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Tratamento de choque não é educativo

5 de fevereiro de 2018
11 min. de leitura
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Um tema que constantemente vem à tona, é se devemos ou não exibir documentários que mostram cenas de torturas e abates de animais não humanos, para as crianças. É uma dúvida comum em pais vegetarianos e/ou veganos. A dúvida é legitima. Mas será que a exibição é?
Crianças que vivem em duas casas (com pais separados), ou na casa dos pais e na dos avós, onde só um dos lados não consome animais e o outro sim. Crianças de pais vegetarianos que passam o dia na creche ou na escola onde a alimentação servida é ovo-galacto carnista. O que fazer para que minha criança não coma produtos de origem animal? O que fazer para que minha criança entenda que não se deve comer animais, ou seja, não deve aceitar essas “comidas” quando oferecidas fora de casa?
A solução para muitos é colocar a criança diante do documentário A Carne é Fraca ou do Terráqueos. A crença difundida é a de que as crianças da faixa etária que vai dos cinco aos dez anos irão se conscientizar de tudo que está sendo mostrado ali: confinamentos, tortura, estupro, esquartejamentos, evisceração, tiros, queimaduras no animal vivo, retirada da pele no animal vivo, castração sem anestésico, choques, pauladas, marretadas… Uma série de “argumentos” são apresentados para legitimar a exibição:
– Você é mãe/pai, ou seja, sabe o que é melhor para seu filho.
– Melhor conscientizar desde cedo com os documentários.
– A vida é cruel e violenta, por isso, tem que saber desde cedo como a vida é.
– Até adulto chora, eu chorei demais, as crianças também podem passar pelo mesmo.
– As crianças não são bobas, elas entendem o que se passa com o animal.
– O choque as tornará futuras vegetarianas ou veganas, com meu filho foi assim.
– Se meus pais tivessem mostrado pra mim quando era criança, teria me tornado vegetariano mais cedo.
É muito forte a ideia de que se é mãe ou se é pai, logo sabe de tudo que seus filhos precisam para crescerem sadios, tanto físico quanto psicologicamente. Basta olharmos para a sociedade como um todo e veremos que ser mãe ou ser pai não é garantia de que o filho será bem cuidado, bem assistido. Mas o que vale não é a boa intenção dos responsáveis? Nem tudo que vem de uma boa intenção gera um bom resultado. Que bom resultado pode advir da exposição de crianças de cinco a dez anos a cenas d’A Carne é Fraca e do Terráqueos? Provavelmente vão recorrer a meia dúzia de casos isolados onde crianças foram expostas e não sofreram um trauma com as cenas. E esses poucos viram a regra, o modelo a ser replicado a todas as crianças filhas de pais vegetarianos e/ou veganos. Às vezes, nos apegamos à exceção. Algumas crianças que assistem esse tipo de documentário com cenas reais de abates e torturas, e que de imediato fazem a conexão e param de comer animais e usá-los, e até começam a defender os animais. Só que isso não é o padrão na infância. Essa consciência animal (em termos Reganianos) não é comum nas crianças. Pelo contrário.
Em 1922, num trabalho intitulado “Sonho e Telepatia”, no segundo caso relatado por Freud, lemos o seguinte trecho da carta de um sonho recorrente da infância: “Animais sendo abatidos. – Quando ouvia os porcos gritando, sempre pedia socorro e gritava: “Você está matando uma pessoa!” (quatro anos de idade). Sempre me recusei a comer carne. A carne de porco invariavelmente me faz vomitar. Somente durante a guerra vim a comer carne e apenas contra a vontade; agora estou aprendendo a passar novamente sem ela. Cinco anos de idade. – Minha mãe estava dando à luz e eu a ouvia gritar.
Tive a sensação: “Há um ser humano ou um animal em grande aflição”, tal como tivera quando da matança dos porcos” (p.223-224). Depois de analisar essas duas lembranças da infância da moça, ou seja, a relação dos gritos da mãe no parto com o guinchado dos porcos ao serem abatidos; Freud diz: “Afirmei noutra parte que essas cenas de infância constituem ‘lembranças encobridoras’, selecionadas num período posterior, reunidas e não infrequentemente falsificadas no processo. Esse remodelamento subsequente serve a um fim às vezes fácil de adivinhar. Em nosso caso, quase se pode ouvir o ego da autora a glorificar-se ou acalmar-se por meio dessa série de recordações: ‘Fui desde a infância uma criatura nobre e compassiva. Aprendi muito cedo que os animais têm alma como nós e não podia suportar a crueldade para com eles. Os pecados da carne achavam-se longe de mim e conservei minha castidade até bem tarde na vida’” (p.227). O que pais vegetarianos e/ou veganos gostariam de tirar de lembranças como essas dessa moça, é que as cenas na infância foram benéficas para uma mudança de hábito no futuro. Ou seja, de uma criança carnista, para um adolescente e adulto vegetariano. Mas, tecnicamente falando, não é bem assim que acontece na maioria dos casos.
