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Trabalhar em matadouros pode alterar a personalidade humana

27 de março de 2019
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Eu não sinto mais nada, mas no começo foi muito ruim”, frisou um homem identificado apenas como RP9 (Foto: Vegan Australia)

Recentemente, o professor do Departamento de Psicologia Organizacional e Industrial da Universidade da África do Sul, Antoni Barnard, republicou um estudo concluído em 2016 sobre o impacto psicológico e emocional de se trabalhar em matadouros.

Para a realização do trabalho, ele entrevistou dezenas de magarefes, pessoas que matam animais criados para consumo. Todos disseram que jamais se esqueceram da primeira vez que abateram um animal. Além do desconforto, muitos relataram tremores, tristeza, aflição e vergonha.

“Eu estava com muito medo, mesmo segurando uma arma”, disse um dos entrevistados. Um dos maiores pontos de estranhamento foi reconhecer que estava trabalhando em um local por onde centenas de animais entram a cada dia e não saem de lá com vida.

“A primeira vez que matei não foi fácil. Eu sinto vergonha disso. Só queria fechar os olhos, me virar e fugir. Foi muito triste, mas quanto mais você faz, mais fácil fica. Ontem, por exemplo, tive que atirar na cabeça de algumas vacas. Eu não sinto mais nada, mas no começo foi muito ruim”, frisou um homem identificado apenas como RP9.

Barnardi conta que nos primeiros meses, os funcionários de matadouros costumam ter sonhos vívidos e pesadelos paranoicos repletos de medo e ansiedade. Alguns citaram experiências em que eram perseguidos pelos animais que mataram; outros os viam em um sofrimento que parecia não ter fim, agonizando incessantemente. Sentimentos de culpa, medo e vergonha são os mais comuns na “fase de adaptação”.

Um participante declarou que sonhou que uma vaca saltava da caixa de abate e o perseguia. Outros lembram de experiências em que os animais se comunicavam com eles, perguntando algo como: “Por que você está me matando?”

As respostas emotivas são bastante intensas durante um período que pode variar muito de pessoa para pessoa, mas há uma certa unanimidade em relação ao fato de que seus dias fora do matadouro também são tomados por emoções negativas em decorrência da prevalência da raiva e do temor. O entrevistado RP9 revelou que começou a se tornar mais impaciente e explosivo. Se alguém o magoa, “seus punhos balançam”.

Por outro lado: “Os funcionários de matadouros transmitem uma preocupação moral, acreditando que terão que responder por suas ações quando morrerem. Sentimentos de tristeza também são frequentemente mencionados em histórias de abate”, destacou o pesquisador.

Outro entrevistado, RP10, contou que quando chegava para trabalhar o seu encarregado dizia que ele deveria abater uma grande quantidade de animais, e quando ele olhava para os bovinos, grandes e fortes, aquilo parecia errado e o deprimia.

O estudo também apontou que quem trabalha diretamente no abate de animais acaba desenvolvendo baixa tolerância à frustração e, em decorrência disso, seus níveis de irritação aumentam. RP8 segredou que nunca havia agredido um animal como um cão ou gato, mas desde que começou a matar bovinos ele já não sente a mesma inibição de antes:

“Eu acredito que posso chutar se eu quiser porque eu mato boi todos os dias. Chutar um cão ou gato e jogá-lo para longe já não é uma preocupação.” Relatos como esse são consequências da mudança de personalidade que os funcionários do matadouro experimentam quando o cotidiano se resume a tirar vidas.

Mesmo que não falem abertamente a respeito com qualquer pessoa, os participantes da pesquisa deixaram claro que perceberam tanto mudanças em si mesmos quanto nos colegas de trabalho ao longo do tempo:

“Os participantes narram que o abate afeta suas capacidades de pensar com clareza e percebem que se sentem ‘loucos’. Fazer o trabalho de abate também impacta de uma forma que eles parecem se tornar mais agressivos do que antes, com uma atitude descuidada no que diz respeito às consequências de suas ações em relação a outras pessoas.”

As emoções intensificadas de medo, ansiedade, culpa, vergonha e tristeza diminuem com o tempo. Algumas até mesmo desaparecem, mas a adaptação à realidade do matadouro como algo banal não impede que ninguém que ganhe a vida matando animais passe por um embrutecimento que pode ter consequências sociais. E isso é parte da realidade de quem vive nesse universo.

Referência

Barnard, Antoni; Victor, Karen. Slaughtering for a living: A hermeneutic phenomenological perspective on the well-being of slaughterhouse employees. International Journal of Qualitative Studies in Health and Well-being (2016).

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