EnglishEspañolPortuguês

VULNERABILIDADE VULNERABILIDADE VULNERABILIDADE

Onças-pintadas em parques protegidos no Suriname continuam vulneráveis à caça

Conservadores estão trabalhando com outras ONGs, universidades e representantes chineses em uma campanha de conscientização para o fim da caça e do tráfico,Conservadores estão trabalhando com outras ONGs, universidades e representantes chineses em uma campanha de conscientização para o fim da caça e do tráfico,Conservadores estão trabalhando com outras ONGs, universidades e representantes chineses em uma campanha de conscientização para o fim da caça e do tráfico

16 de março de 2021
Tainá Fonseca | Redação ANDATainá Fonseca | Redação ANDATainá Fonseca | Redação ANDA
14 min. de leitura
A-
A+

O Parque Natural de Brownsberg e a Reserva Natural do Suriname Central são áreas protegidas no Suriname, América do Sul, onde a caça de onças-pintadas é abundante.

Caçadores e oportunistas como mineradores ilegais e madeireiros matam os animais, arrancam sua pele, ossos e dentes e fervem o resto da carcaça até formar uma pasta que então é traficada para compradores chineses.

Os caçadores têm agido com impunidade em meio a falta de monitoramento e aplicação da lei pelas autoridades, mas conservadores dizem que a pandemia de Covid-19 tornou a situação pior.

Conservadores estão trabalhando com outras ONGs, universidades e representantes chineses em uma campanha de conscientização para o fim da caça e do tráfico.

Imagem de onça pintada
Pixabay

Em meados de junho de 2012, poucos meses depois do início do monitoramento das onças dentro do Parque Natural de Brownsberg no Suriname, a bióloga Vanessa Kadosoe viu Amalia pela primeira vez. Pelas fotos de uma armadilha fotográfica, ela observou a filhote de onça andando ao lado de seus pais, Máxima e Willem Alexander, os monarcas da selva até lá. Kadosoe os nomeou em homenagem ao rei e rainha holandeses, e porque Amalia é o nome da primeira filha do casal, e era apenas justo que a filhote tivesse aquele nome.

Por oito anos, ela viu Amalia crescer para se tornar a onça feminina dominante nas partes central e leste de Brownsberg, onde as câmeras foram estabelecidas. Mas em fevereiro de 2020, Amalia desapareceu. Kadosoe esperou algumas semanas, que se tornaram meses. Onças geralmente vagueiam por áreas grandes – até 500 quilômetros quadrados, então parecia razoável pensar que poderia demorar um pouco para Amalia voltar. Mas, um ano depois, ainda não se sabe do paradeiro de Amalia. Onças podem viver até 20 anos na selva, então o desaparecimento de um animal de 8 anos é suspeito, especialmente em regiões onde caçadores são conhecidos por se esconder, e onde eles têm invadido cada vez mais desde que a pandemia de Covid-19 começou.

Amalia não é a única onça que sumiu do radar durante os nove anos de pesquisa dentro do Parque Natural de Brownsberg de Kadose, onde ela observou 27 desses gatos grandes. “Entre 2014 e 2015, três desapareceram: Máxima, Kate e George. Apesar de haverem diversas razões para isso, naquela época recebemos informações que a cidade mais próxima do parque, Brownsberg, partes de onça estavam sendo traficados,” diz Kadosoe.

Essa é apenas uma das histórias sinistras sobre onças desaparecendo no Suriname, mesmo com áreas protegidas como o Parque Natural de Brownsberg ou a Reserva Natural do Suriname Central. Fontes entrevistadas para este artigo dizem que isso acontece debaixo dos narizes das autoridades, que não têm os recursos para proceder a uma vigilância contínua. Algumas fontes ainda culpam os altos níveis de corrupção dentro do estado.

A falta de supervisão apenas piorou desde que a pandemia começou; pesquisadores como Kadosoe descobriram que mineradores de ouro e madeireiros estão entrando no coração das áreas protegidas e também caçando as onças.

Áreas protegidas em perigo

“Nossas pesquisas indicam que a demanda por onças, particularmente a pasta das mesmas, encoraja a caça desse animal, tanto oportunista quanto organizada, dentro e em volta de áreas protegidas,” explica Nichola Brischi, uma das poucas investigadoras que rastreou de forma abrangente o tráfico de onça em partes do Suriname, graças a seu trabalho disfarçado em 2017 e 2018. “Isso também acontece perto de áreas industriais como mineradoras e madeireiras.”

A pasta de onça é uma substância com textura de cola obtida pelo fervimento de uma carcaça inteira de onça durante 5 dias. Sua demanda é alta na medicina tradicional chinesa, onde é conhecida por aliviar dor de artrite e melhorar a performance sexual, dentro de outros benefícios para a saúde, apesar de não haver nenhuma evidência científica que comprove tais fatos.

