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Sencientocentrismo x Biocentrismo

30 de junho de 2014
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Foto: Divulgação
Anatomia comparativa com relação às estruturas capazes de gerar experiências, entre um boi e um pepino

Considere a seguinte pergunta:

“Por que adotar o critério da senciência, e não, o critério ‘estar vivo’?”

Ou seja, essa pergunta quer saber por que respeitar apenas aqueles seres capazes de ter experiências e não, respeitar tudo o que é vivo (vegetais, fungos, bactérias, vírus, etc.). Em resumo, a pergunta em questão quer saber que critério de consideração moral adotar: o da senciência ou o biocêntrico. Muitas vezes, a defesa dos animais não humanos é vista como uma posição biocêntrica. Abaixo, tento explicar por que não é esse o caso:

Por que adotar o critério da senciência? A resposta é que o fato de um organismo ser senciente (ou seja, capaz de experimentar sensações) é uma condição necessária para que haja alguém “dentro” desse organismo, alguém que prefere estar em determinados estados (experiências positivas) e não em outros (experiências negativas). Os organismos meramente vivos, em termos do que é relevante para a moralidade de como tratá-los, são como objetos artificiais tais como tijolos, sapatos, meias, camisetas: não há alguém “ali dentro” a quem respeitar. Assim sendo, não há como prejudicar esse objeto, já que ele não prefere se encontrar em um estado e não em outro (já que não há alguém que é esse objeto e, portanto, esse objeto não experimenta nada).

Quando alguém fisga um peixe e o iça, por exemplo, uma razão para se considerar essa prática errada se dá porque ela causa sofrimento (portanto, causa uma experiência mental negativa) ao peixe. Quando alguém mata um ser senciente, mesmo sem causar dor, a razão para se considerar essa prática errada se dá porque ela impede que o ser em questão tenha experiências prazerosas (portanto, impede experiências mentais positivas). Compare por exemplo com quebrar um tijolo ou cortar uma laranja ao meio. Não há razão direta alguma (ou seja, razões que digam respeito ao objeto que diretamente é atingido pela ação) para se objetar a tais ações. Poderíamos objetar apenas por razões indiretas: alguém poderíamos ferir alguém ao cortar o tijolo ou a laranja, por exemplo. Isso é assim porque a laranja, assim como tijolo, não sente nada de negativo ao ser cortada e nem tal corte a impede de desfrutar coisa alguma de positivo (já que ela não é alguém, e, portanto, não é capaz de experiências). É possível dizer, por exemplo, que o tijolo “foi beneficiado” ao ser colado depois de ser destruído, ou que a laranja “foi prejudicada” por ter sido pisoteada, mas esse sentido é meramente metafórico, já que não há alguém “ali dentro”, que é a laranja ou o tijolo, que foi beneficiado ou prejudicado.

Fonte: Divulgação
Plantas não possuem nenhuma estrutura funcional capaz de fazer surgir experiências.

Se ainda tem dúvidas quanto às razões para se rejeitar o critério da vida e para se adotar o critério da senciência, considere o exemplo a seguir:

O filósofo Oscar Horta [1] oferece um exemplo, com vistas a defender que é a senciência, e não, a vida biológica, que é relevante quanto ao erro em matar. Esse exemplo valerá também, como veremos, para outras questões sobre prejudicar e beneficiar, e não apenas, a questão do matar. O exemplo é o seguinte: assuma por um momento que não haja nenhuma vida após a morte. Supondo que você esteja na posição de escolher entre:

(1) Morrer agora (sem nenhuma vida após a morte) ou;

(2) Ficar biologicamente vivo por mais vinte anos, na completa inconsciência (sem nenhuma sensação, nem mesmo sonhos), sem chance alguma de recuperar a consciência, e depois morrer (sem nenhuma vida após a morte).

A pergunta é: faz diferença do seu ponto de vista, o que acontecerá depois da escolha de alguma das duas opções? Obviamente não. De qualquer maneira, você, o indivíduo que habita aquele corpo, morre agora, quer escolha a opção 1 ou 2. Parece que toda diferença que podemos alegar a favor de alguma das duas opções apelará a preferências de amigos, parentes, ou às suas próprias preferências, enquanto ainda é senciente, quanto ao que fazer com o seu corpo (que são todas preferências de seres sencientes). Ou ainda, poderia-se apelar ao possível benefício para outros pacientes com relação à doação de órgãos, que também é apelar ao benefício para seres sencientes. Assim sendo, nesse exemplo, você – o indivíduo que habita aquele corpo – quer escolha a opção 1, quer escolha a opção 2, morre agora.

Mas, na segunda opção, o seu corpo continua biologicamente vivo. Se o biocentrismo estivesse correto, não apenas teríamos obrigação de escolher a opção 2 e respeitar tal corpo vivo mas vazio, mas, além disso, teríamos de dizer que o respeito por tal corpo vivo vazio teria de ser do mesmo grau que o respeito devido quando havia alguém a habitá-lo. Mas, novamente, faz sentido perguntar: de que maneira seria possível prejudicar literalmente esse corpo vazio, já que ele não valoriza se encontrar neste ou naquele estado? Assim sendo, o exemplo acima parece mostrar, ao invés, que é a capacidade para a senciência que é relevante moralmente no que diz respeito não somente ao erro em matar, mas a qualquer outra questão em que alguém tem a possibilidade de ser prejudicado ou beneficiado.

Notas:

[1] HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos,  2009. http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/

 

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