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A Temperança

13 de junho de 2014
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É senso comum as pessoas advogarem a crença de que o vegano desfruta menos, que é um sacrifício ser vegano, que o vegano se abstém dos maiores prazeres da Terra ao adotar esse modo de vida (diaita). Mas como bem pontua Comte-Sponville: “não se trata de desfrutar menos, mas de desfrutar melhor. […] É um gosto esclarecido, dominado, cultivado”.

A temperança é moderação que nos faz senhor de nossos desejos. É saber desfrutar do agradável sem que esse cause prejuízo a outrem. Isso nos leva a concluir que tarefa difícil é a do educador vegano, que dentro de uma sociedade de consumo animalizada, consumo de tudo que é derivado da exploração dos animais humanos e não-humanos, se dispõe ensinar o respeito a todas as formas de vida senciente.

Numa sociedade especista não é simplesmente o consumo de produtos animalizados, mas o consumo em demasia, excessivo que é valorizado e naturalizado. Não só comer, mas comer muito. Não só beber, mas beber excessivamente. Não só vestir, mas possuir muitas variedades (couro, lã, peles, penas…) e adereços (de ossos, de marfim, cornos, chifres, dentes).

É dentro dessa cultura do consumismo animalizado que o educador vegano deve ensinar ao seu público a ser senhor de seus desejos. Educar para o desfrute livre, ou seja, desfrutar a liberdade de escolher deliberadamente o que lhe apraz de modo a satisfazer seu apetite psicofísico sem, no entanto, que tal realização seja oriunda do uso, da exploração e morte de seres sencientes. Ser temperante é ser prudente.

Para Aristóteles, temperança é a excelência que se situa entre os extremos: de um lado o desregrado e do outro o incapaz de gozar. O intemperante é um escravo de seus desejos e hábitos culturalmente produzidos, mas ensinados como naturalmente dados. Segundo Arsitóteles,
“Assim como a criança deve viver de acordo com o direcionamento de seu tutor, também o elemento apetitivo deve viver de acordo com a razão. Por isso, o elemento apetitivo de um homem temperante deve se harmonizar com a razão, pois o escopo de ambos é ser nobre e o homem temperante deseja aquilo que deve, como deve, quando deve. Assim dispõe a razão.”

Enquanto Platão e Aristóteles falavam de temperança ou moderação (sophrosyne), outro pensador grego, Epicuro, preferia falar de independência, de bastar-se a si mesmo (autarkéia). Ou seja, diante de desejos naturais e necessários, de desejos naturais e não necessários e enfim os desejos vazios, os que não são naturais nem necessários; é a prudência do temperante que o fará distinguir quais desejos são melhores para si sem causar danos aos outros.

Uma sentença epicurista resumirá bem essa divisão dos desejos:

“Graças sejam rendidas á bem-aventurada Natureza que fez com que as coisas necessárias sejam fáceis de alcançar e que a coisas difíceis de alcançar não sejam necessárias.”

Eis a tarefa do educador vegano, mostrar ao seu público que todos os desejos fabricados por uma sociedade hegemonicamente especista não são naturais nem necessários. São vazios, superficiais, sua gênese está na irreflexão, no não deliberar.

Qual é o preço de se entregar sem a mínima reflexão aos prazeres oriundos da gula ovo-galacto-carnista? Qual é o preço de se entregar sem a mínima reflexão aos prazeres pré-fabricados pela grande indústria da exploração animal. Um consumo que se tornou tão desenfreado que a população quer a cada dia mais, sempre mais, e não sabem se contentar, nem mesmo com o excesso. O mínimo não agrada, o excesso não satisfaz. Que triste fim, para os humanos que se escravizam a esse modo de vida biocida, para os animais não-humanos que são explorados e assassinados para suprir uma gula descabida humana, e para os ecossistemas naturais que não conseguem se recompor.

Para a sociedade especista, os veganos vivem uma vida de restrições. Errado. Os veganos vivem também uma vida prazerosa, feliz e desfruta de bem-estar. Pois o que os ovo-galacto-carnistas chamam de “pouco”, os veganos chamam de suficiente. É a temperança que proporciona escolher o melhor, a qualidade à quantidade não natural e nem necessária. Temperança não é uma virtude excepcional como a coragem, mas uma virtude da simplicidade, é a regra e não a exceção, e longe do heroísmo é a virtude do comedimento. É o caminho oposto do desregramento de todos os sentidos.

O fim da temperança são os desejos mais necessários à vida do indivíduo, como o comer e o beber, por isso, são os mais difíceis de dominar. Isso não quer dizer que devemos suprimi-los – lembremos com Aristóteles que a insensibilidade é um defeito –, mas controlá-los, regrá-los, mantê-los em equilíbrio em harmonia e em paz. Mas não devemos esquecer que só é possível sustentar desejos pacíficos vivendo pacificamente. E uma vida movida pela exploração e uso de animais não-humanos como coisas não é nem de longe algo próximo a paz.

Eis o fim do educador vegano, viver moderadamente e, ensinar ao seu público como ter um gosto, um desejo, um prazer esclarecido, dominado, cultivado. Cabe ao educador vegano resgatar essa virtude há tempos abandonada. A temperança é uma afirmação sadia de nosso poder de existir, existir fundado na reflexão do que nos satisfaz prazerosamente sem que o mesmo ocasione desprazer nos outros animais. Temperança é controle de apetites desregrados. Novamente com Aristóteles, temperança não é um sentimento, é um poder, isto é, uma virtude, um habitus.

Referências

ARISTÓTELES (1999). Ética a Nicómaco. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. (Ediciónbilingue: griego/castellano).
COMTE-SPONVILLE, A (2009). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: WMF Martins Fontes.
EPICURO (1997). Carta sobre a felicidade. São Paulo: Unesp. (Edição bilíngue: grego/português).

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