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Gary Francione: “Qual é a diferença entre os animais que amamos daqueles que espetamos com o garfo e a faca?”

19 de abril de 2018
9 min. de leitura
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Francione: “é hora de examinar a justificativa moral do uso de animais” (Acervo: Abolitionist Approach)

Recentemente, o professor de direito da Rutgers School of Law, de Newark, New Jersey, Gary Francione, uma das referências internacionais na luta pelo abolicionismo animal, publicou um artigo intitulado “It’s time to reconsider the meaning of ‘animal welfare’”, em que, usando como exemplo o contexto britânico, ele explica como a rejeição à violência contra animais em atividades consideradas tradicionais é um indicativo de que os tempos estão mudando.

No entendimento de Francione, muitas pessoas precisam apenas dar um passo a mais para entender que vivemos em um tempo em que o chamado “bem-estarismo animal”, semeado no vórtice do antropocentrismo, deixa claro que os interesses dos animais são coadjuvantes mesmo quando os interesses humanos são baseados em pretensas ou falsas necessidades. Afinal, o “bem-estar animal” é permissivo em relação à morte de animais, desde que “não sofram demais”, o que não condiz com o cenário ideal almejado por quem defende, de fato, o respeito aos animais – já que o respeito é uma forma genuína e inviolável de consideração.

Gary Francione deixa claro que o único caminho possível é entender que os animais não humanos também importam moralmente, logo eles não devem ser vistos simplesmente como alimentos e produtos, ainda mais se considerarmos que vivemos uma época em que já sabemos que o consumo de animais é desnecessário. Então ele faz um apelo para que as pessoas estendam sua preocupação com os animais violados em atividades de entretenimento aos animais violados por finalidades de consumo:

No final de 2017, a primeira ministra britânica Theresa May abandonou o compromisso com o manifesto dos conservadores de realizar uma votação livre sobre a revogação da proibição legal do uso de cães na caça à raposa. A decisão de May foi seguida por queixas de parlamentares conservadores que apoiam a revogação da proibição. Embora popular em algumas comunidades rurais, a posição custou-lhes votos durante a eleição geral de 2017. A posição pró-caça é muito impopular.

Pesquisas divulgadas em maio de 2017 mostraram que quase 70% dos eleitores britânicos se opunham à caça à raposa, e metade tinha menos probabilidade de votar em um candidato pró-caça nas eleições gerais. A oposição não se limita à caça à raposa. Uma pesquisa de 2016 indicou que, além dos 84% que se opõem à caça à raposa, um número significativo de pessoas no Reino Unido também se opõe a caça ao cervo (88%), caça e corrida de lebres (91%) e chapeamento de texugo (94%). Por que existe essa oposição a essas atividades?

A resposta é simples: nos preocupamos com os animais. Acreditamos que eles importam moralmente. Rejeitamos a posição que prevaleceu antes do século 19 de que os animais são meramente coisas para as quais não temos obrigações morais ou legais. Em vez disso, a maioria das pessoas adota a posição do bem-estarismo animal que tem dois componentes-chave.

O primeiro componente é que – embora os animais possam ser usados para propósitos humanos – não devemos impor sofrimento ou morte sem necessidade a eles. A segunda é que quando usamos animais, temos a obrigação de tratá-los “humanamente”.

As atividades que a maioria do público britânico rejeita envolvem impor sofrimento e morte aos animais quando não há necessidade nem compulsão; é errado fazer animais sofrerem ou matá-los quando a única justificativa alegada é que os humanos obtêm algum tipo de prazer ou divertimento. O uso de animais para fins frívolos equivale a negar seu valor moral. A maioria das pessoas rejeita isso.

O problema é que, embora a maioria das pessoas considere a imposição de sofrimento e morte desnecessária aos animais, seu comportamento real não é consistente com sua posição moral. Eles participam da imposição de sofrimento e morte aos animais em situações em que não há necessidade, e nos quais o tratamento dos animais é tudo menos “humano”.

Sofrimento e morte desnecessários

A maioria das pessoas come animais e produtos feitos de animais, e ambos envolvem muita crueldade. Somente no Reino Unido, mais de um bilhão de animais são mortos por ano para fins alimentícios.

Muitos animais são criados em condições intensivas que constituem tortura. Mesmo aqueles que são criados em circunstâncias supostamente mais “humanas” sofrem de angústia durante e ao final de suas vidas. Isto não é apenas uma questão concernente à carne. As vacas usadas na produção de leite são repetidamente engravidadas e têm seus bezerros levados logo após o nascimento. E todos os animais, sejam usados para obtenção de carne, laticínios ou ovos, estão sujeitos ao terror e à angústia do matadouro.

Algum desse sofrimento e morte é “necessário”? Existe alguma obrigação envolvida? A resposta é não. Ninguém sustenta que é necessário consumir produtos de origem animal por ser idealmente saudável. O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido diz que uma sensata dieta vegana pode ser “muito saudável”, enquanto os profissionais de saúde de todo o mundo estão cada vez mais assumindo a posição de que os produtos de origem animal são prejudiciais à saúde humana.

Não precisamos debater se é mais saudável viver com uma dieta de frutas, vegetais, grãos, nozes e sementes. O ponto é que uma dieta vegana certamente não é menos saudável do que uma dieta de carne em decomposição, secreções de vaca e ovulação de galinha. E esse é o único ponto relevante para a questão de saber se o sofrimento e a morte são necessários ou não.

