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Avaliação de filosofia e o especismo institucionalizado

22 de julho de 2015
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No inicio do ano letivo, na primeira reunião “pedagógica” é pedido aos professores que façam seu planejamento anual, ou seja, que coloquem no papel o conteúdo que irão trabalhar com os alunos durante o ano e, entregue o mesmo à coordenação pedagógica da unidade escolar.
Planejamento esse, que na verdade é mais uma copia do que reza a cartilha governamental: o que consta nos livros didáticos, nos PCNs, e no caso aqui, no CBC – Currículo Básico Comum. Não há nada de novo, é o eterno retorno do mesmo.
No meu caso, ao entregar meu planejamento parece surgir um problema para o corpo burocrático escolar, que na sua grande maioria não têm familiaridade com a Filosofia, com sua historia e com as reflexões críticas oriundas de sua prática. O suposto problema é que ao colocar como tema a ser trabalhado durante o ano, o especismo, a senciência, direitos morais, experimentação animal, abolicionismo versus bem-estarismo, direitos animais, entre outros, os mesmos não são encontrados na proposta curricular do Estado. É importante ressaltar que o CBC é uma proposta curricular, uma proposta, mas nas escolas “proposta” é sinônimo de obrigação. Essa incapacidade de encontrar tais temáticas na proposta curricular do Estado é devido a não familiaridade com a historia da filosofia e sua gigantesca variedade de temas desenvolvidos e debatidos no decorrer dos séculos.
Como a escola é uma instituição rígida que tem curricularmente se mantido em pé em cima do livro didático e da proposta curricular de Estado; pouco importa se na bibliografia de seu planejamento é colocada a fonte filosófica dos temas a serem desenvolvidos em sala de aula.
Os temas da ética animal causam um abalo, uma crise na moral tradicional seguida até então sem questionamento pelos alunos e alunas. As indagações que os alunos e alunas levam para casa advindas do incomodo causado pelas aulas de filosofia crítica animalista fazem com que os pais apresentem reclamações e ocorrências junto ao corpo burocrático da escola pedindo o fim das aulas de filosofia ou a expulsão do professor da unidade escolar.
No entanto, há poucos meses, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, enviou uma avaliação para ser aplicada nas escolas (PAAE – Programa de Avaliação de Aprendizagem Escolar). Nunca antes uma prova oficial tinha gerado tanta felicidade em um educador vegano. É uma avaliação de filosofia baseada no CBC e composta de onze questões. Segue cinco dessas questões. No primeiro enunciado lemos:
“Segundo Cícero, a natureza criou cada animal com seu corpo apropriado para evitar o que lhe faz mal, permitindo-lhe buscar o necessário a alimentação, ao abrigo e a manutenção da vida. Os animais não humanos são guiados apenas pelos sentidos e, por isso, não refletem sobre o mundo, nem tem consciência do passado, do presente e do futuro. O ser humano, por outro lado, é capaz de perceber a mudança temporal e, com isso, pode antecipar aquilo de que ele pode precisar no trajeto da sua vida.”
Essa questão é super interessante. Primeiro, vemos o uso do termo “animais não humanos”, algo comum apenas no meio animalista; depois temos a clássica divisão especista entre o ser humano e os outros animais pelo critério da posse de consciência, de noção temporal, ou seja, humanos agem pelo uso da razão e os outros animais movidos pelos sentidos. Somente esse enunciado dá uma aula inteira. Podemos responder ao especismo de Cícero com a ajuda de outros filósofos Greco-romanos como Plutarco e Porfírio. Podemos, também, discutir com os alunos sobre essa perspectiva especista em Heidegger que assim como Cícero, defende que os animais não humanos não se vêem no mundo.
Na segunda questão:
“A ampla maioria dos animais nasce sabendo o que fazer para sobreviver. Algumas poucas espécies passam por um período de aprendizagem. No entanto, os animais, mesmo quando aprendem, estão sempre direcionados a buscar coisas já existentes na Natureza. O leãozinho aprende a caçar, mas ele só aprende a caçar animais existentes na Natureza. Ele não é capaz de inventar um objeto. Os homens, pelo contrario, nascem sem saber o que fazer para sobreviver. Eles precisam inventar o que querem e o que vai satisfazer esse desejo.”
