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Descartando Descartes

25 de dezembro de 2019
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A frase do filósofo francês René Descartes, “Cogito, ergo sum” que ficou mundialmente famosa como “Penso, logo existo”, foi criada para dizer que apenas os humanos são capazes de pensar. Mas ele estava enganado.

Animal “sente”. Mas da onde brotam os sentimentos? Se é do pensamento, eles também pensam. Foto Gerhard Gellinger/Pixabay

A maior parte das pessoas cresceu ouvindo (e acreditando) que “animal não pensa”. No entanto, hoje a própria ciência admite que os animais sentem dor física e psicológica, que ficam alegres, tristes, com raiva, medo e que expressam inúmeros sentimentos e emoções.

Mas onde nasce o sentimento? Da onde brotam as emoções?

É no pensamento. É impossível desconectar sentimento de pensamento, pois, sentimento é o resultado de um pensamento que formulamos em torno de situações e experiências que assistimos ou que vivemos.

Descartes (1596 a 1650) argumentou que tinha dúvidas e que as dúvidas eram a maior prova da existência do pensamento. Logo, se os seres humanos podiam pensar é porque existiam. Na visão dele os animais não tinham alma, não podiam pensar nem sentir dor e, portanto, não era errado usá-los como cobaias. Infelizmente esse argumento sustenta até hoje milhares de experimentos dolorosos com animais.

“Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento” – Voltaire. Foto Christine Sponchia/Pixabay

Mais de 100 anos depois, outro filósofo francês, François Marie Arouet, conhecido como Voltaire, dedicou uma parte de seu “Dicionário Filosófico” (1764) para rebater os argumentos de Descartes:

“Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, ideias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembro tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento…

Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.”

“Os animais têm sentidos, sensações, ideias e memórias” – Voltaire. Foto Marc Rascual/Pixabay

Foi de fato um discurso muito convincente e comprovável. Teve lá seus adeptos naquela época e tem até hoje, mas já era tarde. A sociedade científica já tinha se dado o direito de “fazer sofrer”. Paralelo a isso, a sociedade em geral também já tinha assimilado a ideia de que só o ser humano é capaz de pensar e isso perpetuou a escravidão e a tortura de qualquer outra criatura viva.

Já era tarde para descartar os argumentos de Descartes.

Voltaire ainda escreveu:

“Animais têm suas faculdades organizadas como nós, recebem a vida como nós e a geram da mesma maneira. Eles iniciam o movimento da mesma forma e comunicam-no. Eles têm sentidos, sensações, ideias e memórias. Animais não são totalmente sem razão. Eles possuem uma proporcional acuidade de sentidos” – Lettres de Memmius à Cicéron  (Cartas de Gaius Memmius a Cícero) em 1772.

Já ficou provado que os animais são seres sencientes. Ninguém mais duvida que eles sentem. Mas ainda há grande resistência, até mesmo de quem ama os animais, em admitir que eles pensam, ainda que numa escala diferente da nossa, mas de acordo com suas necessidades e o ambiente em que vivem e, além disso, estão em plena evolução.

*Fátima ChuEcco é jornalista ambientalista e atuante na causa animal

 

 

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