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Conheça mitos internos sobre veganismo e direitos animais

11 de março de 2014
24 min. de leitura
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A defesa do especismo e do consumo de produtos de origem animal é repleta de mitos e falácias, mas infelizmente não é o único lado que usa argumentos falhos. Muitos vegetarianos e veganos ainda costumam usar determinadas alegações que não passam de mitos que, embora sua refutação não fragilize a lógica do vegano-abolicionismo, acabam tanto tirando um pouco da credibilidade deste como diminuindo sua força ética e atrapalhando o próprio desenvolvimento da causa.

Este artigo contesta diversos desses que podem ser chamados “mitos internos”, já que caracterizam uma indução ao erro vinda de dentro do próprio movimento veg(etari)ano-abolicionista, ao invés de carnistas que nada entendem sobre veg(etari)anismo e Direitos Animais. Refutá-los é mais do que necessário para o amadurecimento, solidificação e fortalecimento do vegano-abolicionismo.

Mitos sobre vegetarianismo

1. Os vegetarianos gozam de saúde perfeita, quase não ficam doentes.

Não existe saúde perfeita e imune em nenhuma dieta humana. O vegetarianismo estrito traz benefícios cada vez mais difíceis de se negar, mas não é o caso de imunizar o organismo humano contra doenças. Mesmo aqueles males mais prováveis de acontecer em consumidores de carnes, laticínios e ovos – câncer, diabetes, doenças cardiovasculares etc. – também acontecem com frequência não desprezível entre vegetarianos, ainda que em menores incidência percentual e probabilidade.

Vegetarianos também podem morrer de câncer, infarto e outras doenças, embora possam diminuir, com sua alimentação, as chances de isso acontecer. E nisso outros fatores acabam influenciando, como predisposição genética, sedentarismo, estresse, consumo de muitas frituras, tabagismo e consumo de bebidas alcoólicas.

2. Vegetarianos e veganos não precisam tomar remédios. Eles sempre contam com métodos de medicina alternativa, como a homeopatia e o tratamento por ervas.

É enganoso dizer isso. Em sua maioria, os veganos e vegetarianos não deixam de consumir medicamentos, ainda que costumem consumir, em média, menos que os onívoros. Fazem-no tanto para curar problemas como gripe, dor de cabeça e feridas como para controlar ocasionais doenças ainda incuráveis, como certos transtornos de ordem psiquiátrica, assim como outros motivos. É inviável o indivíduo boicotar remédios, por mais forte que seja sua convicção vegano-abolicionista. Porque, mesmo que não os consuma regularmente, terá que tomá-los em algum momento de sua vida, cedo ou tarde, por motivos de emergência, incluindo casos de vida ou morte.

As terapias alternativas, por sua vez, possuem uma abrangência limitada de doenças a serem tratadas ou curadas, isso quando sua eficácia curativa não é motivo de ceticismo e desconfiança. O tratamento por ervas medicinais, por exemplo, funciona em muitos casos de adoecimento, mas não em todos. Já outros tratamentos alternativos, como a homeopatia e os florais de Bach, são considerados duvidosos em seus efeitos por muitos, visto que não têm conseguido comprovar sua eficácia de modo confiável à maioria da sociedade. Portanto, não é seguro a pessoa acreditar que pode se tornar totalmente independente de todo e qualquer recurso da medicina moderna.

3. Vegetarianos transam melhor.

Além de não haver estudos suficientes que comprovem essa alegação – mesmo a própria concepção de “transar melhor” pode variar de pessoa para pessoa –, ela é totalmente desnecessária no que tange a plantar nas pessoas abordadas por vegetarianos e veganos a empatia e o respeito aos seres sencientes. Pelo contrário, abaixa o nível dos diálogos e discussões sobre por que se tornar vegetariano.

4. Não é necessário suplementar vitamina B12 ou obtê-la de fortificados. As próprias plantas, algas ou fungos provêm essa vitamina.

