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Pernilongos

9 de dezembro de 2017
4 min. de leitura
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Que calor dos diabos faz na terra onde vive minha querida família. Apesar de não ser muito longe de São Paulo, pasmem, há uma diferença acentuada de temperatura. Falando sério, pros lados desse longo descampado que mais parece o solo seco de um vulcão de extintas eras só existem duas estações no ano: o verão (9 meses) e o outono (3 meses). De uns tempos para cá a natureza, provocada pela mão humana, aboliu a primavera e fez do inverno uma lenda.
Não que eu desgoste da casinha-chácara onde não se pega gripe de jeito algum, nem bronquite, rinite ou sinusite de tão tropical que a região é. Dá pra sair à noite sem agasalho, que o tempo não muda de surpresa. E tem o lado bom das frutas da época: janeiro é manga pra chuchu, março é caqui na mão, maio tem cheiro de goiaba vermelha, julho é jabuticaba pra encher os potes, setembro é amora no telhado, dezembro é abacate maduro e sei-lá-o-que de tanta variedade de cores e sabores.
O chuveiro de água fria instalado no quintal virou item indispensável da casa. Banho quente, no box do banheiro, só de noite e olhe lá… A preferência geral é pela cachoeira imaginária no meio das plantas: um minuto com aquela queda d´água na cabeça é mais do que refrescante. De fato, a pecinha elétrica que seria indispensável num chalé no alto das montanhas torna-se, na terra do sol, uma ameaça escaldante para as costas.
Para melhor ilustrar os trinta e não sei quantos graus digo que se dorme sempre de janela aberta (com a proteção das telas, é claro). Só que não se pode negar uma verdade inconveniente: os pernilongos também habitam o lugar. Dia e noite, noite e dia, eles estão por toda parte. Diante desse verdadeiro exército alado, faça sol faça chuva, meus ouvidos já se acostumaram ao zumbido em dó menor que quase nem ligo mais. O pior de tudo, que fique bem claro, é aquela picadinha certeira.
Acontece que esse desejo de escapar incólume não muda as coisas, porque a vontade de me ver livre da pernilongada permanece só no campo das ideias. Explico. Na fresca, ao nascer do dia, eles já notam a minha presença no jardim. No café da manhã, mesmo com a porta e janelas fechadas, eles me cercam na mesa à espera do café deles.
Quando entro no carro, pronto para a fuga, sempre encontro uns esvoaçantes que não sei de onde apareceram. Eu saio e eles ficam. Afinal de contas, quem será o invasor?
Inteligentes esses insetos, aguardam a virada do ventilador – de um lado para outro – para atacar no vácuo, naqueles poucos segundos que permaneço sem vento. Até turnos de madrugada eles têm, embora no escuro atuem com uma equipe menor: dois ou três emissários gostam mesmo é de atazanar os ouvidos deste candidato a olheiras profundas. Por que raios não se contentam com a sola dos pés ou o calcanhar? Deixo sempre uns dedos para fora do lençol para ver se eles aplacam a fome. Que nada, preferem a orelha. Vá lá entender as muriçocas…
Outro dia (que ninguém nos ouça) acabei involuntariamente com um deles. Sabe quando você, por instinto, bate no ombro ao ser picado? Pois é, deste vez estalei na mão, sem querer, o vampiro guloso. Mas tenho justificativa: o crime não foi voluntário e nem premeditado. É que os reflexos do organismo atacado não podem ser considerados intencionais, sobretudo quando o corpo reage independentemente do comando cerebral.
Sei que essa tese pode não ser convincente, afinal de contas como sustentar que me defendi de uma criatura milhares de vezes menor do que eu? Respondo que agi sem pensar, depois que um mecanismo instintivo me levou a fazer o que fiz. Pelo sim pelo não, o fato é que naquela noite não foi o zumbido renitente que me tirou o sono. Teria sido então a voz da consciência?
Que remorso que nada, foi o barulhinho escamoteado de um outro inseto ainda pior e que caminha sorrateiro pelas trevas. Juro que não vou falar deste bicho. Daria muito assunto pro meu psicanalista adiado. Quer mesmo saber? – Vade retro, Leucophaea maderae!

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