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Por que a acusação de imposição não funcionaria nem mesmo se respeitar os animais fosse opcional

26 de janeiro de 2015
11 min. de leitura
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Foto: Divulgação
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1. Introdução: um resumo até o momento
Em outras postagens, iniciamos uma série de discussões em torno do argumento da imposição. O argumento da imposição, muito resumidamente falando, é aquele que mantém que os defensores dos animais estariam a fazer uma imposição ao defenderem a obrigação de se respeitar os animais, e que fazer tal imposição é um erro. Após um breve resumo do argumento da imposição e das razões para rejeitá-lo, apresentamos um texto onde foi refutada a ideia de que os proponentes do argumento da imposição o fazem por manterem que toda imposição é errada. Defensores do argumento da imposição, apesar de normalmente retratarem a si próprios como não fazendo nenhum tipo de imposição, na verdade, estão a defender que algumas imposições são corretas (a saber, aquelas feitas sobre os animais não humanos). Vimos no texto anterior que uma das maneiras comuns de se defender que as imposições sobre animais não humanos são corretas é alegar que respeitar os não humanos, diferentemente de respeitar os humanos, é moralmente opcional, e não, obrigatório. Vimos, no mesmo texto, que não há nenhuma boa razão para sustentar esse ponto de vista e que, exatamente as mesmas razões para se enxergar o respeito por humanos como obrigatório se fazem presentes no caso do respeito pelos seres sencientes de outras espécies. No presente texto, vou argumentar que, mesmo se isso não fosse assim (isto é, se respeitar os animais não humanos fosse opcional, e não, obrigatório), ainda assim, a acusação de se estar a fazer uma imposição injustificada por argumentar a favor do respeito pelos animais não humanos não faria sentido.
2. Até mesmo argumentar é fazer uma imposição injustificada?
A acusação de imposição por vezes é colocada com relação à tentativas de se estabelecer direitos legais para os animais não humanos (porque envolveriam coação e/ou coerção), mas, na maioria das vezes tal acusação é feita até mesmo com relação à qualquer argumentação que avalie negativamente a moralidade especista. Como vimos em outro texto, temos boas razões para acreditar que a moralidade especista é injustificada, e que há, então, o dever de respeitar os seres sencientes, independentemente de espécie. Meu objetivo agora é mostrar que, pelo menos com relação à forma ampla da acusação de imposição (que acusa de imposição até mesmo argumentar avaliando negativamente a moralidade do especismo), o argumento não funcionaria nem se respeitar os animais fosse moralmente opcional (e nem mesmo se fosse um dever desrespeitar os animais!) Esse novo argumento pode ser resumido assim (clique aqui para compará-lo com o argumento B):
(B1) Se algo é moralmente opcional, obrigar alguém a fazê-lo ou a deixar de fazê-lo é uma imposição injustificada;
(B2) Respeitar os animais é moralmente opcional;
(B3’) Argumentar que respeitar os animais é moralmente obrigatório é obrigar alguém a fazer o que é
moralmente opcional.
(B4) Logo, defender que há obrigação de respeitar os animais é uma imposição injustificada.
Como vimos, temos boas razões para rejeitar B2 e entender respeitar os animais como moralmente obrigatório, e não, opcional. O que pretendo mostrar agora é que o argumento não se sustentaria nem se desrespeitar os animais fosse um dever:
(B1’) Se algo é moralmente obrigatório fazer, obrigar alguém a não fazê-lo é fazer uma imposição injustificada;
(B2’) É moralmente obrigatório desrespeitar os animais;
(B3’) Argumentar que respeitar os animais é moralmente obrigatório obriga alguém a não fazer algo que tinha o dever de fazer;
(B4) Logo, defender que há obrigação de respeitar os animais é fazer uma imposição injustificada.
