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Cecil

3 de agosto de 2015
5 min. de leitura
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Há menos de uma semana atrás participei de uma mesa redonda num simpósio sobre “Consciência Animal” e tive a satisfação de estar na companhia de diversas pessoas que muito têm contribuído para o avanço do movimento animalista. Entre elas estava o prestigioso neurocientista Dr. Phillip Low, um dos autores e principal porta-voz da “Declaração de Cambridge sobre Consciência” (nos animais). O jovem Dr. Low disse acreditar que estamos muito próximos de uma grande revolução no âmbito dos direitos animais e que o Brasil pode ser o epicentro desse fato histórico. O resto daquele dia foi marcado por muitas conversas interessantes sendo que, entre os assuntos abordados, teve destaque um projeto de resgate e reabilitação de animais da fauna selvagem no Zimbábue.
Mas nossos momentos felizes são sempre muito efêmeros. Enquanto sonhávamos de olhos abertos com as mudanças que tanto almejamos é bem provável que, naquele mesmo dia, um leão considerado um ícone no Zimbábue estivesse sendo covardemente alvejado por uma flecha. Ferido, ele sofreu durante 40 horas até ser finalmente morto por um tiro. Seu corpo foi encontrado sem a cabeça, o que indica que seu assassinato tinha um propósito: o de transformá-lo em troféu. Seu nome era Cecil [1].
Milhões de animais são mortos todos os dias neste planeta para satisfazer alguma “demanda” humana desde o paladar, os experimentos ditos científicos, o vestuário, e até o entretenimento. Apenas a JBS mata diariamente 85 mil bovinos, 70 mil porcos e 12 milhões de aves, segundo o “Meat Atlas” (2014) [2], e “leões enlatados” (canned lions) – meros “ vira-latas”, sem nobre estirpe – são mortos quotidianamente sem que a mídia faça estardalhaço algum sobre o tema.
Cecil ganhou manchetes por sua fama. É fato que o valor desse animal – para a mídia e para o Parque Nacional Hwange no qual vivia no Zimbábue – ia muito além do seu valor intrínseco. Na qualidade de “importante atração turística”, era também gerador de diversas formas de retorno financeiro, fato que talvez tenha despertado ainda mais a cobiça do seu carrasco: Por ser um ícone, Cecil tinha algo de “extra”ordinário, algo que o distinguia de outros da sua espécie, o que destacaria também seu assassino de outros simples matadores de “leões enlatados”.
Para um abolicionista, a vida de Cecil não era mais preciosa do que a de nenhum outro leão ou qualquer outro animal como um porco, ou uma vaca, que suportam seu calvário anonimamente.
Sabemos todos que, quem compra produtos que causam sofrimento e morte aos animais, ou que os exploram, está pagando para que tais práticas se perpetuem.
O que ocorre no caso em discussão, porém, é que ao contrário das práticas institucionalizadas nas quais há uma chance de os exploradores nunca haverem refletido sobre sua parcela de culpa, existe uma atitude proativa em direção à crueldade.
O que o assassinato de Cecil e de outros animais mortos em situações semelhantes faz emergir é a escória que jaz na essência da espécie humana. Pode parecer polêmico, mas talvez o que menos importe aqui seja a vida de mais um animal morto. Esse fato pode ser facilmente banalizado, quando confrontado com os milhões de vidas ceifadas diariamente apenas no setor pecuário, como destacado antes. O que é verdadeiramente assombroso é que o dinheiro pago para dispor dessa vítima, especificamente, poderia ser usado para ajudar na conservação daquela ou de outras espécies animais, ou poderia ser investido na melhoria das escolas daquele país. Na realidade é infinita a lista de projetos e ações que poderiam florescer mediante algum apoio financeiro. Mas prevaleceu a vileza infinita.
Faltam-me adjetivos para qualificar esses humanos sórdidos, mas não é difícil imaginar que covardes e pulhas desse mesmo naipe tenham argumentado no passado (e de certo argumentariam hoje, se lhes fosse dada a chance!) que pagaram uma licença para estuprar uma escrava, ou explorar uma criança de sua propriedade, uma vez que acham que as pretensas legalidades em que se apóiam, os colocam acima das questões éticas subjacentes aos fatos. É patético pensar que o acusado em questão aparentemente deseja ser inocentado de sua monstruosidade ao alegar possuir todas as autorizações previstas em lei, além de ter contratado guias profissionais. Teria matado Cecil por engano (sic), como se a vida de um leão “comum” não valesse nada.
Muitos lamentam o fato de que o novo leão que tomará o lugar de Cecil deverá matar parte da prole existente quando se estabelecer. Mas qual é a natureza dessa preocupação: ética ou econômica? Trará prejuízos para o parque? Há inúmeras outras questões. Como será a convivência das leoas entre si e com o novo parceiro? Serão remanejados alguns filhotes para que não sejam mortos? Como será a separação deles de suas mães e irmãos? Acreditando que são sujeitos de uma vida, é provável que esse infeliz episódio deixe marcas indeléveis na memória daquele grupo. Qual o valor de tudo isso? Cinquenta mil euros, ou dólares?
Seria educativo que este e outros psicopatas – como James Hetfield da banda Metallica, um matador de ursos – pudessem um dia aquilatar de alguma forma a magnitude da dor física e do pânico que impuseram aos indefesos animais que assassinaram. Uma característica dos psicopatas é não conseguirem se colocar no lugar do outro, ou seja, sentir compaixão.
E por falar em se colocar no lugar do outro, encerro fundindo minha identidade com as crianças felinas, palestinas, ou nordestinas e com todos aqueles que não têm chance alguma de fazer escolhas e são vítimas dos soldos podres dos que acreditam na supremacia ilimitada de seu “livre” arbítrio. Que venha a mudança vaticinada pelo Dr. Phillip Low. Ela é urgente.
1: Vale a pena conhecer mais detalhes sobre o caso: http://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2015/07/29/117621-americano-e-suspeito-de-ter-matado-leao-icone-do-zimbabue.html; http://www.care2.com/causes/cecil-the-lion-deserved-our-protection-like-all-animals.html#ixzz3hTG1L1MZ;http://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2015/07/31/117700-eua-abrem-inquerito-sobre-morte-do-leao-cecil-no-zimbabue.html
2: Veja: https://www.foeeurope.org/sites/default/files/publications/foee_hbf_meatatlas_jan2014.pdf;Segundo a própria JBS são processadas 55 mil carcaças diariamente. Veja: http://www.jbs.com.br/pt-br/negocio/jbs-carnes

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