Nessa questão vemos como o especismo impede o ser humano de usar a própria lógica e racionalidade de que tanto se vangloria de possuir e os animais não. A estratégia de inferiorização é nitidamente aplicada, os animais até aprendem, mas restritos ao ambiente natural. Viver usando e modificando a seu próprio modo o seu habitat natural por parte dos animais é sinal de inferioridade. Os animais são apresentados como incapazes de inventar objetos, instrumentos para ajudar na manutenção de sua vida cotidiana. Hoje, inicio do século XXI, não há afirmação mais infeliz e fora de propósito, ainda mais vindo de profissionais que elaboram avaliações de filosofia. Gabar-se de que é a filosofia e os filósofos os que mais têm domínio no uso da razão, da lógica, é fácil; o problema aqui é ver se estão pensando minuciosamente mesmo, aplicando de fato essa lógica, pois afirmar que somente os humanos criam objetos para satisfazer desejos é risível, pueril e de uma desonestidade intelectual sem tamanho.
No quarto enunciado, onde os alunos deveriam diferenciar experiência de experimentação, temos:
“O Dr. Ramos foi à Roma para participar de um experimento científico. Antes, porém, visitou o Coliseu. Entrou devagar, imaginando a multidão agitada para assistir às lutas entre os gladiadores. Ficou pensando no luxo da corte imperial e também no suor e no sangue daqueles que muitas vezes perdiam a própria vida para proporcionar diversão ao povo.
No outro dia, Ramos foi até o complexo industrial farmacêutico, e, numa sala climatizada e depois de todos os procedimentos de assepsia de praxe, preparou a fórmula do fármaco experimental e aplicou a dose prescrita em doze camundongos. Dez dias depois, os camundongos foram sacrificados e seus fígados preservados para análise.”
Um ponto a ressaltar é que quando o educador vegano faz uma crítica à experimentação animal em aula, mesmo utilizando de uma ampla bibliografia (incluindo o próprio livro didático e o CBC que colocam a ciência sob o olhar da Ética, destacando os limites e impactos do “avanço” científico) e ilustrando com o documentário “Não Matarás”, ele é convocado a dar esclarecimentos devido às reclamações dos pais dos alunos. Será que o que incomoda é a perspectiva crítica abolicionista do educador vegano diante da apresentação da experimentação científica no CBC e no livro didático?
O enunciado da sétima questão diz:
“Uma das principais diferenças entre o homem e o animal é que os animais produzem o estritamente necessário, enquanto o homem produz o necessário, mas vai além e constrói a celebração, que está muito além da necessidade. O homem produz de verdade quando se vê livre da necessidade, porque ele projeta primeiro o que vai fazer e só depois executa o trabalho. O que ele faz e produz primeiro existe como projeto em sua mente e só depois se transforma, pelo trabalho, em realidade. A racionalidade, assim, é um dos melhores instrumentos que o homem possui para fazer projetos, para realizar os seus desejos. Desta reflexão, infere-se que a racionalidade é”
Nessa questão temos a clássica definição de razão instrumental. O enunciado é todo elaborado num clichê sociológico, cuja fonte é a obra O Capital de Karl Marx; quando esse se serve do exemplo da abelha e da construção de sua colmeia. A obra da abelha é magnífica, porém, como ela não é racional e age por mero instinto, sua construção é desqualificada diante da construção do mais tosco banco pelo homem, já que esse antes de construir o banco projetou-o em sua mente. Isso sim, para Marx, no embalo dos iluministas, é a representação máxima da racionalidade e, logo, de superioridade humana. A partir da definição de trabalho marxiana, pergunto: o que distingue o trabalho escravo humano do trabalho escravo equino? Marx era leitor de Darwin, inclusive teve a ideia de dedicar o primeiro volume d’O Capital ao evolucionista britânico. Mas Darwin prontamente recusou a homenagem. Será que o especismo de Marx e sua defesa da razão como um atributo exclusivo do humano foi fator que contribuiu para a recusa da homenagem?