Em ambos os casos, o argumento não se sustenta porque B3’ é falsa: argumentar que respeitar os animais é moralmente obrigatório não obriga alguém a fazer ou deixar de fazer algo, a não ser em um sentido muito trivial do termo “obrigar”, que seria o sentido envolvido quando se faz qualquer argumentação: o ouvinte tem que ouvir as razões que expomos, mas, se discordar delas, não há nenhuma força física que o impeça de continuar a, na prática, fazer o contrário daquilo que seu interlocutor condena. Nesse sentido trivial, não estou a negar, então, que argumentar que algo é moralmente opcional ou moralmente obrigatório impõe moralmente (ainda que não coercitivamente) algo a alguém. O que estou a defender é que essa “imposição” é justificada, e que isso é independente de se ter ou não razão quanto ao que se está a defender. Vejamos por que:
3. A justificativa para questionar uma conclusão
Mesmo quando existem claramente muito melhores razões para se classificar uma decisão moral em uma determinada categoria (moralmente opcional; moralmente obrigatório fazer; moralmente obrigatório não fazer), não há nenhuma boa razão para se pensar que as pessoas teriam um dever de não questionar essa avaliação. Isso por dois motivos.
O primeiro, é que, devido à nossa falibilidade, temos de estar cientes de que é possível estar errados na avaliação moral que fizemos de uma decisão. Assim sendo, é sempre bom existir o direito de se questionar uma conclusão (incluindo a avaliação moral de uma prática), por mais óbvia e amplamente aceita que essa conclusão possa ser. Apesar de aparentemente óbvia, uma conclusão pode estar, de fato, muito errada, e carecer de qualquer boa razão a seu favor. É somente assim que o conhecimento é possível. Exemplos históricos de episódios assim não faltam. Basta lembrar que há poucas décadas atrás, acreditava-se que respeitar seres humanos de pele negra era moralmente opcional, e não, um dever. Hoje a maioria dos que estão lendo esse texto já concorda que esse julgamento é errado. Mas, essa mudança só foi possível porque foi possível desafiar a crença moral vigente em questão. Do mesmo modo, é bem possível que os que acreditam que respeitar os seres sencientes de outras espécies seja algo moralmente opcional estejam simplesmente errados.
O segundo motivo, é que, mesmo que a crítica que se faça se revele totalmente infundada, no máximo tal crítica não representa perigo algum, e pode muito bem ter consequências benéficas, porque dá a oportunidade de se esclarecer o que há de errado com a crítica e de se esclarecer as razões do porquê a conclusão desafiada estava mesmo correta (o que ajuda sempre na compreensão sobre a moralidade da questão, já que é muito comum tirarmos conclusões que são respaldadas pelas melhores razões, mas não a tirarmos pelas razões que realmente as poderiam fundamentar; digamos, tiramos conclusões corretas pelas razões erradas, como melhor explicado neste texto). Assim sendo, mesmo se respeitar os animais fosse moralmente opcional, e até mesmo se fosse um dever desrespeitá-los (embora, como vimos, temos muito melhores razões para acreditar que seja um dever respeitá-los), ainda assim qualquer um estaria justificado a desafiar essa posição (independentemente de se ter ou não razão ao se desafiar tal posição). E, isso é assim com qualquer conclusão, seja ela com respeito à moralidade, fatos empíricos, lógica, epistemologia, ou qualquer outra área do conhecimento.
O que os proponentes da acusação de imposição (pelo menos na forma ampla do argumento) estão a defender é que a crença de que respeitar os animais é moralmente opcional tem uma espécie de status sacrossanto, que nenhuma outra crença teria, que torna moralmente errado desafiá-la. Isso é irônico, pois o discurso dos que endereçam a acusação de imposição é o de que estão a defender um ideal democrático e de livre expressão. Mas, quando defende-se que se pode fazer o que bem entender com os outros (incluindo assassinar e torturar), e não se pode nem mesmo questionar se o que se está a fazer é mesmo correto, e que são esses que tentam questionar os que estariam a fazer uma imposição injustificada sobre alguém que só quer é garantir que todos possam se expressar livremente, o que se está a fazer é praticar uma tirania e mascara-la de defesa da liberdade de expressão. Se esse fosse mesmo o objetivo, não ficariam ofendidos por alguém estar a desafiar suas posições morais; se sentiriam agradecidos por terem a oportunidade de oferecerem razões com vistas a defendê-las. Talvez seja por perceberem que sua posição não tem boas razões a seu favor que, então, utilizem dessa estratégia.