Não é atoa que existe a classificação dos filmes e desenhos pela faixa etária. O mínimo que se espera é que se respeite as fases do desenvolvimento psicológico da criança. Até mesmo a produção de desenhos infantis são divididos pela faixa etária. Se a Galinha Pintadinha é extremamente atrativa para uma criança de dois anos, já não o é para uma de sete anos. Para a de sete anos, o desenho tem uma outra linguagem, assim como para uma de dez anos.
Vivemos numa sociedade demasiadamente erotizada, ou melhor, obscenamente pornográfica, objetificando na quase totalidade o corpo feminino. Segundo o argumento acima, de que a vida é assim mesmo, logo as crianças devem saber o que se passa, deveríamos colocá-las diante da tela e exibir um filme pornô para ela “conscientizar-se” de “como as coisas são”. Quantas mulheres são violentadas por dia no Brasil? Deveríamos exibir cenas de estupro para as crianças “conscientizarem-se” que em nossa sociedade machista é assim que as mulheres são tratadas? As crianças que presenciaram ao vivo o violento genocídio em Ruanda em 1994, e que sobreviveram aos massacres (esquartejamentos, estupros, tiros…), são hoje adultos defensores contumazes da paz entre Tútsis e Hútus? Acreditar que assistir cenas de violência conscientiza crianças a se tronarem adultos pacíficos e respeitosos, para com a nossa espécie e para com as outras, é ignorar a história da humanidade, que nos diz o contrário.
Em 2002, chegou aos cinemas brasileiros o filme A Cidade de Deus. Na película, as crianças não só viam cotidianamente as cenas das mais diversas violências, elas conviviam. E de todas elas, só uma não seguiu o violento mundo do crime já na juventude, o Buscapé. A tese de que ver cenas de violência com os animais fará ter consciência de que aquilo é errado, não é universalizável, pelo contrário. Na maioria das vezes, o choque pode fazer o efeito oposto do almejado pela boa intenção. A empatia não trabalhada da forma correta pode dar lugar à frieza com a dor alheia. Durante uma década exibi esses documentários citados acima e muitos outros para meus alunos no ensino médio público na periferia da cidade de São Paulo.
Uma média de 700 alunos por ano. Sempre depois de muita aula teórica sobre os temas abordados nesses documentários. A faixa etária era outra, obviamente, de jovens e adultos. E a resposta unânime dos alunos que riam e saiam da sala de exibição tratando com desdem as imagens, era que já tinham visto aquilo antes; ou mostrado por algum parente ou por algum professor. Ou seja, a exibição sem dialogar sobre, sem discutir os fundamentos éticos, tendo a imagem por si só, passou do choque inicial à banalização do mal. Tornaram-se jovens frios, insensíveis com a dor expressada em outra espécie. Presenciei o mesmo com o público adolescente e jovem, ao dar aulas de direitos animais e veganismo em escolas no interior das Minas Gerais, ambiente rural. Ou seja, a maioria dos jovens cresceram vendo animais sendo mortos nos quintais de casa para servir de alimento para a família. Degola, enforcamento, mergulho em água fervente, esfaqueamento, marretada, evisceração… tendo como trilha sonora os gritos dos animais. Anos e anos na infância vendo ao vivo essa prática em casa (na casa da avó, do tio, do vizinho) forma adolescentes que banalizam a tortura e sofrimento dos animais de outras espécies, além da nossa. O mal passa a ser banal, comum e corriqueiro. Nas palavras dos próprios adolescentes: “sempre foi assim, é normal”. Se a exposição a cenas de abates de animais conscientiza-se crianças a se tornarem vegetarianas ou veganas, nos interiores do Brasil, onde elas vêm isso cotidianamente e ao vivo, concentraria a maior população vegetariana e vegana do nosso país.
