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Magalhães Lima: “Somarão milhões as folhas em que se encontram os nomes de vegetarianos que foram faróis do seu tempo”

6 de junho de 2017
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Magalhães Lima é o autor do ensaio “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças” (Foto: Reprodução)
Magalhães Lima é o autor do ensaio “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças” (Foto: Reprodução)

Admirador de Liev Tolstói, a quem conheceu quando viajou à Rússia, o escritor português Jaime de Magalhães Lima foi um defensor e pesquisador do vegetarianismo. Ao longo da vida, publicou 30 livros, começando por “Estudos sobre a Literatura Contemporânea”, de 1886.

O encontro com Tolstói foi narrado no livro “Cidades e Paisagens”, de 1889. Inclusive a consciência vegetariana do escritor russo teve grande influência sobre o pensamento do português. “Uma das mais doces e encantadoras recordações da minha vida”, escreveu Magalhães Lima. Amigo do proeminente escritor Eça de Queiroz, com quem trabalhou na “Revista de Portugal”, e também do médico Amílcar de Sousa, para quem produziu muitos artigos publicados na revista “O Vegetariano”, Jaime Magalhães se tornou um importante ativista vegetariano, principalmente a partir de 1912, quando lançou o ensaio “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças”.

“Que crime horrível lançar em nossas entranhas as entranhas de seres animados, nutrir na sua substância e no seu sangue o nosso corpo! Para conservar a vida a um animal, porventura é mister que morra um outro? Porventura é mister que em meio de tantos bens que a melhor das mães, a terra, dá aos homens com tamanha profusão, prodigamente, se tenha ainda de recorrer à morte para o sustento, como fizeram ciclopes, e que só degolando animais seja possível cevar a nossa fome?”, registrou o escritor na página 3 do ensaio, parafraseando o poeta romano Ovídio.

De formação cristã, Jaime Magalhães descobriu uma forma pessoal de espiritualidade. Influenciado pelo panteísmo que também mudou a vida de muitos escritores vegetarianos nos séculos 18 e 19, ele viu na adoração da natureza umas das mais importantes vocações do ser humano. “Percorre montes e vales, preferindo sentir a aspereza dos caminhos a percorrê-los sobre quatro rodas, ele que possui o primeiro automóvel de Aveiro”, consta na página 17 do Boletim Municipal de Aveiro, publicado em 1986.

De acordo com Jaime de Magalhães Lima, o vegetarianismo foi e é uma das características do zênite moral das civilizações, e como tal o aceitaram, proclamaram e praticaram os gênios que mais fundamente as compreendem e mais brilhantemente as serviram.

“Por certo, somarão milhões as folhas impressas em que se encontram os nomes de vegetarianos que foram na história dos povos da Europa, como sinais de sua grandeza, juízes e faróis do seu tempo e dos tempos futuros. E o vegetarismo, tendo já os seus altares e o seu punhado de fiéis em todos os países que atingiram a sua sensibilidade moral e religiosa, está infelizmente longe de ter penetrado na concepção vulgar das obrigações humanas, como é mister para a redenção de tantos e tão dolorosos males que nos afligem e perseguem por culpa da nossa cegueira e obscuridade”, observa o português.

Pitágoras, Percy Shelley, Élisée Reclus e Liev Tolstói foram considerados pelo escritor como arautos do vegetarianismo, que chamaram a atenção de multidões escravizadas pela primitiva animalidade, aviltados em sórdidos prazeres. “Desde que a nossa civilização pôde gravar seu rastro na história, a tradição do vegetarismo jamais se interrompe completamente. Em mais de vinte e cinco séculos, a sua taça passa de mão em mão, e ora se expõe à luz de sol erguida por austeros e hercúleos sacerdotes cuja rectidão e fôrça nos subjugam, ora é guardada devota e humildemente em solitárias ermidas, mas jamais se partiu ou sequer arrefeceu desamparada do alento de lábios que nela busquem beber a essência do vigor do corpo e do espírito”, defende.

Abordando a busca da superioridade moral elencada pelo filósofo grego Pitágoras, Magalhães Lima menciona que seis séculos antes de Cristo, já existia uma consciência que almejava a pureza moral e a abstinência da carne, assim como de todo o derramamento de sangue. “Não pode restar a menor dúvida de que nas origens da civilização se encontra imposta, como preceito fundamental, a abstinência da carne aos que pretenderem seguir na vida o caminho da dignidade”, declara na obra “Vegetarismo e a Moralidade das Raças”.

Havia em Crotona, um homem da ilha de Samos que se exilara da pátria pelo ódio que tinha aos tiranos. Tinha com os deuses aturado comércio. O que sabia comunicava-o a uma multidão de discípulos que em grande silêncio o admiravam. Foi o primeiro que condenou o uso de comer a carne dos animais: doutrina sublime, e tão pouco apreciada, cuja paternidade se lhe atribuía. Deixai, mortais, dizia, deixai de vos servir de manjares abomináveis: dão-vos os campos searas abundantes; para vós vergam de frutos as árvores com os mais belos pomos e produzem uvas as vinhas. Tendes legumes dum suave gôsto, excelentes alguns quando cozidos. […] Enfim para vós, a terra é pródiga de suas riquezas e oferece-vos toda a espécie de alimento sem que necessiteis para sustentar-vos de recorrer à morte e à carnagem, narra Ovídio.