Pauline Verheij, uma advogada criminal da vida selvagem, diz ao Mongabay Latam que uma das áreas mais afetadas pela caça da onça é o Parque Natural de Brownsberg e outros pontos no oeste do país, próximo à fronteira com Guiana.

“Sim, há caçadores especialistas procurando onças, mas a caça das onças acontece no Suriname inteiro, onde quer que haja conflito humano”, diz Verheij. Isso é apoiado por uma pesquisa feita pelo Comitê IUCN Netherlands.

Anna Mohase do WWF Suriname diz que invasões a áreas protegidas como Brownsberg ocorrem porque essas são áreas de fácil acesso. “Há invasões por estrada e por rio. A probabilidade de caça em parques é alta por causa da vigilância limitada”, diz.

Esses são apenas alguns indicadores do que está acontecendo dentro dos parques e reservas surinamesas, e não apontando apenas para onças, mas a vida selvagem em geral. Com uma população humana de apenas pouco mais de 500,000 e florestas que ocupam 93% de seu território, esse país sulamericano ainda mantém uma grande e estável população de onças. Nos últimos 10 anos, no entanto, essa estabilidade foi prejudicada pelo tráfico de partes de onça para a Ásia. Apesar dos avisos repetidos dos pesquisadores sobre o incidente de tráfico de onças em áreas protegidas, invasões ilegais se intensificaram em 2020, de acordo com especialistas entrevistados pelo Mongabay Latam.

Eles concordaram nas principais ameaças para o superpredador: assassinatos retaliatórios; pessoas apontando onças como assassinos de animais e animais de estimação; destruição e fragmentação do habitat da onça; e a caça pela troca de vida selvagem, uma atividade que se tornou a principal ameaça para os felinos.

A situação é particularmente complexa no Parque Natural de Brownsberg, onde esses três perigos convergem. Criado em 1970 e com extensão de mais de 12,200 hectares (30,000 alqueires), o parque é usado para ecoturismo, pesquisa e propósitos educacionais. Apesar das diversas placas pela área protegida afirmando que a caça, madeiramento e mineração são proibidos, dúzias de empresas de mineração e trabalhadores estão concentrados no oeste do parque.

Lá, eles minam por ouro em uma área de quase 1,000 hectares (2,500 alqueires), de acordo com um estudo da WWF. “Essa atividade vem tomando lugar desde o século 19 na forma de garimpo, e foi decidido que essa prática seria permitida com a criação do parque por conta das tentativas sem sucesso de expulsar os mineradores”, disse o estudo.

Kadosoe, do Instituto Neotropical de Vida Selvagem e Estudos Ambientais do Suriname (NeoWild), diz que, em 2020, no meio da pandemia de Covid-19, mineradores foram vistos misturando ouro com cianeto, um produto químico muito tóxico. “O parque, que já começou a receber turistas no meio do ano, fechou novamente em Outubro pelo medo de contaminação de visitantes”, disse. “A mineração estava sendo feita em diversas cachoeiras que faziam parte da trilha turística”.

A utilização de cianeto pelos mineradores para extração do ouro mostra o quão entrincheirada a mineração ilegal se tornou em Brownsberg, segundo fontes. Durante seus nove anos de estudo das onças no parque, Kadosoe diz estar bem ciente do aumento da ação mineradora, tendo até documentado através de suas câmeras instaladas em 16 lugares. Em Dezembro de 2020, ela identificou cinco pessoas que apareceram nas imagens capturadas pelas câmeras, andando com detectores de metal, fuzis e machados.

“Historicamente, mineradores e madeireiros estão concentrados no pé da montanha, mas pelas câmeras nós pudemos observar até como eles penetram até o topo da montanha de Brownsberg, a lugares que nem os turistas chegam”, diz Kadosoe.

Ela adiciona que é difícil determinar como a mineração tem impactado a população de onças do parque. A densidade dos gatos grandes que ela observou tem variado com os anos, ela diz, de 0.51 para 4.21 onças a cada 10,000 hectares. Uma maior densidade não é necessariamente uma coisa boa, ela adiciona.

“O que conseguimos perceber é que quando os números crescem, pode significar que há mais onças na área, já que o espaço por onde eles podem transitar está diminuindo”, disse Kadosoe. Na verdade, ela diz que, desde 2012, a única área sem restrição para as onças fora do parque é o sul de Brownsberg, apesar das atividades de mineração de ouro já terem começado naquele setor.

