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Quem bate na porta?

26 de outubro de 2019
3 min. de leitura
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Pixabay

Muito tempo atrás li uma intrigante frase pichada num muro: “A idade é uma maldade”. Naquela época verdejante não entendia seu sentido artístico ou reflexivo, até porque aos vinte e poucos anos a gente não se preocupa nada com o passar dos anos. Muito pelo contrário, o turbilhão de acontecimentos e emoções que nos abala na juventude concentra-se quase sempre no aqui e agora, tal qual acontece na vida animal. Mas o relógio das horas vividas é inflexível. Agora eu sei.
Segundo pesquisas divulgadas pelo Censo, 2020 será ao ano em que a faixa etária da população brasileira começa a fazer a curva anunciadora da prevalência de pessoas idosas. Por incrível que pareça, a geração do início dos anos 60 chega aos 60 anos. O Tempo-Rei mostra que ainda é o senhor soberano de tudo e de todos. Conselho amigo: melhor não desafiá-lo e conformar-se com os seus desígnios. Porque outra alternativa não há: ou se envelhece ou se despede antes da hora.
Agir como nossos cães e gatos, que não se apercebem e nem se importam com a tragicidade do que é efêmero, parece mais sensato. Os bichanos adoram dormir no macio e acordar só para comer. O velho cão das grandes caminhadas ainda sacode o rabo quando vai passear. Se não têm dor nem limitações graves, então está tudo certo. Eles vivem a vida plenamente, sem filosofias nem dúvidas existenciais. Com a gente é diferente: o pensamento demora a se aquietar no travesseiro.
A última quadra da vida é aquela que se costuma chamar de “melhor idade”. Piada sem graça ou eufemismo de quem se distancia da plenitude física, seja lá o que for, essa frase costuma carregar atrás de si acessórios invisíveis ou nem tanto, que se traduzem em óculos de grau, nervo ciático, pintas na pele, fôlego a menos, cabelos a menos, sonhos a mais. Sinal de que a Indesejada nos espreita a todo momento.
Mas o pior, acredite se quiser, está no entorno. Ninguém mais quer saber das coisas que aprendi nos discos. A Rotina, com o inesquecível Café da Manhã, se perdeu nA Distância. Aqueles que hoje invadem a mídia e os espaços todos, seja na zona urbana ou rural, não sabem nada dos anos loucos tocados pela poesia, nem de Taiguara, nem do Clube da Esquina, nem dos Festivais, nem de Sérgio Sampaio, nem de Elis Regina, nem de Luiz Melodia, nem do rapaz latinoamericano que se refugiou no exílio. Falam “toca Raul” mas não conhecem nem o melhor de Raul.
Livros? Cada vez menos leitores. Porque hoje os olhos estão interessados, mais do que nunca, só em telinhas. Em todos os lugares possíveis e imaginários a luz magnética é que dita as normas da convivência social (eletrônica, diga-se de passagem). Seu brilho de hipnose está por toda parte, na rua, nos automóveis, no ônibus, no metrô, no trabalho, nos restaurantes, ao lado da cama, no banheiro. Nem Huxley nem Orwell, em suas profecias literárias, tiveram imaginação tão fértil para prever o mundo mundo vasto mundo que subitamente nos apareceu.
Mudaram as estações. Ou será que eu mudei? Pouco importa, porque tenho agora uma justa reivindicação a fazer. No século passado definiu-se idoso como alguém com idade igual ou superior a 60 anos. Ora, naquele tempo a maioria da população mal chegava aos sessenta. Hoje a expectativa de vida está batendo nos oitenta. A solução mais equitativa é o meio termo, estabelecer a velhice após os 70 anos. Do contrário gostaria de tentar uma transmutação, quem sabe pra gente virar cão ou gato.
– Toc, toc, toc (acho que alguém bate na porta). Seria o frio? Seria o vento? Seria o Tempo? Decididamente, não vou atender. Sei não, pensando bem é melhor abrir.
– “Ô ô seu moço, do disco voador, me leve com você, pra onde você for…”.

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