EnglishEspañolPortuguês

O mundo é feito de retalhos

7 de maio de 2010
5 min. de leitura
A-
A+

Olhando assim o globo terrestre girando, essas placas de terra boiando fragilmente sobre o oceano, e pensando sobre alguns poucos milhares de anos que existe a organização social humana, é inevitável pensar sobre os descaminhos da humanidade. Sempre acho que é saudável um pouco de silêncio para reencontrar o fio da vida.

Pois olhando esse globo terrestre como se eu fosse um gigante que olha o planeta de fora, resolvi listar algumas razões prováveis desses descaminhos que jogam hoje a humanidade contra a parede, que se paralisa perplexa a cada demonstração de força da natureza. Um sopro dos mares e somos jogados de um lado a outro e morremos afogados. Um espirro de fogo subterrâneo e somos cobertos por cinzas, perdemos o sol e ficamos sem visão para voar de um lugar para o outro.  

A lista das prováveis origens dos descaminhos da humanidade é grande e é discutível, dependendo de que lado se está. Dos perdedores, ou dos vencedores. Dos colonizadores ou dos colonizados. Dos homens, ou dos bichos. Mas uma coisa me chamou a atenção, como a origem de tudo. A visão de como é feito o mundo.

De como se percebe a forma como é tecido o mundo, faz toda a diferença. É o ponto de referência para todo o resto, para todas as ações e reações, para todos os fatos da antiguidade, até hoje. Se o ponto de partida é a ideia de que o mundo é feito de iguais, quem não é igual é considerado deficiente em alguma coisa. Quem não é igual passa a ser estranho, menor, por melhor e educado que seja a nomenclatura que se invente para eles. Se eu considero que o ponto de partida é o mundo dos iguais, decido se faço concessões ou não aos deficientes, aos imperfeitos. E os imperfeitos são todos que não podem andar, ou pensar, ou ver, ou falar, ou ouvir, incluindo os bichos que considero deficientes na capacidade de planejamento e no alcance cognitivo.

É uma questão de escolha circunstancial se quero ser generoso, ou não. Se num certo momento, quero ser generoso, então deixo os bichos ocuparem parte do meu espaço contanto que não me atrapalhem, faço rampas de acesso para as pessoas que não andam, invento programas de inclusão dos deficientes físicos, auditivos, aos deficientes visuais. Mas, se não quero, ou não posso ser tão generoso assim, pela escassez de espaço, pela falta de dinheiro, de comida, de água, passo naturalmente a priorizar os iguais que têm os mesmos direitos, pois são os perfeitos os que fazem a referência do mundo. Não é à toa que numa guerra, os soldados feridos são deixados para trás. Que as cidades são construídas sem pensar nas pessoas que não andam, que não enxergam, que não ouvem. Que as cidades são fundadas sem pensar nos animais que já vivem naquele espaço, que elas decidam reduzir o número de vidas animais, quando são considerados em número inadequado. Por que não se pensa em reduzir as vidas humanas, quando as cidades estão com trânsito exacerbado, quando não existem mais condições de construir casas? A história da humanidade foi desenhada sempre com base nessa visão, de que a referência do mundo é das pessoas que fazem parte do grupo dos perfeitos.     

A questão é que o mundo não é tecido de forma homogênea, e nunca será. É feito de retalhos. É constituído de diversos mundos. É formado por mundos de histórias e culturas diferentes. Pelo mundo das pessoas que acreditam no capitalismo, das que creem no socialismo, ou em qualquer outra coisa. Pelo mundo dos surdos. Dos cegos. Dos que não andam. Dos que não tem nenhum movimento. Dos que acreditam ou não acreditam em deus, ou que têm deuses diferentes. Pelo mundo dos animais. Por diversos mundos, cada um com suas características e todos imperfeitos.

Quando vejo o globo terrestre e recordo de todas as suas histórias, tenho a certeza de que os descaminhos da humanidade são todos patrocinados pela visão de que o mundo não é feito de retalhos. A trágica história do nazismo não foi um acidente, foi apenas um fato maior que tornou transparente o que se esconde no cotidiano da humanidade, mas que se revela insistentemente em pequenas atitudes.  

Se parece que isso não é bem verdade, então me diga, não chamamos de deficientes os que não se encaixam no que consideramos modelo de perfeição? Não consideramos os bichos como deficientes de inteligência e de educação, ao chamar as pessoas grossas, deseducadas, de animais?

Não é comum ouvirmos campanhas aparentemente civilizatórias que pregam a tolerância com os diferentes? Não ouvimos com frequência a ideia, por exemplo, dos direitos dos deficientes, dos animais, dos homossexuais, das mulheres? Tudo isso, porque ainda não nos atentamos que o mundo não tem dono, muito menos que não é dividido entre os perfeitos e os imperfeitos. Menos ainda, de que no mundo feito de retalhos não tem nenhum que tem mais direito do que os outros.

E se isso é verdade, e eu acredito firmemente que sim, não há nenhuma generosidade a ser exercitada, a não ser a devolução do que foi roubado pelos saqueadores. É preciso isso, para não continuarmos nos descaminhos, tomando rotas loucas, aquelas todas que só levam à destruição de uns e outros e, finalmente, de nós mesmos.

Depois de pensar nisso tudo, quando volto a ver o globo terrestre, só consigo ver os continentes e as ilhas como retalhos que cobrem fragilmente o mundo redondo das águas. Quem sabe, essa imagem se torne um grude e faça alguma diferença em cada um de nós.

Você viu?

Ir para o topo