Outra mudança que Kadosoe observou é que as onças estão mudando seus hábitos com base no momento em que as atividades mineiras e madeireiras são realizadas.

“Nós vimos como os animais mudaram suas atividades do dia para a noite quando o madeiramento começou. Então, quando os mineradores começaram a trabalhar à noite, eles se tornaram ativos durante o dia”, afirma. “Se conseguimos escutar o barulho das máquinas, eles com certeza também podem. Essa perturbação causa um impacto nas onças.”

A proximidade dos humanos para as onças é perigosa porque faz dos animais uma presa fácil. Quando três onças desapareceram entre 2014 e 2015 em Brownsberg – Máxima, Kate and George — Kadosoe começou a medir a gravidade da caça.

“Se vários animais dominantes desapareceram, alguma coisa não está certa. Quem pode garantir que eles não estão sendo roubados para o tráfico?”, questiona.

Para Els Van Lavieren, uma pesquisadora do Conservação Internacional do Suriname, não há dúvidas de que eles estão sendo traficados.

“Todas as pessoas que trabalham com madeiramento e mineração já disseram que se eles virem uma onça, eles a caçarão”, disse.

Conservação Internacional é uma das poucas organizações que monitoram constantemente o tráfico da vida selvagem no Suriname, e Van Lavieren é uma das especialistas que sabe muito bem o que está acontecendo. Ela diz que sua experiência mostrou que outros pontos de caça de onça são o norte da Reserva Natural do Suriname Central, uma área ostensivamente protegida de 1.6 milhões de hectares (4 milhões de alqueires), essa área também é um Patrimônio Mundial segundo a UNESCO. Um relatório recente da Wildleaks, publicado pela Liga Internacional da Terra (ELI) em tráfico de vida selvagem pelo mundo, também identifica a caça ocupando as reservas.

“Nós temos informações sobre caça no norte da reserva onde não apenas onças eram caçadas, mas também outros animais como a jaguatirica”, diz a co-fundadora e pesquisadora Andrea Crosta. Wildleaks é o primeiro projeto do mundo a dedicar relatórios ao crime ambiental, principalmente por denúncias anônimas.

Kadosoe diz que o que está acontecendo em Brownsberg, a Reserva Central do Suriname e o resto do país foi delatado para a Fundação para Conservação da Natureza (STINASU) e para o Instituto Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (NIMOS), as instituições responsáveis por áreas protegidas e problemas ambientais, respectivamente.

“Nós temos fotos daqueles que entram nas áreas protegidas e as denunciamos para as autoridades, mas não há nenhuma resposta”, disse. Mongabay Latam procurou declarações das duas organizações, mas não recebeu nenhuma resposta como essa matéria foi publicada primeiramente em espanhol.

Van Lavieren diz que a Conservação Internacional está monitorando constantemente o tráfico de onças e notificando as mesmas autoridades sobre os casos potenciais. “Mas eles não são tratados porque os fundos para conservação são escassos,” ela diz.

Anatomia do Crime

“Traficantes não ligam de onde as onças vêm. O sistema é que eles vão comprar as onças que são levadas a eles,” diz Crosta da ELI.

Um nativo italiano, Crosta mapeou o tráfico da vida selvagem pelo mundo e desde 2018 tem batalhado para chegar no coração do tráfico de onças na América do Sul pelo Operação Projeto Jaguar, liderado pela IUCN Países Baixos e pelo Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal (IFAW). Naquele tempo, o projeto juntou informações sobre o que está acontecendo no Suriname, o perfil dos envolvidos e os métodos utilizados pelos traficantes para chegar à Ásia, especificamente à China.
A primeira coisa que Crosta e os outros especialistas entrevistados pela Mongabay Latam enfatizaram é que esse crime é cometido abertamente e com impunidade. Pauline Verheij, a advogada, diz que embora os subornos sejam dados em toda cadeia de tráfico, não há necessidade para tal. “Não há muito a cobrir,” ela diz.

Verheij diz que há uma falta de atenção ao tráfico: ainda em 2003, a compra e venda de partes de onças não era vista como crime no Suriname. “Quando eu juntei testemunhas, eu falei com um ex-agente do Serviço Florestal Nacional que foi abordado por um dono de um supermercado chinês procurando por uma onça,” Verheij diz.

O relatório da Wildleaks também destaca a falta de vigilância por parte das autoridades em áreas específicas. “Apesar de haver postos de controle, a polícia não procura por carros levando animais ilegalmente, o que facilita esse transporte,” segundo o mesmo. Ele adiciona que os traficantes usam ônibus públicos e caminhões madeireiros para transportar as onças até os supermercados.