Essa afirmação carece de provas. O que a “fundamenta” é que, sendo a B12 produzida por bactérias, há ainda alguma quantidade desses micro-organismos – e, por tabela, da vitamina – em vegetais sujos, recém-extraídos do solo. Porém, é perigoso consumi-los não higienizados, dada a presença de agentes patológicos microscópicos obscuros na terra ou transmitidos pelas mãos de quem os manejou ou pelo chão dos locais onde foram armazenados. Além disso, a B12 presente em algumas poucas plantas, algas e fungos (como levedura) são formas inativas da vitamina, não aproveitáveis pelo organismo humano. Por isso, não é razoável convencer as pessoas de que hoje “não é necessário” obter vitamina B12 sintetizada de fontes bacterianas.

5. O vegetarianismo melhora o humor da pessoa, tornando-a menos agressiva.

Essa afirmação depende muito da pessoa, não é algo que se aplica generalizadamente a todos os vegetarianos e veganos. Eric Slywitch, no livro Virei vegetariano. E agora?, explica que não há comprovação científica de que há uma adrenalina menor em vegetarianos do que em onívoros. E mesmo o efeito psicológico da adesão ao vegetarianismo e ao veganismo varia de pessoa a pessoa, estando em jogo tanto a mudança de visão de mundo como o efeito placebo proporcionado pela eventual visão espiritualista que para muitos fundamenta em parte a abolição do consumo de animais.

No que tange à visão de mundo, é possível a pessoa encarar a realidade com mais esperança, bem estar, paz de espírito, autoconfiança e, consequentemente, bom humor depois de ter abolido os derivados de origem animal de sua mesa. Ou então fazê-lo com melancolia ou irritação, pela possível sensação de que o mundo é mais cruel, preconceituoso, hostil, socialmente inóspito e menos empático do que se imaginava nos tempos de onivorismo.

Já em relação à espiritualidade, é possível, dependendo da crença do indivíduo, sentir-se com o corpo “purificado” e “limpo” da “energia negativa” que o consumo de carne, laticínios e ovos alegadamente trazia. A pessoa que acredita em energias espirituais positivas e negativas sentirá que seu antigo hábito alimentar impedia o alcance de uma paz de espírito ainda mais forte, e isso acaba induzindo-a a realmente se sentir melhor e mais bem-humorada depois da vegetarianização ou da veganização.

É muito provável que o indivíduo vá melhorar seu humor depois de mudar sua alimentação. Mas não é uma certeza a ser propagada, já que varia muito de pessoa para pessoa.

6. O vegetarianismo é a certeza de um corpo enxuto e atraente.

A alimentação vegetariana estrita é de fato bem menos carregada de gordura, em especial a saturada, do que a onívora, mas isso não impede que uma dieta mal regrada, que peque no excesso de carboidratos – em especial açúcares – e frituras faça a pessoa engordar. Da mesma forma, dietas vegetarianas pobres demais em calorias tendem a tornar o indivíduo muito magro, podendo até descer do intervalo de Índice de Massa Corporal considerado de baixo risco.

A perda ou ganho saudáveis de peso, ou sua estabilização num nível que a pessoa deseje, podem ser alcançados até mesmo em algumas dietas onívoras ou desprovidas de carnes vermelhas. A questão é muito mais concernente ao influxo de calorias, aliado à prática de atividades físicas, do que à presença ou ausência de alimentos de origem animal na mesa.

E um outro sério problema concernente à questão de “conquistar um corpo atraente” é a própria definição de “corpo atraente”, geralmente atrelada à imposição de padrões de beleza arbitrários pela cultura vigente. Há uma forte demanda machista para que as mulheres “lutem” por um corpo magro ou “curvilíneo”, assim como o costume de rapazes e meninos gordos ou muito magros sofrerem bullying de garotos acostumados com valores de hierarquização, preconceito e violência.

