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A revolução da natureza

15 de junho de 2020
6 min. de leitura
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Pessoas na rua andando com máscaras de proteção no rosto por conta do Corona Vírus
Pixabay

Em 1922, T. S. Eliot publicou “The Waste Land” (“A Terra Inútil”). Diante dos massacres da Grande Guerra e o flagelo da chamada “gripe espanhola”, o poeta e crítico compõe um dos poemas que melhor simbolizam uma época de desintegração, necessitada de novo horizonte para superar o caos que invadia todos os aspectos da vida. Agora, um século depois, voltamos a ler os primeiros versos do poema: “Abril é o mais cruel dos meses, gerando lilases que saltam da terra morta, misturando lembranças e desejos, excitando raízes inertes com as chuvas da primavera”, sentindo a proximidade do tempo e o desassossego no que encontramos, somados à mais difícil das perplexidades.

Tudo tem forma de pesadelo. Tudo aconteceu tão inesperadamente. Sua ação foi tão veloz e devastadora, sem reconhecer fronteiras, nem gêneros, nem continentes; é a primeira pandemia verdadeiramente global. E se instala com seu segredo bem guardado, genealogia e possíveis mutações, escapando da vista e análise da ciência. Um desafio que está além da magia e das religiões, desafiando o coração da civilização, seu saber e seu poder. Assistimos a uma verdadeira catástrofe. É como se uma nova forma do O inquietante (Das Unheimliche) freudiano aparecesse gerando medos e pânico, confinando a humanidade enquanto ele viaja com a ostentação do seu poder criminal. O efeito principal foi interiorizar o medo, dar um lar dentro de cada um de nós, gerando assim a pior das submissões. 

Este é o primeiro espaço moral em que nos encontramos, uma inversão do modelo com o que nos administramos em nossa existência. Já não é a exigência da liberdade como princípio da vida individual e social, se não agora a necessidade de segurança e especialmente de segurança biomédica ocupa o primeiro lugar em todo tipo de gestão e opção. Trata-se de um giro antropológico produzido pelas condições da pandemia que hoje domina a relação assimétrica que inspira a política do confinamento. A distância social que foi imposta fragmenta o social e faz que o velho teatro da exemplificada “lei, ciência, democracia, bem estar…” resulte ser insuficiente.

Em seu lugar cresce assim um novo tipo de controle social, necessário para o novo pragmatismo, imposto pelos riscos da pandemia. Sabemos bem; a liberdade individual só pode ser baseada na confiança pública. E as novas formas de controle social darão lugar a novos modelos de sociedade que assumirão como legítimos e necessários os novos sistemas de vigilância. Não corremos o risco de transformar o estado de exceção em regra democrática?

Uma mínima perspectiva histórica nos obriga a pensar nessa pandemia no contexto da globalização. Os múltiplos ávidos sobre possíveis formas de epidemia, indicados por diferentes agências e informes internacionais, deixaram de ter relevância para uma sociedade que havia perdido toda a memória do risco de possíveis infecções, instalada em sua miopia mais além dos imediatismos do mundo atual. Fomos convertidos em uma civilização destruidora que aceita como pratica normal a destruição da biodiversidade, sem perceber os riscos dos que a atual pandemia é apenas “um ensaio geral” antes da catástrofe.

Leio com inquietude as páginas do estudo “Pragas e povos”, o Historiador William H. McNeil, que disse: “Sempre é possível que algum organismo parasita até então desconhecido escape de seu habitat natural e exponha as densas populações humanas… Há alguma nova e talvez devastadora mortalidade”. O que sabemos é que, à medida que a globalização foi avançando, também foi crescendo o risco de propagação de enfermidades infecciosas. E nosso futuro está diretamente relacionado com o esgotamento do planeta.

Faz uns anos, Ulrich Beck, em “A Sociedade de risco”, desenhava o panorama que nos pode oferecer uma sociedade que coloca si mesmo em perigo ao esquecer das consequências que derivam de suas estratégias econômica-políticas. E se Chernobyl era para Beck a expressão por excelência do risco tecnológico, era a partir desse limite que deveria considerar uma reflexão sobre as condições do nosso modelo civilizatório. Pouco depois, Paul Virilio voltaria a considerar a questão do risco ampliando a análise até o campo genético, sugerindo implicações próximas as que hoje estamos sofrendo.

O que está em jogo é um olhar global que aborde a complexidade de um mundo submetido a processos que estão gerando grandes mudanças no planeta, alterando as condições de seus sistemas naturais e modificando sua sustentabilidade. Uma ativa reflexão ocorreu nas últimas décadas apontando a urgência de políticas que modificam a situação de risco na qual nos encontramos. Desde o longínquo informe do Club de Roma, “Limiths to Growth” (1972), ao conhecido Informe Brundland, “Our Common Future” ( 1972), foram passando pelas sucessivas conferencias de Rio, Kioto ou a última de Paris, foi exigida a aplicação de uma agenda para uma nova orientação das estratégias macroeconômicas que definem o futuro do planeta. A situação atual exige a criação de uma consciência planetária capaz de planejar desde a perspectiva da época e suas dificuldades, um projeto político que afronte a nova complexidade e que construa as medidas necessárias.

A pandemia atual se impôs com uma violência impensável, produzindo uma paisagem desoladora de destruição nos campos sanitários, sociais e econômicos, exigindo uma nova reflexão entre a dificuldade, saber e política. Na ausência de mediações políticas frente a situação, fica cada vez mais evidente a insuficiência de um modelo de governança desde o desumano sistema de interesses, alheios aos fins que na tradição moderna se havia constituído como horizonte moral. Tem de se pensar em termos de humanidade. A defesa das instituições internacionais como a ONU resulta hoje inegociável.

O que dizer do papel fundamental que a OMS vai ter nos próximos anos. Foi quebrada a ilusão óptica com a qual havíamos nos acostumados a ver a história, distraídos pela complacência de uma certa autossatisfação. A morte se instalou no centro da nossa história e sua estigma domina nossa inocência. Surgiu uma nova forma de medo, que nos acompanhará como uma sombra. E, frente a uma geopolítica do caos que nos leva à catástrofe, temos de reinstaurar a vida no centro de nossa existência e transformar a economia na direção da proteção da natureza e não da sua exploração. Caso contrário, a temperatura continuará a crescer. É agora que nossa condição humana parece mais verdadeiramente exposta a riscos imprevistos. Como dizia Novalis: “A essência da doença é tão obscura como a essência da vida”.

 

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