4. A tirania disfarçada
O que parece acontecer, nesse caso, é que as pessoas defendam o ideal democrático de ser permitido questionar qualquer crença, desde que não estejamos a falar de crenças morais. Fatos empíricos, defendem geralmente as pessoas, é algo que todos deveríamos discutir com vistas a averiguar se são verdadeiros ou falsos. Posições morais, em contrapartida, pensam muitas pessoas, cada um deve ter a sua e cada um não deve questionar a de ninguém.
Isso fica evidente na questão que estamos a discutir quando percebemos que os que defendem ser moralmente opcional explorar os animais defendem que as pessoas estão justificadas a mostrarem vídeos de, por exemplo, como sofrem os animais nas granjas industriais. Ou seja, admitem que é correto questionar a validade de uma crença, desde que ela seja uma crença sobre fatos (por exemplo, alguém acreditar que a vida dos animais nas granjas industriais é minimamente boa).
Contudo, defendem que o limite do permissível para se questionar as práticas especistas termina aí. Defendem que temos justificativa para mostrar um vídeo e nada mais. Quando a questão é julgar o especismo como algo moralmente errado e quando a questão é apresentar as razões que comprovariam que o especismo carece de qualquer boa razão a seu favor, tais pessoas defendem que, nesse caso, não há esse direito. Isso freqüentemente acontece não apenas na questão da moralidade do especismo, mas em debates sobre qualquer assunto que envolva a moralidade de alguma coisa.
Assim, muitas pessoas acreditam que existe um dever de não se desafiar as crenças morais das pessoas. É justo, no entender dos proponentes da acusação de imposição, mostrar que determinadas crenças empíricas que as levam a adotar determinada postura prática estão erradas, mas, questionar a posição normativa que tal pessoa segue e prescreve o que ela deveria fazer à luz da avaliação empírica, seria uma enorme arrogância e desrespeito, no entender dos proponentes de tal acusação.
5. Motivos que poderiam explicar a origem da afronta diante de um questionamento moral
Poderão existir vários motivos que possam explicar por que muita gente tem essa posição. Um deles pode ser, como vimos, a crença de que, se um julgamento moral é claramente correto, então que não existe o direito de se discordar ou desafiar esse julgamento. Como vimos, não existem boas razões para se pensar assim nem mesmo quando um julgamento moral estivesse absolutamente certo (o que não é, nem de longe, o caso com relação ao especismo).
Outro motivo freqüentemente alegado é a idéia de que a ética é relativa. Ou seja, é possível que alguém acredite que há o dever de não se questionar as crenças morais dos outros por se acreditar que toda e qualquer visão moral é sempre tão boa quanto qualquer outra. Não é objetivo desse artigo discutir a plausibilidade do relativismo. Contudo, a discussão feita em outro lugar, em torno do conceito de relevância moral, parece colocar o ônus da prova naqueles que pretendem dizer que toda e qualquer posição, por mais irrelevantes onticamente que sejam os critérios adotados por ela, são igualmente boas às que seguem critérios relevantes. O que quero apontar é que, mesmo se acontecesse do relativismo estar correto, ainda assim não seguiria daí a conclusão de que é há o dever de não se questionar as crenças morais alheias. Isso porque, se toda posição moral é sempre tão boa quanto qualquer outra, se não existem posições objetivamente erradas, então a posição que afirma que temos justificativa para desafiar as crenças morais dos outros não poderia estar errada e seria tão boa quanto à posição que diz o contrário.Assim, a única maneira de se defender que é moralmente errado questionar as crenças morais dos outros é defender que a ética é objetiva (que existem posições práticas que todo mundo deveria adotar) e que, além disso, que a objetividade da ética implica em não questionar as crenças morais dos outros. Como vimos acima, se temos boas razões para rejeitar que a objetividade da ética implique em uma norma assim até mesmo quando o objeto de crítica são visões morais que possuem as melhores razões a seu favor, essas razões existem em dobro no caso do especismo, que, como vimos, é uma posição moral com relação à qual existem inúmeras boas razões para se rejeitar.
Cenas dos próximos capítulos…
No próximo texto, abordaremos defesas do argumento da imposição que reconhecem que respeitar os animais não humanos é moralmente obrigatório. Isto é, nessa visão, reconhece-se que respeitar os animais não humanos é moralmente obrigatório, mas mantém-se também que é errado reivindicar essa obrigação. No próximo texto, veremos então esse argumento em maiores detalhes e as razões para rejeitá-lo.

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