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Novo amanhecer

29 de junho de 2020
3 min. de leitura
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Pixabay/igorovsyannykov

Ele veio sem muita conversa e sem muito explicar, indeciso, pela estrada que ao findar daria em nada. Cão sem dono, marcado de solidão e desencontros. Não sabia se já viveu muito, se já sofreu tudo. Errante, qual barco sem rumo nem vela, náufrago, bandido ou fugitivo, perambulava entre gente e olhares. Mas o destino que se cumpriu subverteu o que era razão. E no abismo do pensar nasceu um sentimento.

Vinha triste e fatigado. E fatigado e triste ele vinha. Eis que uma porta se abre e logo surgem dois braços abertos. Nunca conhecera ninguém assim, como uma dádiva, perfeita imagem da delicadeza. O arco da promessa torna-se refúgio. Se é noite de inverno ou se chove lá fora, pouco importa, o lar temporário virou aconchego, porto seguro. Alimento para o corpo e para a alma. Adota-me. E assim se fez.

Pela janela do quarto, os dias e os meses a correr. E aos pés dela, mansamente, oferecera toda a sua gratidão. A cidade aflita cada vez mais distante. Felicidade existia, sim, agora tão perto. Para que saber que horas são, se é frio ou faz calor? Para que as ruas, os becos, as esquinas? Dentro daquela casa havia apenas noites com sol, luas crescentes, a clara estrela… Sem deuses, nem dúvidas. O mundo lá fora se deixou ficar.

Pela janela do carro, passeios, paisagens. A ver tudo enquadrado, praças, árvores secas, pedras brancas, praias inesquecíveis, sentia-se encantado, restituído. Ele a acompanhava sempre nas caminhadas, nos bancos de jardim, em trilhas na mata, nas cachoeiras, pensando naquele lugar tranquilo no campo ou num pedaço de qualquer lugar. Outros cães e amigos, outros cheiros e sabores. Como se as coisas fossem para sempre…

Mas mudaram as estações, tudo mudou. E uma força estranha fez aquilo que a força sempre faz. O mundo parado. A vida suspensa. O ano interrompido. Desertos urbanos. Nada mais seria como antes. Desejos imaginários, a se desfazerem qual castelo de cartas. Nada ficou no lugar, o que se acreditava eterno parecia acabar ali. Canção da despedida do velho mundo, hora de ir. Partir para recomeçar.

E como veio ele se foi, não se sabe agora pra onde, animal domesticado que reaprenderia a só ser. Levou consigo as lembranças felizes e a vontade secreta de viver aquilo tudo outra vez. Tinha a intuição de que precisava prosseguir, morrer talvez, pra então renascer em folha, em graça, em vida, em força, em luz. Porque somos todos como pequeninos cães, que acordam famintos ao raiar do dia. E aqui estamos nós, nesta crônica musical da esperança. À espera da luz. De uma manhã. Verdadeira. Novo amanhecer.


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