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Traficantes de drogas enriquecem com o comércio de marfim

25 de agosto de 2017
9 min. de leitura
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Dias antes, um caminhão Mitsubishi branco, cujos documentos alegavam conter “equipamentos domésticos”, transportou mais de 300 presas de elefantes para o Norte da Ilha de Mombasa, longe dos hotéis e praias turísticas pelos quais a cidade é famosa.

Oficial com presa de marfim
Foto: Stringer/AFP/Getty

A descoberta resultou em um dos maiores e mais importantes julgamentos de um traficante de marfim até hoje. Cinco pessoas foram presas, mas o principal suspeito, Feisal Mohamed Ali, desapareceu na capital queniana, Nairóbi, e depois na vizinha Tanzânia. A Interpol emitiu um mandado de prisão de crime ambiental e Ali finalmente foi encontrado em Dar es Salaam no final de Dezembro. Ele foi extraditado e acusado no Quênia na véspera de Natal.

O julgamento de Ali progrediu. As provas desapareceram, os juízes foram substituídos, os pedidos de fiança foram negados, consentidos, foram feitas apelações e anulações, requisições de pedidos de tratamento médico e ameaças de morte contra ativistas que assistiam ao julgamento. Em Julho de 2016, Ali foi finalmente condenado a 20 anos de prisão e a uma multa de 20 milhões de xelins (£ 146 mil) por posse de marfim.

O caso foi a prova do funcionamento de uma lei sobre animais selvagens aprovada há pouco tempo e mostrou que os traficantes capturados no Quênia não poderiam mais receber apenas multas insignificantes por seus crimes tratados anteriormente como triviais.

As organizações de proteção animal pressionaram o governo e impediram que o caso fosse esquecido, comemoram a condenação de Ali, assim como os defensores de animais selvagens que acompanharam tudo com grande  interesse. Porém, para outras pessoas – um grupo informal de investigadores que trabalham para expor as redes de tráfico de animais selvagens que operam impunemente em toda a África – isso foi apenas uma abertura bem-vinda para uma tarefa muito maior.

As redes por trás dos traficantes

“Não existem centenas de grupos envolvidos no tráfico de marfim – há apenas algumas redes que operam em toda a África “, diz Paula Kahumbu, especialista na proteção de elefantes e que dirige a Wildlife Direct, uma organização queniana que luta para acabar com o comércio de marfim e que observa casos como o de Alis.

Uma análise minuciosa dos casos – incluindo a realização de cópias de documentos judiciais e gravações de vídeo – mantém a honestidade dos tribunais e juízes e evita o desaparecimento de arquivos que muitas vezes resultam em julgamentos. A pressão da Wildlife Direct foi fundamental no caso de Ali.

“Foi uma grande surpresa. Todo queniano irá lhe contar: o que supostamente deve acontecer é que, se você pertence a uma organização criminosa forte, você está fora”, diz Ofir Drori, ativista israelense e co-fundador da Eagle Network, um grupo responsável pelo rastreamento de centenas de traficantes, grandes e pequenos, ao longo dos anos.

Foi o aspecto da organização criminosa que interessou Gretchen Peters. Ex-correspondente estrangeira no Afeganistão e no Paquistão, Peters ficou deslumbrada com as relações entre drogas e terrorismo que observou na operação de heroína do Talibã e pelas ligações ocultas entre outras formas de criminalidade. Ela abandonou o jornalismo e decidiu combater os crimes contra a vida selvagem.

Ativistas exigem justiça no julgamento de Feisal Mohamed Ali
Ativistas exigem justiça no julgamento de Feisal Mohamed Ali/Foto: Tony Karumba/AFP/Getty Images

Peters criou o Satao Project – homenagem a um dos elefantes do Tijor, no Quênia, morto pela flecha envenenada de um caçador em 2014 – para investigar as gangues criminosas em 2015, mas rapidamente descobriu o problema estrutural: a corrupção. “Se existe uma rede que transporta mercadorias ilegais de um país para outro, há inevitavelmente funcionários do governo envolvidos, protegendo-os ou ignorando isso. É impossível que isso não esteja acontecendo”, destaca.

Contratada pelo departamento estatal dos EUA, Peters começou a estudar redes de fornecimento de marfim na Tanzânia e no Quênia, mas suas investigações rapidamente envolveram o Uganda e se disseminaram para outras formas de tráfico. Segundo ela, existe na África Oriental “um ecossistema regional de movimentação de marfim, drogas e armas, uma matriz de diferentes organizações que colaboram para transportar bens ilegais ao longo da costa da Swahili”.

A coincidência entre drogas e tráfico de marfim não a surpreendeu.  “Não tenho conhecimento de nenhuma organização traficante de marfim transnacionalmente que está apenas transportando marfim”, diz.

Nenhuma mercadoria ilícita é tão rentável quanto as drogas.  “Quando você se aproxima dos traficantes, eles também estão inevitavelmente transportando narcóticos”, acrescenta.

Outros pesquisadores chegaram à mesma conclusão. Ali é o maior traficante de marfim preso na África Oriental, mas os investigadores dizem que ele responde a outras pessoas. “Feisal [Ali] não é um protagonista: ele é um soldado, um empregado”, observa Drori.

Peters começou a relacionar Ali à organização criminosa de narcóticos com o qual acreditava que ele estava envolvido. Uma das principais provas no julgamento foi o registro de telefones celulares de Ali, revelou a reportagem do The Guardian.