Por fim a oitava questão traz:
“Somente o homem, através da cultura, é capaz de transformar a natureza, de modificá-la de acordo com seu desejo. Só os homens produzem as suas próprias condições de existência, adaptando a natureza aos seus desígnios. Mas muitas das qualidades (atributos) do ser humano são partilhadas com os outros animais do planeta. Porém, há uma qualidade (atributo) que é exclusiva do homem.
Essa qualidade é identificada como:
a)abstração, b) instinto, c) inteligência, ou d) linguagem.”
Esse enunciado da avaliação é interdisciplinar, um diálogo especista entre Filosofia, Sociologia e Antropologia. O clichê ultra-ultrapassado de que só o homem faz cultura, que só ele modifica a natureza construindo objetos para dar cabo a seus desejos, que somente ele é um ser biográfico. E como todo material pedagógico especista, precisa fechar tentando elencar algum atributo que supostamente é exclusivo do humano, que o distingue dos outros animais.
Essa avaliação oficial, de um programa do governo de Estado tanto pode ajudar a reforçar o especismo legado pela moral tradicional, como pode via análise de um educador vegano ajudar os alunos e alunas a compreenderem as falácias apresentadas nesses enunciados e não menos a ideologia dominante embutida neles.
Essas cinco questões da avaliação do PAAE, cuja fonte é o CBC (CBC que junto com os manuais de filosofia do ensino médio) são fundamentais na confirmação de que a introdução da teoria dos direitos animais e do modo de vida vegano nas aulas de filosofia é legítima e necessária. Restringir o trabalho pedagógico em aula a apenas duas fontes (livro didático e CBC) é limitado, demasiado limitado. Mas suponhamos que o professor seja “obrigado” a restringir seu material de trabalho ao livro didático, exemplo, Iniciação à Filosofia, de Marilena Chaui. Sem problemas. Textos especistas também servem para a desconstrução do especismo.
Na apresentação de sua obra a pensadora assim se expressa:
“Neste livro, procuraremos mostrar que as imagens costumeiras do filósofo [que vive no mundo da lua] e da filosofia [que é inútil] não correspondem à realidade. De fato, elas surgiram como tentativa para rebaixar a atividade do pensamento porque este questiona as crenças e os preconceitos que formam o senso comum da sociedade.
[…]
Este livro é um convite ao questionamento, à reflexão, ao trabalho do pensamento na busca da verdade, na compreensão do sentido de nossas idéias, de nossos sentimentos e emoções, dos valores de nossa cultura e de nosso desejo de liberdade e de felicidade.”
Filosofia é isso, questionamento das crenças cotidianas, das tradições e costumes. Reflexão crítica sobre o cultural ideologicamente passado como natural. É muita inocência do corpo burocrático das escolas acreditar que “impondo” o uso do livro didático e do CBC a manutenção da engrenagem da alienação estudantil e do status quo continuará funcionando como outrora. Quando o professor é movido por princípios políticos e éticos sólidos e munido de uma reflexão filosófica crítica o “convite” feito pelo livro didático é aceito sem problemas, assim como a “proposta” curricular do Estado, pois não existe material limitado que não possa ser usado para ampliar as fronteiras do nosso conhecimento sobre o mundo.
Referências
CHAUI, Marilena (2013). Convite à filosofia: ensino médio, volume único. 2. Ed. São Paulo: Ática.
DENIS, Leon (2012). Educação vegana: tópicos de direitos animais no ensino médio. São Paulo: Libratrês.
______ (org.) (2014). Educação & Direitos animais. São Paulo: Libratrês.
______ (2010). Direitos animais: um novo paradigma na educação. In: ANDRADE, Silvana (org.) Visão abolicionista: ética e direitos animais. São Paulo: Libratrês. p. 171-179.
______ (2013). Se não é Filosofia, é o que? Disponível em: https://www.anda.jor.br/23/07/2013/se-nao-e-filosofia-e-o-que-2
PAAE. http://paae.institutoavaliar.org.br/

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