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TRÁFICO

Macacos raros são retirados da natureza e vendidos como animais domésticos

Vinte e cinco macacos capturados na República Democrática do Congo e apreendidos por autoridades do Zimbábue estavam destinados à exportação da África do Sul.

30 de abril de 2021
Rachel Fobar (National Geographic) | Traduzido por Gabriele Lopes e Marcella Martinez Marques
11 min. de leitura
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Foto: Reprodução | Wikipedia

Em setembro de 2020, doze mangabeis-de-ventre-dourado, ameaçados de extinção, e treze outros macacos foram resgatados pelas autoridades da vida selvagem do Zimbábue. Esses animais aguardam transferência para um santuário em seu país de origem, a República Democrática do Congo, e podem eventualmente ser devolvidos à natureza. 

Durante uma fiscalização de rotina na fronteira no início de setembro, as autoridades zimbabuanas resgataram 25 macacos jovens, encontrados em gaiolas na traseira de um caminhão que entrava no país vindo da Zâmbia com destino à África do Sul.

Os agentes, com o Projeto Anti-Caça Furtiva do Chirundu, uma operação conjunta entre a Autoridade de Gestão de Vida Selvagem e Parques do Zimbabwe (ZimParks) e a Hemmersbach Rhino Force, imediatamente perceberam que algo estava errado porque os animais não eram nativos de seu país. Eles prenderam os quatro homens que estavam no caminhão.

“Eles estavam contrabandeando os macacos”, disse o porta-voz da ZimParks, Tinashe Farawo. “Tentaram subornar alguns dos oficiais na fronteira.”

Até o momento, essa é uma dos maiores resgates conhecidos de primatas comercializados ilegalmente na África, de acordo com a Pan African Sanctuary Alliance (PASA), uma coalizão localizada nos EUA e composta por 23 centros e santuários de vida selvagem em todo o continente. O caso destaca uma rota bem conhecida de contrabando por via terrestre de primatas vivos da República Democrática do Congo (RDC), passando pela Zâmbia e o Zimbábue até a África do Sul, afirma Jean Fleming, gerente de comunicações da PASA.

É possível que milhares de animais, incluindo centenas de primatas, sejam comercializados de forma ilegal por meio desta rota todos os anos, diz Adams Cassinga, um explorador emergente da National Geographic e fundador da organização de investigação de crimes contra a vida selvagem Conserv Congo.

Ele descreve a RDC como o marco zero para o tráfico de vida selvagem, e diz que esses animais são vulneráveis, sobretudo, porque tanto os grandes símios quanto os pequenos primatas possuem alta demanda nos zoológicos, no comércio ilegal de carne de caça e como animais domésticos.

Os macacos confiscados são todos nativos da República Democrática do Congo: 12 mangabeis-de-ventre-dourado, dois macacos de L’Hoest, dois macacos-lesula, dois mangabeis-de-bochechas-cinzas, cinco macacos-de-nariz-branco e dois macacos-do-pântano-de-Allen. A União Internacional para a Conservação da Natureza, uma autoridade global que trata do estado de conservação de animais e plantas selvagens, identifica a maioria dessas espécies como vulneráveis ou ameaçadas de extinção.

Os homens, que são cidadãos da RDC, Zâmbia e Malawi, foram condenados por tráfico de vida selvagem e agora cumprem pena de seis meses na prisão de Karoi, no norte do Zimbábue. Os traficantes disseram aos agentes da ZimParks que estavam levando os animais para a África do Sul. Enquanto isso, até que possam ser transferidos para um santuário, os macacos estão sendo cuidados pelo Projeto Anti-Caça Furtiva do Chirundu, em uma vila próxima a fronteira Zimbábue-Zâmbia, num endereço confidencial.

Os 25 macacos estavam possivelmente a caminho de zoológicos na China, conta Gregg Tully, diretor executivo da PASA. Com o crescimento da classe média da China, cresceu também o número de zoológicos privados no país, todos ansiosos para exibir os primatas africanos. Aproximadamente cem zoológicos foram abertos nos últimos cinco anos, de acordo com Dave Neale, diretor de bem-estar animal da Animals Asia, uma organização de bem-estar animal localizada em Hong Kong.

O Ministério da Habitação e Desenvolvimento Urbano-Rural da China possui códigos de bem-estar para os zoológicos do país. No entanto, de acordo com um relatório de 2018 da Ape Alliance, um grupo que busca combater o comércio de grandes símios, muitas instalações estão “operando em contravenção a essas regulamentações nacionais.”

Quando questionado, o Ministério da Habitação e Desenvolvimento Urbano-Rural não forneceu nenhum comentário.

