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Coisa ou alguém?

12 de outubro de 2017
4 min. de leitura
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─ Aleluia, você poderia nos ajudar? disse a professora do 3º ano do Ensino Fundamental. – É que no livro de geografia consta que o animal é recurso natural renovável. As crianças estão aceitando esta afirmação, porém com desconfiança e muitas perguntas. Você poderia bater um papo com elas?
Peguei o livro para ver como era essa história. De fato, é este o ensino dado às crianças pelo Brasil afora. Simples, direto e sem nenhum constrangimento. Qual o problema se, de fato, o animal é um “bem” disponível para nós? Posto na mesma categoria do minério, petróleo, água ou plantas, o que muda entre eles é ser ou não renovável. Está correta a afirmação pois, de fato, no nosso cotidiano e em quase todas as nossas ações está implícito que devemos usar, aproveitar partes, consumir, usufruir para entretenimento, cortar e abater animais e depois, por inseminação artificial, é possível gerar, aos montes, outros iguais. O ciclo recomeça e o recurso se renova.

Divulgação

Este dado pode passar, para alguns, totalmente desapercebido ou, em outros, causar grande estranheza. Isto é o mais intrigante. Como enxergamos uma mesma realidade e vemos coisas tão diferentes? Esta aula de geografia é somente um fragmento de um longo processo que levará as crianças, futuros adultos, a um estado de naturalização da condição do animal como coisa/produto.
Outros fragmentos virão da grande mídia, da economia, dos adultos, da escola, da igreja, da família, da filosofia, dos médicos, da cultura, da tradição etc. Assim, de forma imperceptível, cada um fazendo um pouquinho, um modo de entender e de pensar estará solidamente estruturado em nossa mente.
Não temos nem mais clareza do que seja animal. Nós os subdividimos em muitas categorias: extinção, doméstico, abate/alimentação, pesquisa, entretenimento, vestuário/moda e tantas outras do alcance de nossa imaginação. O livro de geografia, portanto, não fala para as crianças de todos os animais, está implícito que não é o panda, o cachorro, o boto-cor-de-rosa ou a arara-azul, mas de um tipo de animal, entre os quais, o boi, a vaca, o porco e as galinhas que decidimos e categorizamos como sendo para o abate ou para a indústria animal. Esses nascem e morrem na casa dos bilhões por ano, portanto renovam-se na velocidade de nosso consumo e demanda. Ainda assim, quando olhamos para um desses animais, o que enxergarmos? O que aconteceu conosco que enxergamos uma coisa e não alguém? Quem e quando desligamos esta chave de entendimento?
Donald Barnes é um pesquisador da Escola de Medicina Aeroespacial da Força Área Norte-Americana e esteve à frente dos experimentos na Plataforma de Equilíbrio de Primatas da Base Aérea de Brooks. Reginaldo José Horta menciona, em seu livro Por uma ética não especista (2017, p.141), que Barnes estima ter submetido à radiação cerca de mil macacos durantes os anos que ocupou o cargo, “com total indiferença para o sofrimento e os interesses dos animais”. Esta indiferença é denominada por Barnes como “cegueira ética condicionada”, para se referir aos argumentos que eram utilizados como viseiras com intuito de “evitar enxergar a realidade que estava escancarada diante de seus olhos”.
Algo parecido acontece no 5º episódio da 3ª temporada – Engenharia Reversa – da série Black Mirror. O episódio inicia com os soldados sendo preparados para “caçar baratas”, e nos leva a entender que se trata de algo perigoso ou mesmo pragas ou insetos que estejam trazendo doenças para toda a população. Quando as primeiras baratas aparecem, são de fato figuras asquerosas, deformadas, mas com alguma semelhança com humanos. Como a história se dá na perspectiva de um dos soldados, ele tem um problema em uma de “suas próteses” e, com isso, há uma mudança, também, naquilo que vemos. As baratas passam a ser vistas por nós, como humanos “normais”. O que mudou? Um chip era implantado no cérebro dos soldados com o intuito de mascarar a realidade e fazer com que vissem não pessoas, mas “baratas” que precisavam ser eliminadas, pois não eram, dentro daquela estrutura, dignas de direitos e garantias. As “baratas”, ou aquela categoria de humanos, não gozavam mais da proteção de nada que lhes pertencia, inclusive da vida.
Se a indústria envolvendo o uso de animais como commodities ou produto é o que move grande parte da economia mundial, é de se esperar que, para este sistema, é estrategicamente crucial que continuemos olhando para os animais e enxergando coisas e não alguém. Enxergar alguém exigirá de nós outra postura, outras perguntas e uma outra ética. Não é normal aceitar que animal é recurso natural renovável. Vale, sim, o estranhamento das crianças, nossa única esperança.

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