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Sem ouvir cientistas, Brasil exporta peixes-boi para o Caribe

8 de abril de 2015
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(Foto: Acervo Aquasis)
(Foto: Acervo Aquasis)

Uma polêmica ronda o ICMBio e mobiliza especialistas. Trata-se da transferência de cinco espécimes de peixes-bois-marinhos (Trichechus manatus) para Guadalupe, território da França no Caribe, onde serão usados em um programa de reprodução em cativeiro. Os filhotes serão soltos na natureza.

Para especialistas, a cooperação é um equívoco científico, levado à frente na marra pelo governo, movido por dificuldades financeiras e que trará maus resultados para a conservação da espécie. Para o ICMBio, o programa é uma contribuição do Brasil à conservação do peixe-boi no mundo.

Os cinco peixes-bois se chamam Netuno, Xuxa, Sereia, Marbela e Toquinho. Neste abril, eles serão transferidos do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA), em Itamaracá, Pernambuco, para o Parque Nacional de Guadalupe para se tornarem os primeiros do programa de reintrodução da espécie promovida pelo governo francês. Há mais de 100 anos os peixes-bois foram extintos na ilha caribenha.

No dia 22 de maio de 2014, a ministra Izabella Teixeira anunciou o acordo de cooperação e pegou os especialistas brasileiros em peixes-bois-marinhos de surpresa. “Ficamos sabendo pela imprensa”, afirma a Dra Miriam Marmontel, oceanógrafa do Instituto Mamirauá, no Amazonas. Segundo ela, após tomar conhecimento da decisão, um grupo formado por 17 conservacionistas enviou carta ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ibama e ICMBio solicitando que especialistas fossem ouvidos. Esperaram quase um ano, sem resposta.

Em março desse ano, o grupo pediu auxílio ao Ministério Público Federal, afirmando que havia dúvidas sobre a transferência que precisavam ser sanadas. O Ministério Público iniciou um processo e marcou audiências. Nelas, o ICMBio e o Ibama forneceram explicações consideradas satisfatórias e o processo foi arquivado.

A transferência de animais está prevista na Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), tratado internacional do qual o Brasil é signatário. O Ibama é a autoridade administrativa e o órgão que emite a licença para a exportação dos animais. Já o ICMBio age como autoridade científica e emite os pareceres técnicos.

“Legalmente, o processo foi correto. Ao mesmo tempo, as próprias partes envolvidas são as partes interessadas. Elas falam entre si sem nenhuma revisão por pares, nenhuma avaliação por pesquisadores. Os pesquisadores que avalizaram a transferência são pesquisadores do próprio Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA). Ignoraram todos os outros que sempre são chamados para participar de reuniões, para dar aval ao PAN [Plano de Ação Nacional para Conservação dos Sirênios]”, disse Miriam.

Ugo Eichler Vercillo, coordenador-geral de Espécies Ameaçadas do ICMBio, disse que o processo de transferência foi legal e explicou porque os pesquisadores não foram ouvidos: “[Ibama e ICMBio] são dois órgãos distintos do governo. Questionados pelo Ministério Público, apresentamos os pareceres e os documentos exigidos. O Ibama deu a autorização e nós emitimos o parecer sobre o processo”.

Espécies iguais, populações diferentes

(Foto: Acervo Aquasis)
(Foto: Acervo Aquasis)

No Brasil, o peixe-boi-marinho é o mamífero aquático mais ameaçado de extinção. A razão principal é a perda de habitats devido a expansão urbana no litoral e ocupação das zonas costeiras. Há duas estimativas oficiais para o tamanho da população: uma que afirma que no país existem 500 espécimes e outra que afirma que existem mil. O ICMBio usa a segunda estimativa e alterou, ano passado, a categoria da espécie de “Criticamente Em Perigo” para “Em Perigo”.

Segundo o biólogo marinho Alberto Alves Campos, vice-presidente e gerente de projetos da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (AQUASIS), a mudança de categoria foi feita “sem dispor de dados concretos para justificar tal decisão”.

“Até hoje, apesar de décadas de atuação do projeto peixe-boi, ainda não existe uma pesquisa robusta que indique a população total remanescente no Brasil. Sabemos que a espécie foi extinta em vários estados do Nordeste e Sudeste, e o que restou está sob grave ameaça de desaparecer para sempre”, disse Campos.

Os pesquisadores temem que a ida dos animais, além de prejudicar o programa de reintrodução da espécie na costa brasileira, possa interferir na reprodução dos peixes-bois dos países caribenhos, já que as duas populações são distintas (embora sejam da mesma espécie) e estão separadas há mais de 100 mil anos. O cruzamento entre populações diferentes pode ocasionar a chamada depressão exogâmica, quando a diferenciação genética da adaptação da espécie para o local onde vive desaparece devido ao cruzamento com uma populações diferente.

“As espécies se adaptam a cada uma das localidades. Como são de locais diferentes, tem todo o indicativo que não se deve misturar, pois os pares [reprodutores] são tão diferentes que os filhos poderão ter problemas e comprometer a população local. Nós não estamos preocupados com a população de Guadalupe, que foi extinta. Mas e a população de Cuba, da República Dominicana, do entorno? Eles vão cercar a praia para os peixes introduzidos não irem para as outras ilhas? Porque se não cercar eles vão”, explica Fabrício Rodrigues dos Santos, do Laboratório de Biodiversidade e Evolução Molecular, da Universidade Federal de Minas Gerais. Para ele, o governo brasileiro ignorou o princípio de precaução.