Além disso, a agricultura animal constitui um desastre ecológico. É responsável por mais gases do efeito estufa do que a queima de combustíveis fósseis para o transporte, e resultando em desmatamento, erosão do solo e poluição da água. O grão que alimenta os animais só nos Estados Unidos poderia alimentar 800 milhões de pessoas. Contra esse cenário, qual é a melhor justificativa que temos para infligir dor e morte aos animais?

A resposta é simples: Achamos que o gosto é bom. Nós sentimos prazer em comê-los. Comer animais e produtos de origem animal é uma tradição, e nós a seguimos há muito tempo.

Mas como essa posição é diferente da justificativa oferecida para o uso de animais a que a maioria de nós se opõe? Como o prazer do paladar é diferente do prazer que algumas pessoas sentem quando participam de esportes sangrentos com animais? Não há diferença. Caça à raposa, chapeamento de texugos, lutas de cães, são todos tradicionais. De fato, quase todas as práticas a que nos opomos – envolvendo animais ou seres humanos – envolvem uma tradição valorizada por alguém. O patriarcado é também uma forma de tradição que existe há muito tempo, mas que nada diz sobre seu status moral.

Muitas pessoas se opõem à caça à raposa porque não podem ver nenhuma distinção moralmente significativa entre o cachorro que eles amam e uma raposa perseguida e assassinada. Mas qual é a diferença entre os animais que amamos daqueles que espetamos com o garfo e a faca? Não há diferença. Cães e gatos que amamos são sencientes – assim como frangos, galinhas, vacas, bois, porcos, peixes e outros animais que exploramos. Todos eles sentem dor e experimentam a angústia; todos eles têm interesse em continuar a viver.

Tratamento “humano”

Se a exploração da maior parte dos animais não pode ser caracterizada como plausivelmente necessária, o que dizer sobre o segundo componente da posição de bem-estar animal – que temos a obrigação de explorar os animais “humanamente”? Isso também é uma fantasia.

Animais são propriedade. Eles são bens móveis. São coisas que são compradas e vendidas. Custa dinheiro para proteger os interesses dos animais, e o status de propriedade dos animais garante que, como regra geral, os padrões de bem-estar animal (sejam mandatados por lei ou adotados pela indústria), sempre serão muito baixos. Nós protegemos os interesses dos animais quando obtemos algum benefício financeiro ao fazer isso. Na maioria das vezes, os padrões de bem-estar estarão ligados ao nível de proteção necessário para explorar os animais de uma maneira economicamente eficiente, de modo que esses padrões (na medida em que são impostos) proíbem nada mais que o sofrimento gratuito.

Os padrões de bem-estar animal na Grã-Bretanha são reivindicados como os mais altos do mundo, mas o tratamento concedido aos animais britânicos ainda é aterrador. Dizer que os animais no Reino Unido são tratados “humanamente” seria falso usando qualquer entendimento plausível dessa palavra.

Em algum nível, todos nós sabemos disso. É por isso que vimos o surgimento de um nicho de mercado na Grã-Bretanha e em outros países que pretende fornecer carne e produtos de origem animal baseados “no mais alto padrão de bem-estar”. Mas, como várias exposições desse nicho de mercado mostraram, a promessa de “tratamento humano” nunca foi colocada em prática. Podemos dar aos animais um pouco mais de espaço; podemos permitir que eles vejam um pouco da luz do sol; podemos permitir que as vacas passem um pouco mais de tempo com seus bezerros antes de serem levados para longe delas. Mas essas mudanças têm pequenos efeitos quando são implementadas.

Organizações de bem-estar animal fazem campanha contra o “abuso” de animais. Mas mesmo que todos esses abusos cessassem e todos os animais fossem tratados em perfeita conformidade com as leis e regulamentos aplicáveis, a situação ainda seria terrível. Os animais ainda seriam mortos desnecessariamente, e mesmo que transformássemos a agricultura animal em agricultura familiar ainda haveria uma enorme quantidade de sofrimento e morte moralmente injustificados.

De fato, os padrões de bem-estar animal não são de forma alguma sobre os animais; eles são sobre nós. Esses padrões fazem nos sentirmos melhor sobre continuarmos explorando animais. Eles foram formulados numa época em que a maioria das pessoas achava que matar e comer animais era necessário para a saúde humana. Ninguém pode razoavelmente acreditar mais nisso.

Portanto, é hora de examinar a justificativa moral do uso de animais. Como alguém que mantém uma posição em favor dos direitos animais em vez de uma posição bem-estarista, minha opinião é que não podemos justificar a exploração de animais para qualquer fim, incluindo pesquisas biomédicas destinadas a encontrar curas para doenças humanas graves, assim como não podemos justificar o uso para o mesmo propósito de humanos que acreditamos que são cognitivamente “inferiores”.

Mas mesmo que você não aceite a posição de direitos [dos animais], a posição que você provavelmente aceita – que é errado infligir sofrimento a morte desnecessários aos animais – torna impossível evitar a conclusão de que o uso de animais para qualquer propósito que seja não envolve verdadeira obrigação ou necessidade, incluindo o uso de animais como alimentos, roupas e entretenimento, e deve ser descartado. Qualquer outra posição relega os animais à categoria de coisas que não têm valor moral. Vemos isso onde a caça à raposa e outros esportes sangrentos estão envolvidos; é hora de vermos isso em outros contextos também.

Referência

Francione, Gary. It’s time to reconsider meaning of “animal welfare”. Transformation. Open Democracy (7 de janeiro de 2018).

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