O documentário A Carne é Fraca, tem muito mais especialistas falando sobre os diversos impactos do consumo de carne do que imagens de abates. Mas as poucas imagens na parte dois, que trata dos abates, é forte o suficiente para chocar quem acredita que a carne que come brotou dentro do supermercado. Crianças de cinco a dez anos não tem capacidade cognitiva necessária para entender e compreender o que os especialistas estão dizendo, o que sobra são as imagens. Se retomarmos a proposta do INR veremos que a produção desse documentário não foi visando esse público infantil.
Nina Rosa Jacob, que de forma muito honesta, me disse que por ela não conviver diretamente com crianças, fica difícil responder sobre os impactos dos documentários de abates sobre elas. Segundo ela, “Cinco anos me parece tão cedo… Mas com dez anos, creio que a maioria estaria apta a digerir o possível e ‘deletar’ o impossível de assimilar. Logicamente depende de cada ser, da sensibilidade pessoal de cada criança, dos mecanismos que cada uma criou para enfrentar realidades talvez desconhecidas. […] Sempre se pode começar com A Engrenagem e Vegana, que por serem em animação informam, mas por outro lado não contém o conteúdo chocante da experiência”, transmitida na A Carne é fraca e no Terráqueos. Para Nina Rosa, a exibição deveria vir acompanhada das atividades que constam na obra infantil: “Então, você ama os animais – um livro recheado de diversão e aventura para ajudar as crianças a ajudarem os animais”, também publicado pelo INR.
Segundo a psicóloga Dayane Lotti – que também é ativista vegana pelos direitos animais: “Não é educativo. Não conscientiza. Até porque nessa faixa etária é difícil falar em conscientização. Elas estão desenvolvendo outros mecanismos para isso. A imagem de um boi sendo morto, abatido, conscientiza tanto quanto a imagem de alguém levando um tiro no rosto. Eu não acho nenhum pouco aconselhável passar esses documentários para as crianças. Além de não ser saudável para o desenvolvimento delas, não adianta em nada no sentido de conscientização. Expor crianças a cenas de violência explicita, ainda por cima reais, não é em hipótese alguma algo benéfico. Sejam cenas de violência contra quem quer que seja”.
Não dá pra ignorar os últimos cem anos de psicologia infantil, de psicanálise voltada a análise da criança, dos estudiosos nos mais variados campos que estudam as crianças, e “achar” que só por que sou mãe ou pai e que minha ação é movida pela boa intenção, que está tudo bem. O diálogo é o melhor caminho. Desde a antiguidade sabe-se que as crianças aprendem por mimesis, ou seja, vão copiar e reproduzir o bom ou o mau exemplo. Quanto ao recurso audiovisual no processo educativo, temos muitos desenhos e filmes infantis cuja temática é mostrar que os animais não são comidas, não são objetos de entretenimento, que sentem dor, que são amigos, que merecem cuidado e respeito, etc. Sem tratamento de choque. Alguns exemplos podem ser: Vegana; Engrenagem; O segredo dos animais; A fuga das galinhas; Procurando Nemo; Madagascar; Lisa, a vegetariana; Bee movie (até a metade abolicionista e, infelizmente, conclui com uma mensagem bem-estarista)…
Se a exposição de crianças a cenas de violência formasse futuros adultos pacíficos, compreensivos e respeitosos quanto a dor alheia, o mundo não estaria onde está em termos éticos. Exposição a cenas de violência explícita nunca foi modelo de educação moral. Tratamento de choque nunca foi educativo.
Algumas indicações de leitura
KLEIN, M. “O desenvolvimento inicial da consciência na criança”. In: Contribuições à psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1970. pp.335-347.
KRAMER, E. S. “Violência cultural ao imaginário das crianças”. In: AMORETTI, R. (org.). Psicanálise e violência: metapsicologia, clínica e cultura. Petrópolis: Vozes, 1992. pp. 79-90.
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
___________. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989.
___________. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.
___________. Os meios, os grupos e a psicogênese da criança. In: Psicologia e educação da infância. Lisboa: Estampa, 1975. pp. 163-179.
__________. As etapas da personalidade na criança. In: Objetivos e métodos da psicologia. Lisboa: Estampa, 1975. pp. 131-140.
WINNICOTT, D. W. “A criança no grupo familiar”. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 101-110.
________________. “O aprendizado infantil”. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 111-116.

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