Um “caso divisor de águas”

“Vinte e cinco animais é uma grande quantidade – não é algo aleatório”, diz Fleming. “É um esquema organizado para transportar o maior número de animais em um caminhão que cruza as fronteiras.” As quatro condenações, acrescenta, tornam este um “caso divisor de águas.”

Cassinga destaca que a RDC não é somente o local de origem do comércio ilegal de vida selvagem, mas também uma das principais zonas de trânsito para o tráfico de animais africanos. Ela compartilha com outros países nove fronteiras amplamente transitáveis e não monitoradas.

“Nossas fronteiras são extensas e possuímos uma das agências de segurança mais fracas do mundo”, diz Cassinga. Se alguém está tentando escapar da aplicação da lei na RDC, “essa pessoa pode facilmente desaparecer.”

Depois dos pangolins e dos elefantes, diz Cassinga, os grandes símios são os animais mais procurados por caçadores. A RDC é o lar de três das espécies mais valiosas – chimpanzés, gorilas e bonobos. De acordo com um relatório das Nações Unidas, nos anos de 2005 a 2011, mais de 3.000 grandes símios desapareceram das florestas da África e da Ásia. Os pequenos primatas, o que inclui a maioria dos macacos confiscados no Zimbábue, também possuem alta demanda, visto que seu tamanho os tornam mais fáceis de esconder e transportar, reitera Cassinga.

A RDC possui tantos “animais incríveis e endêmicos – você não irá encontrá-los em nenhum outro lugar do mundo”, assegura Franck Chantereau, presidente e fundador do J.A.C.K Chimpanzee Sanctuary, uma instalação de resgate em Lubumbashi para chimpanzés e jagras do senegal órfãos em razão do comércio ilegal. “O país está perdendo animais em um ritmo intenso”, diz ele. O santuário, que é membro da PASA, concordou em fornecer um lar para os macacos confiscados, que devem chegar a qualquer dia.

A República Democrática do Congo “está perdendo animais em um ritmo intenso.”
Franck Chantereau, Presidente e fundador do J.A.C.K Chimpanzee Sanctuary

A teoria de Chantereau é a de que, como os 25 macacos são jovens, eles podem ser vítimas de uma organização de carne de caça, como muitos dos chimpanzés órfãos que seu santuário acolhe. Os caçadores furtivos são pagos para matar animais adultos por sua carne, e seus filhotes, que não oferecem mais do que meio quilo ou dois de carne, são contrabandeados para o comércio de animais domésticos ou zoológicos.

Ao serem questionados, os representantes do Instituto Congolês para a Conservação da Natureza, que administra parques nacionais e é responsável por preservar as espécies protegidas, não forneceram nenhum comentário sobre o tráfico de primatas na RDC.

Um pólo para exportação ilegal

Embora os quatro homens presos em setembro tenham dito às autoridades do ZimParks que estavam a caminho da África do Sul, o destinatário pretendido é desconhecido, diz Smaragda Louw, diretora da Ban Animal Trading (BAT), uma organização sul-africana de direitos dos animais. Louw é co-autora de um relatório de 2020 com a Fundação EMS, outro grupo conservacionista sul-africano, sobre o comércio de vida selvagem do país com a China.

A África do Sul é um pólo para exportação ilegal de animais selvagens vivos e partes de animais mortos, Louw diz — tudo, de primatas e papagaios-cinzento a répteis, girafas e ossos de leão. A China é um grande mercado, mas outros países asiáticos, como Bangladesh e Paquistão, também são destinos.

O contrabando já existe há décadas. Por exemplo, no início dos anos 2000, quatro gorilas-ocidentais-das-terras-baixas conhecidos como os “Taiping Four” foram capturados ilegalmente na selva em Camarões, enviados pela África do Sul, e acabaram no zoológico de Taiping, na Malásia. Os animais foram eventualmente devolvidos para Camarões.

Em agosto de 2019, um grupo de 18 chimpanzés do Hartbeespoort Snake and Animal Park, perto de Pretória, foi vendido para o Beijing Wild Animal Park na China, de acordo com o relatório da Fundação BAT/EMS.

Os chimpanzés foram listados em suas licenças como criados em cativeiro, mas de acordo com o relatório, a África do Sul não possui criadouros para chimpanzés, e “não há evidências que confirmem que os chimpanzés não foram capturados na natureza e importados ilegalmente para a África do Sul”. Os chimpanzés não são nativos da África do Sul, eles são encontrados apenas na África Central e Ocidental.

Pelo menos 5.035 animais selvagens foram exportados da África do Sul para a China entre 2016 e 2019, aponta o relatório. Muitos dos destinos chineses listados nas licenças de exportação “são pura ficção”, afirma. Uma parte deles não existia, outra não podia ser encontrada ou não era o que os exportadores diziam ser. Alguns, por exemplo, eram edifícios comerciais e hotéis.