É nos supermercados que grande parte do processamento das onças é feito para o contrabando subsequente para a China. De acordo com van Lavieren, essas mercearias pertencem a cidadãos chineses e localizadas em Paramaribo, capital do país, e em cidades próximas às áreas florestais. “Isso acontece mais na parte ocidental do Suriname. Quando o local é longe do litoral, eles as encaminham por avião,” ela diz.

Em Paramaribo, por exemplo, ELI juntou informações sobre um supermercado chinese próximo a uma rodovia suspeito de tornar onças mortas em pasta. De acordo com os pesquisadores de ELI e da Proteção Animal Mundial, os traficantes primeiramente esfolam o gato, então abrem seu corpo, apanham seus dentes e alguns de seus ossos. O que resta é fervido em um barril para fazer pasta de onça, e cada onça rende de 20 a 30 potes, de acordo com a Proteção Animal Mundial.

De acordo com o relatório do Wildleaks, todos os compradores de pasta de onça são chineses, que pagam grandes quantidades de dinheiro pelo produto. Em Abril de 2017, fotos de onças foram publicadas no Facebook. Era uma fêmea que pesava em torno de 110 quilogramas, e tinha sido assassinada a 30 quilômetros do aeroporto de Afobaka, perto do parque de Brownsberg. Quando uma fonte de ELI tentou comprar a carcaça do animal, já era muito tarde: um cidadão chinês já havia comprado, apenas 12 horas depois da foto ter sido publicada.

Na base da pirâmide de tráfico estão os moradores: caçadores, madeireiros ou mineradores ilegais que cruzam animais e oportunisticamente os matam porque sabem que sempre há um mercado para onças. De acordo com os primeiros descobrimentos de ELI, focos foram encontrados nas cidades de Nickerie e Wageningen, no nordeste do Suriname, e em Klaaskreek, que fica ao norte do parque de Brownsberg.

Crosta diz que o próximo passo é a hierarquia chinesa: os intermediários, os receptores das partes traficadas, os processadores e compradores.

“Há algo que você tem que entender. Não existe algo como um Pablo Escobar que gerencia o tráfico da vida selvagem na América Latina. Há homens de negócio que lidam com questões legais e ilegais”, comentou ele.

Segundo ELI, suas fontes confirmaram que o tráfico de onça é apenas uma das atividades ilícitas das quais os chineses estão envolvidos no Suriname. “Eles também estão envolvidos em lavagem de dinheiro, drogas e até tráfico de pessoas”, aponta o relatório da organização.

Enquanto as formas mais comuns de tráfico de partes de onças é pelo ar, em bagagens de mão levadas por passageiros indo para Ásia, descobriu-se que desde 2018 muitos dos itens traficados são escondidos em toros de madeira que são enviados para a China por navio. De acordo com o Portal Internacional do Comércio da Madeira, em 2018 a China era a segunda maior compradora de madeira do Suriname, contando mais de um quarto de toda sua exportação.

O início da pandemia de Covid-19 exacerbou a vulnerabilidade das onças. “É difícil imaginar que o Covid-19 não teve nenhum impacto nesse animal. Agora não há muitos olhos assistindo o que acontece no interior do país, porque não há turistas”, disse Van Lavieren.

Apesar disso, grupos de conversa como a CI não estão parados calmamente, ela diz. “Durante 2018 e 2019 nós transmitimos comerciais na televisão nacional e chinesa para avisar sobre os perigos de caçar onças”, salienta Van Lavieren.

Isso foi feito em coordenação com representantes chineses no Suriname, que abordaram a CI por conta da preocupação com o tráfico. Cartazes em português, holandês e surinamense também foram pendurados. Comerciais na rádio também estão buscando ouvintes no interior do país.

Um grupo de ONGs nacionais e internacionais e universidades está coordenando a criação de um time de trabalho na conservação da onça. Essas atividades incluirão mais monitoramento para estabelecer o número de onças vivas e tem colaboração com o governo para suporte técnico e operacional.

Anna Mohase do WWF Suriname diz que atitudes devem ser tomadas para que haja conformidade com a lei durante o treinamento, fornecimento de equipamento e recrutamento de pessoal para vigilância, que deve aumentar no campo e nas fronteiras. No caso de áreas protegidas como Brownsberg, a bióloga Vanessa Kadosoe diz que é importante criar uma zona de segurança mais forte.

“Se a onça desaparecer de lugares como Brownsberg, nós saberemos por um fato que as outras espécies também vão”, reforça.

Kadosoe volta para Amália, a onça que viu pela primeira vez como filhote em 2012 e que desapareceu há um ano. Ela diz que espera que Amalia seja encontrada em algum lugar onde esteja a salvo, e que não tenha acabado como presa de um traficante.

 

 

    Você viu?

    Ir para o topo