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Uma pequena história de Natal

25 de dezembro de 2017
5 min. de leitura
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“Sem jeito, mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado” (Foto: Arquivo Pessoal)

Aconteceu em Paranavaí quando eu tinha 14 anos. Caminhando pela Rua Pernambuco na véspera de Natal, a chuva caía fina sobre o movimentado centro da cidade. Eu olhava para o céu túrbido e não entendia como a água que tocava meu corpo podia ser morna enquanto a que umedecia minha cabeça impactava um curto frio intervalado e solene.

Fiquei intrigado e enxerguei um propósito. As gotas que se chocavam contra o meu couro cabeludo e minha testa, escorrendo entre meus olhos, deslizando pelo meu nariz e perfazendo os contornos de minha boca, antes de saltarem do meu queixo até o meu peito, reduziam a minha sonolência e me enviavam sinais de alerta, como se exigissem minha atenção por onde eu passasse.

Até então eu caminhava como um tipo peculiar de sonâmbulo incorrigível. Tinha dormido menos de cinco horas e sentia meus olhos cálidos, defessos e afogueados. Meu reflexo nas vitrines das lojas revelava um aspecto enleado e abstrato. Ouvia vozes agudas, suaves, graves e oscilantes por todos os lados, mas não identificava palavras. “Será que estão falando realmente português?”, ecoava a questão que despontava da minha consciência.

Misturado à gotejada de chuva, ora violenta, ora calma, que caía dos galhos das árvores que sombreavam a estreita calçada, o inopinado cheiro da terra molhada na Rua Minas Gerais me sopitava. Os piscas-piscas ligados coloriam as gotas que retomavam a natural transparência quando se soltavam de seus hospedeiros de plástico e de vidro. A verdade é que eu percebia somente o que cintilava ou amplificava meus sentidos.

Pessoas falavam comigo. Eu não sabia quem eram ou o que diziam. Confuso, eu me limitava a sorrir na medida do possível, sem mostrar demais os dentes. Me sentia muito cansado e meus olhos turvos e amiudados pouco me ajudavam a lidar adequadamente com a interação humana naquela manhã.

Depois de muito caminhar, cocei meus olhos com sofreguidão e parei diante de um espelho de uma lojinha de antiguidades. “Ah! Agora estou melhorando de verdade. Logo mais vou me sentir 100%”, concluí. Uma senhora simpática me convidou para conhecer o local. A entrada era estreita, mas o espaço interno se alongava de maneira tão convidativa e misteriosa que tive um abrupto anseio de passar horas ali.

Entre fragrâncias de cravo, baunilha, âmbar, sândalo e almíscar, distribuídas em vários pontos do antiquário, conduzindo o visitante a se sentir como parte de uma realidade dividida em fragmentos, com olências que ciceroneavam os objetos, a dona da loja perguntou se eu gostaria de ver algo em especial. Respondi que não e ela me deixou bem à vontade, explicando antes que dedicou muitos anos de sua vida comprando e reunindo objetos das décadas de 1910 a 1970.

“Sabe, meu pai faleceu há mais de 30 anos. Ele era um colecionador de coisas que as pessoas consideravam ultrapassadas ou de pouco valor. ‘Como algo que marcou um período, exigiu do ser humano dias e até meses de esforço pode algum dia ser visto como insignificante? Não há nada no mundo que mereça tal depreciação’, dizia ele”, comentou Marta, a dona do antiquário antes de se afastar para atender uma cliente que procurava um caixinha de música.

Quanto mais eu andava pelo local, mais me sentia circulando pela loja de antiguidades do avô de Nell Trent, imortalizada por Charles Dickens. Por um momento, também me recordei do filme “A Felicidade Não Se Compra”, de Frank Capra. Bom, no meu caso e naquele momento, comprava sim. Porém a realidade era uma suplantadora de desejos. Abri minha carteira ruça e surrada, contei as notas e as moedas que balouçavam dentro do meu bolso e rapidamente tive certeza de que nada ali se encaixava no meu orçamento.

A tristeza me atingiu sobremaneira. Me fez transpirar, umedecendo minhas mãos e as poucas notas de baixo valor que eu observava cabisbaixo. As moedas perderam o brilho, como se fossem impotentes, inutilizadas pela circunstância. De longe, Marta notou o momento em que eu rapidamente me encolhi para guardar o dinheiro e sair do antiquário.

Ela me interrompeu e perguntou se não apreciei nada. Titubeante, disse que gostei sim. “Ué, e por que não vai levar nada?” Hesitei por alguns segundos e me senti encurralado como um animalzinho indefeso. Notando no seu rosto uma expressão reconfortante de benevolência, acabei confidenciando que não tinha dinheiro para comprar nada em sua loja. “Como não? Quanto você tem aí?” A contragosto, minhas mãos tremiam vaporosamente quando tirei as notas e as moedas do bolso. Marta sorriu e pediu que eu mostrasse qual dos objetos mais me agradou.

Caminhei até o fundo da lojinha de antiguidades e sem jeito mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado de madeira que custava mais do que o dobro das minhas economias. “Pra quem você vai dar? É um belo presente de Natal! Você tem bom gosto!”, avaliou Marta, me fazendo corar. Expliquei que seria para minha mãe. Então ela perguntou se havia mais alguma coisa em meu bolso. Retirei um pedaço de papel branco que trazia um pequeno poema de minha autoria chamado “Criança de Faiança”.

Marta o leu com atenção, sorriu e, para minha surpresa, declarou que a “obra” cobria o restante do valor. Antes de sair, pediu que eu autografasse o poema e a ajudasse a colocá-lo em uma moldura dourada de inspiração barroca. “Agora temos um quadro de bom valor”, enfatizou.

Nos despedimos e ela me acompanhou até a entrada da lojinha, onde a vi sorrindo graciosamente até o momento em que desapareci do seu campo de visão. Segui animado pela Rua Getúlio Vargas e voltei para casa assistindo o sol clareando a manhã nebulosa, secando o asfalto e iluminando o cenário, os veículos, as pessoas e os animais, cobertos pelo mesmo manto morno e cadenciado.

No mês seguinte, chamei minha mãe para conhecer o antiquário. Quando chegamos lá, não havia mais nada no lugar, somente uma placa de aluga-se. “Um vislumbre de rostos passageiros flagrados pela luz de uma lâmpada ou pela janela de uma loja é frequentemente melhor para os meus propósitos do que a sua total revelação à luz do dia”, escreveu Dickens em “A Loja de Antiguidades”.

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