“Não pode restar a menor dúvida de que nas origens da civilização se encontra imposta, como preceito fundamental, a abstinência da carne” (Foto: Reprodução)
“Não pode restar a menor dúvida de que nas origens da civilização se encontra imposta, como preceito fundamental, a abstinência da carne” (Foto: Reprodução)

Para Jaime de Magalhães Lima, um dos monumentos da dignidade humana são as obras morais do filósofo grego Plutarco, que versam sobre o vegetarianismo como última forma de legitimidade moral e fisiológica. O português, assim como outros vegetarianos como o médico estadunidense John Harvey Kellogg, também condenava o consumo de álcool, alegando que a bebida afasta o ser humano do seu estado natural. “Hoje, como então, a carne e o vinho são companheiros e cúmplices nessa embriaguez do nosso sangue”, sentencia.

Na ótica do escritor, somente aos animais convêm o consumo de carne. E, mesmo assim, poucos se sustentam dela. “Os cavalos, os bois e as ovelhas vivem só de ervas; apenas as feras, os tigres, os leões, ursos e lobos fazem da carne seu sustento habitual. […] Que a piedade não seja sacrificada à vossa gula, que para vos saciar não expulseis dos seus corpos as almas dos vossos pais nem vos alimenteis do seu sangue…”, enfatiza.

Sêneca, o intelectual romano a quem o escritor português admirava, dizia, inspirado em Focion, que o homem precisa reconhecer a sua capacidade de encontrar alimentos sem o derramamento de sangue. Do contrário, a crueldade há de ser mantida como hábito, já que a prática da carnificina passa a ser primeiramente associada ao prazer do apetite.

“Acrescentava ele que é nosso dever limitar os materiais da luxúria. Que, todavia, a variedade de alimentos é nociva à saúde e não é natural ao nosso corpo. Se estas máximas [da escola de Pitágoras] são verdadeiras, então nos abstermos da carne dos animais é animar e promover a inocência; se mal fundadas, ensinam-nos ao menos a frugalidade e a simplicidade da vida. E que perdeis vós perdendo a nossa crueldade? Apenas vos privo do alimento dos leões e dos abutres”, cita Magalhães Lima. Depois de mais de um ano de abstinência de alimentos de origem animal, Sêneca disse que não apenas era fácil ser vegetariano, como delicioso. Alegou também que as faculdades do seu espírito se tornaram mais ativas.

É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes demos de comer. Ah! quão pouco dista d’um enorme crime!, transcreve Magalhães Lima, fazendo menção a Ovídio.

Outro argumento que reforça o posicionamento do português em relação à abstenção de carne é o fato de que para ganhar sabor é preciso submetê-la a um processo de transformação. “Qualquer dama de mãos mimosas que trinca com delícia uma costeleta coberta de pão e embalsamada em louro, em cravo, em salsa, em cebola, pimenta e limão, empalidece de náusea sentindo o cheiro do açougue, considera imundície um pedaço de carne crua nos seus vestidos, e foge mais depressa da praça do peixe do que da montureira que aduba a horta”, critica.

Na perspectiva de Magalhães Lima, na cozinha vegetariana ocorre o oposto. O esmero e a perfeição consiste em conservar inalterável o sabor próprio de cada alimento. “Muitos e muitos [crianças] que seriam incapazes de roubar de qualquer salgadeira um grama de toucinho, não resistem à tentação de se aproveitarem do primeiro cacho de uvas que lhes esteja à mão. Os assaltos às hortas e pomares são frequentes, e de tal forma isso parece estar na ordem natural que grande número dos homens rudes não lhes associe nem de longe a noção do crime. Longos séculos de corrupção da dieta não conseguiram atrofiar essas tentações de uma antiguidade bíblica, as mesmas que desgraçaram Adão e Eva”, compara.

Saiba Mais

Jaime de Magalhães Lima nasceu em 15 de outubro de 1859 em Vera Cruz, Aveiro, e faleceu em Eixo, também em Aveiro, em 26 de fevereiro de 1936.

Referências

Lima, Jaime de Magalhães. O Vegetarismo e a Moralidade das Raças (1912). Editora Ônibus Mágico (2015).

Lima, Jaime de Magalhães. Cidades e Paisagens (1912). Biblioteca Digital (2015).

Lima, Jaime de Magalhães. Entre Pastores e nas Serras. Editora Portucel (1986).

Lima, Archer de. Magalhães Lima e a Sua Obra – Notas e Impressões (1911).

Boletim da Aderav, Aveiro, n.º 15 (1986).

 

 

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