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Não há evidências de que coronavírus possa infectar gatos

5 de abril de 2020
6 min. de leitura
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Após um artigo de cientistas da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas (CAAS), que avaliou a possibilidade de gatos serem contaminados pelo novo coronavírus, agente causador da Covid-19 em humanos, viralizar, o professor Paulo Eduardo Brandão, do Laboratório de Zoonoses Virais da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP alertou para uma série de falhas na metodologia usada e lembrou que não há evidências suficientes de que o coronavírus possa infectar gatos.

“Se eu fosse revisor e recebesse esse artigo para revisar, eu negaria a publicação”, disse Brandão ao Jornal da USP.

Reprodução/Pixabay/STVIOD/Imagem Ilustrativa

O artigo – que concluiu, a partir de experimentos, que gatos podem se infectar e transmitir o vírus a outros felinos, como furões, e que não encontrou indícios de que cães, porcos, galinhas e patos podem se contaminar – foi divulgado pela revista Nature, em 1º de abril. A publicação, porém, não aponta as falhas da pesquisa.

Para piorar o cenário, um laboratório veterinário brasileiro passou a oferecer, na quinta-feira (2), testes para diagnóstico da doença em gatos, “baseados nas fracas evidências trazidas pelo artigo”, segundo Brandão.

O professor, que é especialista em estudos de vírus, entre eles os da família dos coronavírus, recebeu o apoio da professora Aline Santana da Hora, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Juntos, eles escreveram um texto com apontamentos sobre as falhas do artigo, que foi enviado para diversas pessoas, com o intuito de auxiliar colegas da área de medicina veterinária.

O artigo chinês descreve testes nos quais cinco gatos domésticos de oito meses de idade foram explorados pela ciência e adoecidos através da inoculação intranasal de uma alta carga viral de SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Infectados, eles foram deixados próximos de outros gatos saudáveis, dos quais, posteriormente, os cientistas recuperaram o RNA do vírus, o que fez com que eles considerassem “que os gatos positivos poderiam infectar outros gatos”.

Paulo Brandão – Foto: Luiza Caires

Além do número de gatos explorados no teste ter sido considerado diminuto por Aline da Hora e Paulo Brandão, o professor afirmou ainda que “eles acharam o RNA viral, mas isso não pode ser interpretado como sendo o vírus se replicando, de fato, no organismo dos gatos”.

“Se eu tomar via oral uma dose do coronavírus que infecta cães, mas não infecta humanos, você vai achar o RNA desse coronavírus no meu organismo, mas porque eu ingeri e não pelo vírus estar se replicando”, explicou o professor. Neste caso, o RNA viral pode significar apenas um foco do próprio material inoculado, mas inativado, sem se reproduzir. Material que poderia se disseminar entre outros animais, mas sem infectá-los.

Além disso, os exames feitos nos gatos para comprovar que foram infectados são insuficientes. Segundo Brandão, além dos procedimentos realizados (RT-PCR e histologia), seria necessário submeter os gatos a outros exames, como a imunohistoquímica e o isolamento do vírus ativo através de um exame de sangue ou do swab, técnica que consiste em inserir um cotonete no canal nasal para coleta de secreção.

“Os cientistas fizeram o swab nos outros animais, mas não fizeram nos gatos porque eles estavam muito agressivos e não conseguiram colher amostras adequadas. Mas há técnicas para fazer esse tipo de coleta nesses animais”, disse o professor ao Jornal da USP.

O desenho experimental descrito no artigo, na opinião dos professores, também é bastante falho. “Não foram apresentados dados laboratoriais que comprovassem a saúde geral dos gatos utilizados no experimento, assim como o status desses animais para as principais viroses felinas que poderiam contribuir para um quadro de imunossupressão e consequente interferência nos resultados da inoculação experimental”, descreve o texto dos professores.

A origem dos gatos explorados no experimento também está meio obscura, na opinião de Brandão. Eles vieram de uma espécie de gatil e não de um biotério, de onde costumam vir os animais criados para serem explorados, adoecidos e mortos pela ciência. Segundo o professor, não se sabe ao certo a origem genética dos animais do estudo chinês.

A ausência de sinais clínicos por parte dos gatos pós inoculação experimental também é apontada por Aline da Hora e Brandão. “Nem ao menos foi identificada lesão tecidual ou material genético de SARS-CoV-2 nos pulmões, fato que é bastante intrigante, já que o vírus causa lesões graves em tecido pulmonar de humanos”, afirmaram.

O artigo chinês também são foi submetido à revisão de pares, o chamado peer review. “É de conhecimento que todos os artigos científicos, antes de serem publicados, normalmente passam pela revisão de, no mínimo, dois experts da área correlata ao trabalho. O que não aconteceu com este trabalho”, diz o texto dos pesquisadores brasileiros.

Aline Santana da Hora – Foto: Reprodução/Facebook

Além disso, o artigo foi disponibilizado no bioRxiv.org, um repositório de artigos ainda não publicados em revistas científicas e, segundo Brandão, a qualidade dos trabalhos dispostos no site é variada.

O professor lembrou ainda que uma das consequências da viralização do artigo é o abandono de gatos, que é crime. “Já estava acontecendo com cães, por suspeita de que fossem hospedeiros. Agora isso pode ter uma repercussão no bem-estar animal. Se começarem a abandonar cães e gatos nas ruas, a população deles vai aumentar e podem voltar também algumas zoonoses, como a raiva”, disse ao Jornal da USP.

Os professores, no texto escrito por eles, comentaram ainda o caso do gato que supostamente havia sido diagnosticado com coronavírus na Bélgica. “Neste caso, os dados foram apresentados em forma de notícias. Portanto, não está bem esclarecida qual foi a metodologia de diagnóstico de SARS-CoV-2 e nem se outros exames foram realizados para o estabelecimento de um diagnóstico diferencial”, escreveram.

Segundo o texto dos docentes, “há recomendações de que os pacientes com suspeita ou confirmados para Covid-19 permaneçam isolados do contato com animais. Tal recomendação é sempre preconizada para qualquer doença infecciosa emergente, até que informações científicas determinem e embasem a suspensão ou não dessa recomendação”.

A respeito da publicação na Nature, Brandão contou que enviou um e-mail ao repórter responsável pela notícia e que o profissional afirmou que conversaria sobre o assunto com os editores da revista.


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