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Vegetarianismo sob uma perspectiva histórica

28 de abril de 2010
12 min. de leitura
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Rynn Berry

Autor de 6 livros que abordam o vegetarianismo ao longo da história, Rynn Berry é assessor da Sociedade Vegetariana Norte Americana (NAVS – North American Vegetarian Society) e pesquisador pós-graduado em história da Antiguidade pela Universidade de Columbia (Estados Unidos). A experiência cultural diversa de Berry começou cedo: nascido em Honolulu, no Havaí, cresceu em Coconut Grove, na Flórida (Estados Unidos), e ao longo da vida viajou por diversos países, tendo morado na França, Inglaterra, Itália e Índia. Aos 19 anos de idade tomou conhecimento sobre a exploração proveniente da indústria da carne e tornou-se vegetariano por razões éticas. Sentindo a necessidade de aprender a cozinhar para si mesmo, considerando as exigências de sua dieta, Berry estudou, além da filosofia clássica, a gastronomia. Ele teve, inclusive, aulas particulares com um renomado gourmet indiano, além de se aprimorar também em técnicas de culinária chinesa e japonesa. Como conseqüência da sua busca constante por informações, surge a necessidade de fazer traduções do grego e do latim, o que acabou se tornando um hábito para Berry. O hobby veio a calhar quando ele precisou traduzir as receitas preferidas de Leonardo da Vinci – originalmente escritas em latim medieval, ou mesmo as citações de Apicus, Plutarco, Porfírio e Plínio, publicadas em seu livro “Vegetarianos Famosos e Suas Receitas Favoritas” (Famous Vegetarians and Their Favorite Recipes). O que poderia, então, resultar, de um historiador vegetariano e estudioso da história antiga ocidental que se interessa por gastronomia? Nada menos do que um apaixonado pesquisador, autor de 6 livros e diversos artigos que abordam o vegetarianismo ao longo da história, incluindo receitas de diferentes períodos da civilização. Rynn Berry esteve em São Paulo no último dia 30 de junho, ministrando uma palestra no recém inaugurado restaurante Vegethus sobre atletas veganos dos últimos 3000 anos. A editora da ANDA, Carolina Dargel, estava presente e fez uma entrevista exclusiva com ele. Confira!

ANDA – Em primeiro lugar, quais foram as principais motivações que o levaram a ter uma visão crítica acerca da exploração animal?

Rynn Berry – Bem, eu era um adolescente quando tomei ciência da forma como os animais são criados, escravizados e mortos para o consumo humano. Quando eu tinha 19 anos parei de comer carne por razões éticas, pois decidi não contribuir para a indústria da exploração animal.

ANDA – Como se deu seu interesse pela investigação de personalidades históricas que adotaram a dieta vegetariana como parte de suas vidas?

Rynn Berry – Eu fui convidado pela Universidade de Oxford a escrever um artigo sobre comidas e bebidas vegetarianas. Neste artigo falei sobre atletas de várias modalidades que eram veganos e publiquei algumas de suas receitas preferidas, o que me levou a pesquisar sobre o assunto.

ANDA – Há alguma relação entre a adoção da dieta vegana e o desempenho do atleta?

Rynn Berry – É memorável como atletas veganos se destacaram e seguem se destacando em diversas modalidades de esportes, seja por seu desempenho admirável ou por seu vigor físico. Isso é uma realidade que podemos perceber desde a Grécia Antiga até os tempos atuais. O filósofo Platão, discípulo de Pitágoras, na verdade se chamava Arístocles e ganhou o apelido pelo qual ficou conhecido devido aos ombros largos que o caracterizavam. “Platão” vem do grego platys, que significa “espaço largo” (a mesma palavra que deu origem a “platéia” e “praça”). Um dos atletas mais admirados e conhecidos de todos os tempos, Milo de Creta, que viveu por volta do século 6 A.C. na cidade grega de Cróton, ao sul da Itália – o mais antigo fisiculturista que se tem registro – competiu durante 32 anos e ficou famoso por ter sido o atleta a competir mais tempo sem nunca ser derrotado. Milo de Creta era discípulo de Pitágoras e, portanto, era um atleta vegano, assim como todos os discípulos de Pitágoras. Milo não se destacou somente no campo dos esportes, sendo conhecido também por uma célebre carreira militar. O treinamento elaborado por Pitágoras incluía uma dieta vegana e crudívora e por cerca de mil anos depois, até a interrupção dos jogos olímpicos devido ao surgimento do cristianismo, treinadores continuaram se inspirando em seu treinamento. A civilização seguinte – a romana – ficou conhecida, entre outras coisas, pelos duelos entre gladiadores, que também eram veganos. A ração elaborada para os soldados romanos também se constituía essencialmente vegetal: principalmente de grãos de cevada umedecidos.

ANDA – E quanto aos atletas dos últimos séculos?

