhadas pelo corpo e que de certa forma se coordenam.

Os equinodermos (estrelas do mar, ouriços do mar, bolachas do mar, pepinos do mar, ofiuros) são certamente sencientes. Nós os vemos se protegendo de predadores, buscando intencionalmente abrigos ou intencionalmente buscando seu alimento. Esses animais possuem anéis nervosos em volta da boca e vários nervos se irradiando daí para todo o corpo.

Igualmente sencientes devemos considerar todos os vermes (platelmintos, asquelmintos, anelídeos), com seu sistema nervoso central ainda incipiente, constituído de gânglios cerebroides e anéis nervosos; os moluscos com seu sistema nervoso ganglionar (e não apenas os cefalópodes, dentro desse grupo, pois mesmo os gastrópodes e bivalves possuem gânglios cerebroides, pedálicos e viscerais como as lulas e polvos tão celebrados como sencientes). E certamente os artrópodes, com seu sistema nervoso ganglionar.

Ainda necessitamos que a ciência valide a senciência animal, para que descubra o que já sabemos há tempos, que devemos respeitar seus direitos, por mais distintos que seu organismo seja do nosso.

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