‘Uma grande bagunça’

A razão para o crescimento dos negócios de exportação na África do Sul se resume à desorganização e à supervisão negligente, de acordo com Louw.

Para exportar muitas espécies de primatas legalmente, os exportadores devem obter uma licença nos termos da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), um acordo entre nações que monitora o comércio global de vida selvagem.

Cada uma das nove províncias da África do Sul emite suas próprias licenças CITES para exportação, diferente da maioria dos países, em que o governo nacional é responsável por isso. Além disso, tudo é feito no papel. “Não temos um banco de dados de licença centralizado na África do Sul” diz Louw. “Tudo está em arquivos e caixas… uma grande bagunça”.

Isso facilita o comércio ilegal, ela diz, porque os traficantes podem reutilizar licenças de exportação antigas, apenas mudando informações como o endereço do exportador ou a espécie do animal. “Não há como os responsáveis verificarem se aquela licença foi utilizada antes”, afirma.

O Departamento de Meio Ambiente, Silvicultura, e Pesca da África do Sul “não está ciente de quaisquer desafios” com seu sistema de autorização CITES emitido em papel, escreveu o diretor de comunicação, Albi Modise, em um e-mail. É incorreto dizer que o sistema de permissão da África do Sul facilita o tráfico, porque “uma vez que a licença foi usada, não pode ser reutilizada pois será cancelada no ponto de entrada”.

Mesmo que comerciantes ilegais sejam detidos, eles não são necessariamente impedidos de obter uma licença de exportação no futuro, diz Louw. Por exemplo, um comerciante ilegal de répteis chamado Beric Muller foi considerado culpado de contrabandear sapos para Taiwan sem as licenças de exportação necessárias, mas depois de pagar uma multa, ele continuou a solicitar e receber licenças, de acordo com Louw.

Regulações internacionais não exigem que países exportadores assegurem que o endereço de destino seja legítimo, disse ela. Isso significa que animais selvagens ameaçados de extinção podem acabar em parques de diversão, circos e laboratórios. Isso contraria a exigência da CITES, de que certas espécies protegidas não sejam negociadas principalmente para fins comerciais, disse Louw.

Em vez disso, cabe às autoridades do país importador garantir que as instalações de destino sejam adequadas, Francisco Pérez, um porta-voz da CITES, escreveu por e-mail. Licenças de importação são necessárias para espécies marcadas com o nível mais alto de proteção pela CITES, incluindo todos os grandes símios. Para espécies com níveis mais baixos de proteção, licenças de importação não são necessárias, o que significa que não é obrigatório para nenhum dos países verificar o destino.

Quando pesquisadores da Fundação BAT/EMS investigaram os destinos listados nas licenças de exportação para muitos dos animais vivos enviados da África do Sul de 2016 a 2019, descobriram que muitos dos destinos não eram legítimos.

Alguns zoológicos na China, por exemplo, adquiriram animais ameaçados de extinção para exibi-los principalmente a fim de benefício comercial. Outros animais acabaram em criadouros, onde desapareceram em um “buraco negro”, disse Louw.

Modise negou que o departamento tenha emitido qualquer licença que viole os regulamentos da CITES. Não existe “nenhum instrumento legal que capacite a África do Sul, como o país exportador, a monitorar o cumprimento da [CITES]” nos países importadores, disse Modise. A responsabilidade recai sobre os países importadores para garantir que eles tenham legislações domésticas em vigor.”

‘Os sortudos’

Foi de “partir o coração” que ninguém mais pudesse receber os 25 macacos confiscados, disse Franck Chantereau, do J.A.C.K Chimpanzee Sanctuary. Embora fossem de espécies com as quais ele não estava familiarizado, e mesmo com pouco dinheiro e espaço, ele sabia que deveria intervir.

Chantereau arrecadou dinheiro para construir quatro gaiolas, cada uma com cerca de 6 metros de altura, e três cercados ao ar livre, com grama e árvores para os macacos explorarem.

Eles devem chegar em Lubumbashi a qualquer dia, mas J.A.C.K provavelmente será um lar temporário. Quando os macacos estiverem mais velhos e mais fortes, as autoridades na RDC aprovarão que eles retornem à natureza, diz ele.

Ele chama os macacos de “os sortudos”, mas Chantereau se pergunta sobre todas as outras vítimas, aquelas que não têm uma segunda chance. “E os milhares de macacos que chegam à capital de Kinshasa todo mês, apenas para se tornarem carne de caça?” diz ele. “Vamos acabar por esvaziar a floresta para sempre.”

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