Rynn Berry – Com exceção dos períodos durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, quando os jogos olímpicos foram suspensos, é possível encontrar inúmeros atletas vegetarianos ao longo da história, como por exemplo o corredor finlandês Paavo Nurmi (1897-1973), o nadador escocês Murray Rose, o ganhador estado-unidense de 10 medalhas olímpicas (sendo 9 de ouro) de salto a distância Carl Lewis, o seis vezes campeão do Ironman Triathlon Dave Scott, o tri atleta canadense Brendan Brazier… E há ainda o impressionante caso da maratonista e seis vezes campeã do Ironman Triathlon Ruth Heidrich que, aos 47 anos, teve um câncer de mama diagnosticado para o qual os tratamentos convencionais já não eram satisfatórios, pois a doença já havia se espalhado. Foi então que ela conheceu o Dr. John McDougal, que havia se especializado nos efeitos de uma dieta vegana e crudívora em pacientes com câncer de mama e, como Heidrich diz, colocou seu destino e, em última instância, sua vida nas mãos dele. Ruth resolveu não se submeter ao tratamento químico, mas sim mudar sua dieta, vencendo o câncer aos 47 anos de idade. Hoje, 20 anos depois, ela continua viva e saudável. Então sim, pode-se dizer que a dieta vegetariana melhora o desempenho dos atletas por diversas razões, agindo como um anabolizante natural e sem efeitos colaterais. Uma delas é que uma refeição vegana – especialmente a crudívora, em que não há alteração química do alimento – é muito mais facilmente digerida pelo corpo humano do que uma refeição que contenha carne, derivados de animais (ovos e leite), aditivos químicos etc. Além disso, especialistas afirmam que a energia e os nutrientes de fontes vegetais são melhores assimiladas e há maior aproveitamento pelo corpo humano do que em alimentos derivados, por serem provenientes de uma fonte primária.

ANDA – Você poderia explicar o que é a competição “Ironman Triathlon”?

Rynn Berry – O Ironman é uma competição que surgiu no Havaí, em 1978 e é caracterizada por exigir muito dos atletas. Na sua primeira edição, 15 super atletas competiram, mas somente 12 deles completaram a prova. A competição é constituída por três etapas, ou seja, é um triathlon, as quais são: 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42 km de corrida. Portanto pode-se dizer que é um dos maiores desafios para a carreira de um atleta e exige muito treinamento e disciplina, o que torna ainda mais memorável a participação e o destaque de atletas veganos como campeões.

ANDA – O ótimo desempenho dos atletas veganos exerce influência sobre a opinião pública a respeito do veganismo?

Rynn Berry – Bem, nos Estados Unidos as pessoas costumam idealizar os atletas olímpicos, pois são associados a valores como força, resistência e glória. Seria como se, no Brasil, jogadores de futebol como o Pelé e o Kaká adotassem uma dieta vegana, e então certamente sua influência seria significativa para a divulgação e desmistificação do veganismo. Campeões que mantêm uma alimentação vegana são potenciais inspirações para todas as pessoas.

ANDA – No seu livro “Famous Vegetarians” (“Vegetarianos Famosos” – ainda sem tradução para o português), Pitágoras é citado como “pai do vegetarianismo”. Quais são os documentos históricos que o levam a crer que esta era a dieta adotada por ele?

Rynn Berry – Há diversos documentos deixados por biógrafos de Pitágoras, tais como Jâmblico, Diógenes Laércio e Porfírio, por meio dos quais é possível constatar que essa era a dieta adotada por ele. Há ainda referências nas biografias de seus discípulos, que também eram vegetarianos, entre os quais se destacam Platão e Sócrates.

ANDA – E qual é a importância de Pitágoras para o vegetarianismo ético e as teorias relativas aos direitos animais que conhecemos hoje?

Rynn Berry – Embora Pitágoras seja lembrado principalmente por sua descoberta da fórmula matemática que ficou conhecida como “Teorema de Pitágoras” (o quadrado da hipotenusa de um triângulo é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados – os catetos), ele também é o pai do vegetarianismo. Na verdade, até o final do século XIX, a palavra “vegetarianismo” ainda não era usada, então aquele que seguia uma dieta vegetariana era a denominado como “pitagoriano”, ou seja, seguidor da dieta defendida por Pitágoras. Há um registro histórico datado do século XIX (ano de 1847) em que o convidado de um jantar que não consumia produtos de origem animal é denominado como “pitagoriano”. Com o tempo, variantes do vegetarianismo crudívoro adotado e defendido por Pitágoras foram aparecendo e, portanto, necessitando de novas denominações (dietas ovo-lacto-vegetarianas, lacto-vegetarianas etc) e, devido a isso, para diferenciar o vegetarinismo estrito, surge em meados do século XX (1944) o neologismo “vegan”, que utilizamos hoje. Pitágoras é uma das figuras mais marcantes da história da cultura ocidental. Além do citado teorema que foi batizado com seu nome, ele também foi o autor de muitas outras descobertas matemáticas e geométricas. Foi Pitágoras quem primeiro percebeu que a harmonia musical é determinada pela proporção matemática e foi também ele quem primeiro concebeu a idéia de movimento planetário. Ele antecipou em dois mil anos a especulação de Copérnico de que a Terra era uma esfera planetária que se movimentava em torno do Sol. Ele foi a primeira figura historicamente comprovada na cultura ocidental a ter fundado uma sociedade que buscava sua própria sabedoria – philosophia (termo cuja criação é atribuída a ele, que originou a palavra “filosofia”, em português). O consumo de carne e o materialismo eram tabus na fraternidade pitagoriana, não só porque eram considerados moralmente repugnantes, mas porque eram vistos como práticas que interferiam na realização da teoria da pura contemplação. Pitágoras ensinou que, através da transmigração das almas, todas as formas de vida animal estão inter-relacionadas. Precisamente porque o corpo de um veado poderia abrigar a alma de um ente querido, portanto comer da sua carne seria semelhante a um ato de canibalismo. Do mesmo modo, Darwin, na teoria da evolução, mostrou-nos que por motivo da descendência a partir de um ancestral comum, todas as formas de vida – de um peixe a um filósofo – estão relacionadas.

