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Suprema Corte e animais não humanos: obscurantismo x modernidade

31 de março de 2019
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Foto: Pixabay

Como mostra a matéria da Folha de São Paulo intitulada “STF julga constitucional lei que assegura abate em cultos de matriz africana” (*), a nossa Corte Suprema ofereceu à sociedade  um triste  espetáculo de irracionalidades ao legalizar a extemporânea e hedionda prática de matança de inocentes em rituais religiosos. Primeiro, porque o STF oferece argumentações sem lastro ao afirmar, por exemplo, que “o abate nessas circunstâncias é feito sem crueldade” (???); e  que “a carne serve de alimento depois do culto” (**). Entretanto, o  pior equívoco desse discurso – que visa pretensamente à igualdade de direitos e à garantia da liberdade religiosa – é a pressuposição de que tal liberdade  não poder ser exercida sem matança o que, de forma totalmente  anacrônica, ratifica  o estatuto dos animais não humanos como propriedades ou objetos, a serviço da espécie Homo sapiens.
Segundo a matéria, o ministro Marco Aurélio destaca que, “a laicidade do estado não permite o menosprezo ou a supressão de rituais religiosos, especialmente no tocante a religiões minoritárias ou revestidas de profundo sentido histórico ou social, como as de matriz africana”. Todavia, cabe aqui a pergunta: como pode um estado laico permitir que seja desrespeitada a sua Carta Magna, bem como diversos outros diplomas legais que salvaguardam os animais de maus tratos – frutos de décadas de luta por um mundo mais justo para todos – em nome de uma irrestrita “liberdade religiosa”? Como pode esse estado laico dar passagem, ainda, à perpetuação da barbárie num momento histórico no qual abundam evidências científicas acerca da natureza senciente/consciente das vítimas de tal morticínio?
Racismo religioso????
Embora o STF negue tratamento privilegiado nesse caso, o que seria uma ofensa ao princípio da isonomia, o que esta em pauta é paradoxalmente isso, o privilégio. De acordo com a matéria, o ministro Fachin afirma que as religiões de matriz africana precisam de proteção especial do estado, por serem estigmatizadas devido à existência de um preconceito estrutural. Embora essa afirmação esteja corretíssima, a pergunta crucial é se essa proteção açambarca necessariamente o direito a práticas tipificadas como crimes. Lamentavelmente, como suposto “corolário” da negação de tal “direito”, alega-se racismo religioso.
Na matéria, o advogado Hédio Silva Júnior, falando em nome da União de Tendas da Umbanda e Candomblé do Brasil, reclama que “a vida da galinha da macumba vale mais do que as vidas de milhares de jovens negros que, segundo ele, não são objeto de comoção social. Entretanto, trata-se de uma falsa dicotomia, de uma pergunta enganosa que só pode desembocar em respostas equivocadas. Os vivissecionistas também são mestres em colocar pseudo dilemas entre a escolha de quem vive: um animal ou uma “criancinha”, como se esse fosse o cerne do problema. Muitos nativos da Ilha de Santa Catarina e do litoral catarinense também se insurgem contra a proibição da macabra farra do boi alegando perseguição contra a sua tradição cultural e outros argumentos espúrios.
Pão e circo
Uma galinha ou um jovem negro? Os jovens negros de periferias não serão empoderados por possuírem licenças para matar seres indefesos. Serão genuinamente empoderados quando tiverem acesso a boas escolas e tiverem perspectivas de vida, ao nascer, iguais às das demais classes sociais, sobretudo as que são hoje favorecidas por um processo social e histórico secular que promoveu a desigualdade e a injustiça.
Ainda na mesma matéria, o ministro Barroso assevera que não se trata de conceder privilégios, mas de assegurar os mesmos direitos (sic). Todavia, se num futuro próximo os tupinambás ou outros povos autóctones deste Brasil – também alvos permanentes de massacres étnicos e discriminações culturais – reivindicarem a legalização de sacrifícios humanos e outras práticas ancestrais, como o canibalismo, o que dirá o STF? Certamente se pronunciará pela proibição, alegando a não comensurabilidade/identidade/pertinência entre as práticas (humanos x “animais”).
Isso, contudo, só evidencia que o que está na mesa de discussão não é o racismo, mas outra forma de preconceito, o especismo. Para quem advoga o abolicionismo animal como parte da luta pela construção de um mundo melhor para tod@s, resta apenas concluir que, em vez de promover lutas que unificam diferentes grupos sociais em direção a um futuro comum mais justo, tanto os que advogam a chacina de seres indefesos, quanto o STF, brindam a todos com uma bela provisão de “pão e circo”.
É impressionante aquilatar como tem razão, lamentavelmente, o biólogo Richard Dawkins, em seu livro “The God Delusion”, quando defende a existência de um poder corruptor das religiões sobre o que é coerente e justo.
(*): https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/stf-julga-constitucional-lei-que-assegura-abate-em-cultos-de-matriz-africana.shtml;
(**): Já presenciei diversas vezes a exposição de cadáveres de animais, de diferentes espécies, apodrecendo a céu aberto em encruzilhadas, ou seja, em espaços públicos, acessíveis a crianças e pessoas que discordam dessas práticas.
 

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