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As questões éticas por trás de uma pandemia

2 de junho de 2020
3 min. de leitura
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Pixabay

Diante da difusão mundial do Covid-19, a notícia de que o Governo Chinês anunciou a proibição do consumo e venda de animais selvagens trouxe consigo reflexões culturais importantes. Ainda, a informação de que a metrópole chinesa de Shenzhen baniu o consumo de animais domésticos em todo o seu território confortou os entusiastas da cultura ocidental.

Os problemas da vitória são mais agradáveis, mas não menos difíceis, principalmente quando nos remetemos aos direitos dos animais. Muito embora o avanço sem precedentes em termos culturais para a China, a mentalidade dualista com a qual o decreto foi recebido, especialmente pelo Brasil, é digna de indagações.

Não é a primeira -e nem será a última- vez que pandemias são iniciadas pelo consumo de animais. Segundo relatório da ONU [1] , 70% das enfermidades surgidas desde a década de 1940 são de origem animal. O documento cita doenças como HIV-1, encefalopatia espongiforme bovina, síndrome respiratória aguda grave (Sars) e novos vírus de gripe. No entanto, os fatos são ignorados quando desestabilizam paradigmas socialmente aceitos, em função da seletividade (quase inconsciente) do que consumimos.

A indignação seletiva quanto ao consumo de determinadas espécies em face ao incentivo massivo do abate e comércio de outras, nos leva ao embate de discursos hipócritas e conformistas, na tentativa de justificar o injustificável. Cães e vacas não se diferem quanto à sua senescência, consciência e sentimentos, mas recebem tratamentos totalmente diferentes em função dos países em que são criados.

Não se distinguem, aqui, os animais selvagens. A mesma repugnância conferida ao consumo de morcegos, em termos de coerência, deveria ser condicionada aos animais silvestres de território pátrio. Ainda que proibida pela Lei de Crimes Ambientais, a caça ainda é massivamente responsável pelo desequilíbrio ecossistêmico em nossas terras e extinção de espécies. Mas o julgamento internacional sempre nos parece mais conveniente.

Para que se condicionem e padronizem as percepções sociais de certo ou errado, contamos com um sistema cíclico de crenças que conduzem nossas atitudes, e de atitudes que reforçam crenças. E isso nos leva a enxergar o consumo de animais domésticos como um ato desumano, ao mesmo tempo que levamos um pedaço de bife à boca.

Essa incoerência entre nossos valores pessoais e comportamentos socialmente estruturados (logo, dificilmente questionados) nos levam à um certo grau de desconforto moral, que não é de todo negativo. A partir daí, urge o papel da autocrítica: Meus preceitos morais estão em acordo com minhas atitudes? Até onde o meu julgamento é baseado em uma hipocrisia velada? Por onde posso começar a desconstrução de meus pensamentos, e mais importante, de minhas atitudes?

Esse texto não busca (e nem conseguiria) trazer todas as respostas. O caminho é individual, em passo que se torna revolucionário quando traçado comunitariamente.

Ressalto aqui, por fim, que não se trata de uma análise pessimista. Notícias boas, como as em destaque, devem ser divulgadas- e principalmente comemoradas. Contudo, reservo esta missão aos demais vínculos de informação, à medida que me apego às reflexões que estas notórias mudanças podem trazer à sociedade, vez que poucas coisas são tão eficazes na quebra e desconstrução de paradigmas quanto a indagação pessoal. Vamos juntos?

[1] Disponível em: <http://www.fao.org/3/i3440e/i3440e.pdf>.

* Mariana Guimarães é natural de Cuiabá (MT). É Mestranda em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, e possui Pós- Graduação em Direito Animal pela Universidade de Lisboa, Portugal. Atuou como investigadora jurídica no gabinete Provedoria dos Animais de Lisboa, contribuindo na produção de artigos científicos e exercendo assistência jurídica perante casos selecionados de proteção animal nos tribunais portugueses. Voluntariou-se em Porto Elizabeth, África do Sul, onde dedicou tempo e amor aos animais resgatados em situação de maus tratos e em rotas de tráfico da região. No momento, utiliza a pesquisa acadêmica e os meios de comunicação social para propagação do ativismo nas causas animais e ambientais. É consultora jurídica da ANDA.

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