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O papel das acusações de incoerência

16 de novembro de 2016
3 min. de leitura
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Há um certo padrão de argumentação que é muito comum em debates (principalmente sobre questões éticas). Seja lá a questão que estiver em discussão, esse tipo de argumento quase sempre está lá. Escrevi esse texto porque essa forma de argumentar na verdade impede que se discuta a questão proposta.
O padrão consiste em acusar o interlocutor de incoerência (com relação à posição que ele adota em outras questões relacionadas à questão que está em discussão) e em seguida retirar uma conclusão sobre a moralidade da questão que está em discussão.
O argumento é este:
(1) Fulano é incoerente (ou ainda, “fulano não pratica o que defende”);
(2) Logo, o que ele defende está errado.
Como parece estar óbvio, a conclusão não se segue da premissa. A premissa avalia o caráter do interlocutor. Já a conclusão diz respeito à moralidade de determinada prática. Obviamente que uma coisa não se segue da outra. É possível alguém ser incoerente (ou mesmo nunca praticar o que defende, em caso algum) e ainda assim defender algo que tem razões fortes a seu favor.
Se o padrão de argumento esquematizado acima fosse válido, então o argumento a seguir seria bom:
(1) Fulano defende o respeito pelos humanos, mas é um estuprador;
(2) Logo, o respeito pelos humanos está errado.
Outro exemplo. Recentemente, com a reabertura da discussão em torno de se proibir legalmente o uso de animais em rituais religiosos, um argumento muito comum tem sido este:
(1) Algumas pessoas que são contra o uso de animais em rituais religiosos comem animais;
(2) Logo, o uso de animais em rituais não deveria ser proibido.
Novamente, a conclusão não se segue da premissa. Tudo o que a premissa nos permite concluir é que tais pessoas estão a ser incoerentes. Não nos permite concluir absolutamente nada sobre a moralidade da prática do uso de animais em rituais (ou de qualquer outra questão onde tal argumento aparecer).
Essa estratégia de argumentação é um tipo de argumento ad hominem. Ele serve para impedir a discussão sobre a moralidade da prática em questão. Tudo o que se pretende afirmar é que o interlocutor tem um defeito de caráter e, com isso, dar a entender que determinada prática está justificada. E, com isso, nos debates aparece de tudo, exceto a única coisa que importa: as razões favoráveis ou contrárias a determinada prática.
O mais incrível de tudo é que muitíssimas pessoas do movimento vegano são de algum modo seduzidas por tal argumento e passam então a defender as práticas especistas em questão. Ao mesmo tempo, alguns dos argumentos mais óbvios em torno dessa questão, que poderiam facilmente mostrar por que devemos rejeitar as práticas especistas, quase nunca são discutidos. Por exemplo, o argumento de que os animais não humanos ficam em uma situação muito pior se forem explorados, em comparação à situação que os humanos ficam se tiverem que se abster de explorá-los é um desses argumentos centrais, que infelizmente quase nunca estão em pauta.

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