Santos conta que há 10 anos contribuiu para um parecer contrário à retirada do peixe-boi-marinho da Guiana Francesa para Guadalupe. Os argumentos eram os mesmos: não era indicado introduzir uma população genética tão diferente da outra existente no Caribe. Administrador de Guadalupe, o governo francês acatou.

“Na ocasião, sugerimos que eles introduzissem peixes-bois lá da Flórida, bem menos diferente do que os peixes-bois da Guiana Francesa, variedade similar à brasileira. Com a vantagem de que lá tem mais de 4 mil espécimes, já aqui não passam de 500 distribuídos por 4 mil quilômetro de costa. Porque eles não trouxeram da Flórida?”, diz Santos.

“A questão é que eles [o ICMBio] não tem aval da pesquisa, não tem aval da evidência, as pessoas estão confundido as coisas. É só pedir parecer externo de professores da Europa, dos Estados Unidos, a gente apresenta as evidência e vê. E olha só, por que eles não chamaram o pessoal da Guiana Francesa? Porque o pessoal da Guiana aceitou o argumento que a gente deu [de que não se deveria fazer reintrodução de populações muito diferentes das existentes no local]. E, então, por que estão aceitando agora do Brasil? Por que não fomos consultados?”, questiona Santos.

O ICMBio mantém que a transferência é uma contribuição do Brasil para a manutenção da espécie em nível mundial e que os 5 animais já contribuíram com a preservação da espécie no Brasil, ao gerar filhotes reintroduzidos na costa.

A existência de parentes dos peixes-bois que serão despachados para o Caribe na costa brasileira é um dos argumentos do ICMBio para que eles não participem mais de reprodução em cativeiro aqui no Brasil, pois os filhotes nascidos desses cruzamentos – que serão introduzidos – poderão acasalar com parentes já soltos. Isso também seria um perigo para a espécie.

Os especialistas rebatem argumentando que os filhotes poderiam ser introduzidos longe dos locais onde os reprodutores foram soltos, dada a extensão da costa brasileira.

Ugo Eichler Vercillo, do ICMBio, argumenta: “nós somos enfáticos em dizer que não há perigo em fazer essa transferência. Os seus genes já foram devidamente incorporados à população silvestre. Então não há perigo ou risco de levar à extinção à população silvestre brasileira. Deixar esses animais no Brasil, dentro de cativeiro, não nos parece tão relevante e significativo como essa tentativa de colonização de uma nova área. Além de estabelecer entre o Brasil e os países caribenhos uma relação de aproximação para a conservação inéditos”.

 Guinada no Centro de Mamíferos Aquáticos

O objetivo declarado do ICMBio é transformar o Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA) em uma unidade de conservação de todos os animais aquáticos da costa brasileira e deixar de ser um centro de visitação de peixes-bois. Os 19 peixes-bois que estão lá serão realocados. Além dos 5 que estão de passagem marcada para Guadalupe, 4 serão reintroduzidos na natureza e o restante terá seu destino discutido caso a caso. O que é certo é que deixarão os tanques em Itamaracá.

“O nosso objetivo é que o centro mude de patamar […]. Então, a estrutura que vai ficar no centro será focada em reabilitação e reintrodução e não uma estrutura focada em visitação. Isso não é nosso objetivo. Não é uma ação de estado em termos de conservação”, diz Vercillo.

O CMA foi criado em 1995 e é uma continuação do Projeto Peixe-Boi, criado em 1980 para iniciar as pesquisas sobre a espécie. Em 2010, uma série de mortes no tanque colocou o CMA no centro da polêmica envolvendo sucessivos cortes de verbas nos centros especializados do Ibama/ICMBio, que não desmente os problemas financeiros, mas nega que ele seja o principal motivo para a exportação dos animais.

Para os cientistas ouvidos, sim. “O envio dos peixes-bois a Guadalupe é a ponta do icebergue do atual descaso ambiental do Governo Federal e sua falta de diálogo com os especialistas em conservação. É um reflexo da falta de investimentos básicos para a conservação… Na realidade, estão se livrando dos animais por falta de capacidade para mantê-los”, afirma Alberto Alves Campos.

Em explicação ao Ministério Público Federal, Fábia de Oliveira Luna, a própria coordenadora do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA), relata as dificuldades para manter os atuais 19 peixes-bois. A fala está no documento do arquivamento do processo contra o ICMBio e Ibama.

“Como dito, se não houvesse a exportação para Guadalupe, os cinco animais permaneceriam apenas para visitação, em condições de superlotação, maior suscetibilidade a doenças, impossibilidade de reprodução, depressão e outros fatores que diminuem a qualidade de vida dos indivíduos. Hoje em dia são 19 animais que existem no CMA. O espaço é insuficiente, capaz de comprometer inclusive a integridade física e mental dos indivíduos”.

A oceanógrafa Miriam Marmontel, umas das pesquisadoras à frente do grupo contra a exportação dos animais, é contundente ao afirmar que existem opções para mantê-los aqui. Nesta segunda-feira, 30 pesquisadores assinaram outra nota técnica endereçada ao Ministério Público Federal contestando o arquivamento do processo.

Enquanto no Brasil os pesquisadores reclamam da falta de transparência, em Guadalupe a imprensa faz festa pra chegada dos novos habitantes. A expectativa é que os novos moradores aumentarão a visitação no território.

Fonte: O Eco

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