ANDA – A dieta vegana é defendida há milhares de anos como sendo a única dieta que pode ser verdadeiramente ética, livre do sofrimento animal. No entanto, nos dias atuais tem se tornado cada vez mais comum, sobretudo em países europeus, uma retomada da criação de animais como sendo de estimação dos quais se obtêm alimentos. As pessoas que aderem a este estilo de vida, alimentando-se de produtos de origem animal somente nestas circunstâncias – também considerados “bem-estaristas” – muitas vezes alegam que essa relação não é exploratória, pois consideram que há uma ligação sentimental e um tratamento respeitoso para com o animal. Qual é a sua opinião sobre isso?

Rynn Berry – Quando essas pessoas acreditam não estar explorando seus animais porque eles são de estimação, porque há uma ligação sentimental ou ainda porque essa é só uma parte da sua produção natural, não afetando drasticamente o ciclo de vida do animal, acho que é interessante perguntar a essa pessoa se ela faria o mesmo com um hóspede que esteja em sua casa. Afinal, seguindo essa lógica, não se trata de uma exploração se você o está tratando muito bem. Pergunte a essa pessoa se ela tiraria o leite ou provocaria abortos nos seus hóspedes e ela ficará chocada. Então por que isso seria algo tolerável para se praticar com animais?

Livros do autor:

The New Vegetarians (Novos Vegetarianos) – o primeiro livro do autor traz uma coleção de entrevistas com vegetarianos famosos. Foi muito bem recebido pela crítica, tendo sido objeto de um ensaio na revista Time e tendo sido selecionado para leitura recomendada por Bon Appetit. Também inspirou uma artigo na seção que trata de alimentação às Quartas-feiras no The New York Times e foi elogiado pela Biblioteca Oficial, bem como outras revistas da União Européia.

Famous Vegetarians and Their Favorite Recipes (Vegetarianos famosos e suas receitas favoritas) – fruto do gosto do autor pela culinária, o leitor deste livro não tem desculpas para fracassar na execução das receitas – Berry fez questão de testá-las três vezes!

The Vegan Guide to the New York City (Guia Vegan da Cidade de Nova York) – o vegetariano que reside ou visita Nova York já não se encontra desamparado! Com este guia Rynn Berry indica os melhores pontos da cidade onde reside atualmente para um veganos.

Hitler: Neither Vegetarian Nor Animal Lover (Hitler: Nem Vegetariano, Tampouco Amante dos Animais) – consequência das constantes inquisições feitas ao autor sobre o porquê de não ter incluído Hitler na lista do “Famous Vegetarians”, o livro traz descobertas as respeito das preferências alimentares do ditador, desmistificando a idéia de que Hitler era vegetariano.

Food for the Gods: Vegetarianism and the World’s Religions (Alimento Para os Deuses: Vegetarianismo e as Religiões do Mundo) – reunindo informações a respeito das principais religiões em diversos países, este livro foi construído através da vasta pesquisa feita pelo autor durante suas experiências morando em diferentes lugares do mundo.

Fruits of Tantalus: A History of Vegan Rawfoodism and Fruitarianism and the Origins of Cooking – with Recipes (Frutos de Tantalus: A História do Crudivorismo e do Frugivorismo e as Origens do Hábito de Cozinhar – com Receitas) – nesta publicação o autor explora as raízes antropológicas, históricas e religiosas do crudivorismo.

Outros livros indicados pelo autor durante a palestra para interessados em dietas veganas para atletas:

David Scott trainee – Manual for Ironman

Carl Lewis manual

A Race For Life – Ruth Heidrich

Senior Fitness – Ruth Heidrich

Nutrition And Athletic Performance – Douglas Cramp

(Foto por Carolina Dargel)

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