Entre os números que Ali discou estava o de um homem que os investigadores encontraram antes, em outro caso em Mombasa, sobre a rede Akasha, uma família criminosa supostamente dirigida por dois irmãos, extraditada para os EUA para ser acusada de tráfico de drogas no início deste ano. Para Peters e outras pessoas, isso foi crucial.

Enquanto os agentes da US Drug Drug Enforcement Administration (DEA) e da Unidade Anti-Narcóticos do Quênia concentraram-se na operação de heroína da rede Akasha, grupos de proteção animal, incluindo o Wildlife Direct, se detiveram sobre o comércio de marfim e Peters trabalhou para mostrar a ligação entre ambos. “Nossa investigação incluiu entrevistas com dezenas de fontes com conhecimento sobre a rede Akasha e o tráfico de marfim, incluindo membros da comunidade criminosa e agentes de aplicação da lei”, explica.

Desde 2013 até hoje, Peters acredita ter relacionado 13 operações de descoberta de marfim com a rede Akasha, com um peso combinado de cerca de 30 toneladas. Como as autoridades interceptam apenas uma fração do marfim traficado, o verdadeiro número provavelmente será muito maior, o que significa que a rede sediada em Mombasa pode ter sido responsável pelo tráfico de uma grande parte do marfim da África Oriental.

O biólogo Samuel Wasser, da Universidade de Washington em Seattle (EUA), chegou a conclusões similares sobre o papel fundamental do comércio de marfim em um grupo muito pequeno de organizações criminosas.

Na década de 1990, ele desenvolveu um mapa genético de elefantes da África utilizando amostras de DNA que permitem que as presas encontradas sejam rastreadas até suas populações originais, o que permite uma visualização geral da indústria do tráfico de marfim.

Mais recentemente, ele começou o que denominou de “correspondência de amostras” – buscando pares de presas – e descobriu que, na maior parte dos casos, as presas de um elefante são divididas entre diferentes remessas. “Identificamos um grande número de casos em que as duas presas estava em descobertas sucessivas, enviadas por meio de um porto em comum, em período de tempo próximo, sinalizando que o mesmo traficante embalou ambas as remessas”, diz Wasser.

Sua pesquisa concluiu que pode haver apenas três grandes redes de tráfico na África, executando suas operações fora de Entebbe, na Uganda, em Lomé, no Togo, e em Mombasa. No caso da rede Mombasa, a Wasser relacionou até agora sete descobertas de mais de 1,5 toneladas desde o final de 2011 e rastreou a maior parte do marfim até a África Oriental.

Outras evidências do envolvimento da rede de crimes contra a vida selvagem foram colocadas em pilhas de gravações realizadas por fontes da DEA. Entre as transcrições, foi realizada uma em 25 de Abril de 2014, na qual Ibrahim Akasha, o mais jovem dos irmãos, discute o comércio de marfim: “Tenho marfim de Botswana aqui, de Moçambique, de todo o mundo. Tenho muito aqui e isso vende. Tenho marfim, chifre de rinoceronte”, disse ele em árabe.

Um container com marfim no Quênia em 2013
Container com marfim no Quênia em 2013/ Foto: AFP/Getty Images

Foram necessários mais de dois anos para garantir a extradição de Baktash e Ibrahim Akasha para os EUA. As prisões foram o ponto máximo de uma investigação de oito meses, mas o caso da extradição posterior não ocorreu bem devido a objeções legais, ausência de juízes e de um intérprete que se recusou a comparecer ao tribunal depois de ser ameaçado. Mesmo em circunstâncias normais, os tribunais do Quênia são reconhecidamente lentos: em média, são precisos quase dois anos para que um caso criminal seja ouvido e há o acúmulo de dezenas de milhares deles.

Mas, no final de Janeiro deste ano e para a surpresa de todos os envolvidos, o governo queniano interveio e autorizou a extradição imediata dos irmãos Akasha e dos outros dois acusados. “Eles são como a máfia nos Estados Unidos. Você tem uma família que é uma organização criminosa, não são apenas drogas, é multifacetado e o marfim é apenas um dos seus produtos que rendem lucro”, observa o agente especial da DEA, Tommy Cindric, que liderou a investigação Akasha.

Quando o processo judicial ocorrer em Nova York (EUA), provavelmente no próximo ano, os quatro enfrentarão apenas acusações relacionadas ao tráfico de drogas. A DEA decidiu prosseguir com uma acusação unicamente relacionada ao tráfico de narcóticos, mas Cindric afirma que o vínculo da investigação com crime contra vida selvagem contribuiu para possibilitar a extradição.

Outro funcionário da administração dos EUA declarou que a conexão do marfim feita por Peters ajudou a aumentar a conscientização do governo queniano. Para Kahumbu, a revelação das ligações criminosas é fundamental. “A exposição da relação de Ali com os Akashas fez com que tribunais e policiais levassem esses casos com mais seriedade. Isso nos deixa muito mais confiantes, em ir atrás do crime contra a vida selvagem, para poder dizer que eles estão envolvidos com outras formas de criminalidade”, destaca.

Existem outras organizações que fazem um trabalho similar. A Satao, Drori e Eagle trabalham em toda a África. O grupo de combate ao tráfico Freeland colabora com a Lusaka Agreement Task Force na África. A Wildlife Justice Commission obteve sucesso contra traficantes de chifres de rinocerontes na África do Sul e a Fundação PAMS trabalhou com as autoridades da Tanzânia para capturar a chinesa Yang Fenglan, denominada “Rainha do Marfim”, acusada do tráfico mais de 700 presas da Tanzânia para o Extremo Oriente.

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