Com isso, a crença de que o vegetarianismo dá a perspectiva de “conquistar” o “corpo atraente” desmantela sua implicação ético-empática e desassocia libertação animal de libertação humana. Portanto, esse argumento mítico deve ser abandonado o quanto antes, tanto por não ser confiavelmente baseado em fatos como por legitimar opressões.

7. O vegetarianismo é garantia de um envelhecimento muito mais lento.

Muitos afirmam isso tendo como base o exemplo de pessoas como Mimi Kirk, vegetariana estrita septuagenária possuidora de uma aparência de cerca de 40 anos de idade. Porém, é uma falácia de generalização precipitada acreditar que, devido ao exemplo de Kirk, todos os vegetarianos e veganos, ou a maioria deles, gozarão da mesma jovialidade aos setenta e poucos anos. Há diversos outros fatores que influem no envelhecimento físico (ou seu retardo) do indivíduo: genética, alimentação rica em antioxidantes – que não é uma exclusividade do vegetarianismo –, prática de exercícios, não uso da maioria das drogas (cigarro incluído), suscetibilidade ao estresse, entre outros.

Em resposta ao “argumento Mimi Kirk”, carnistas divulgaram uma imagem comparando Nigella Lawson, alegadamente onívora e fumante mas de aparência muito jovial, e Gillian McKeith, vegetariana militante mas com fortes sinais de envelhecimento, ambas com quase a mesma idade (nascidas respectivamente em 1960 e 1959, com quatro meses de diferença de idade). Alguns usaram essa comparação para tentar propagar a falácia de que, dados os exemplos das duas, o vegetarianismo favoreceria, e não retardaria, o envelhecimento. Mas outros onívoros, mais sensatos, aproveitaram essa resposta para contra-argumentar que o vegetarianismo não é o único nem o mais importante fator a definir o quanto alguém envelhecerá em aparência.

8. Vegetarianos sempre têm colesterol ruim menor do que os onívoros.

Há casos – muitos deles genéticos, segundo o livro de Eric Slywitch Virei vegetariano. E agora? – em que o colesterol LDL de vegetarianos chega ao nível em que o sinal amarelo é acionado. Por outro lado, há onívoros, comedores ou abstêmios de carne vermelha, que conseguem manter durante toda a vida bons níveis do mau colesterol.

Além do colesterol, é necessário observar também que alguns alimentos industrializados, mesmo sendo desprovidos de ingredientes de origem animal, possuem gordura trans, como certas marcas de batatas-palha, pipocas e outras guloseimas. E a gordura trans é semelhante ao colesterol LDL em termos de nocividade ao sistema cardiovascular.

9. O organismo do ser humano é essencialmente vegetariano, não é preparado para comer carne.

Um argumento usado até por veg(etari)anos militantes reconhecidos, como Gary Yourofsky, é o de que o organismo humano seria vegetariano, e não biologicamente onívoro. Porém, a Arqueologia não concorda com isso.

Em primeiro lugar, porque de fato, conforme Sérgio Greif, no artigo intitulado O homem (sic) evoluiu como um animal carnívoro ou vegetariano?, explica que certa espécie de hominídeos ancestrais do ser humano moderno realmente só sobressaiu na pressão seletiva ambiental de sua época porque soube compensar a escassez de fontes vegetais de nutrientes em seu ambiente com o consumo de carne de caça. Enquanto isso, outros hominídeos de alimentação invariadamente vegetariana acabaram sucumbindo.

Além disso, não há evidências científicas de que problemas nutricionais endêmicos devidos a essa alegada intolerância humana à carne tivessem afligido a humanidade em tempos antigos ou no segundo milênio da era cristã. Pelo contrário, abundam as evidências da existência de povos caçadores, pescadores e/ou pecuaristas ao longo de milênios de história humana, o que não existiria caso houvesse de fato uma intolerância biológica ao consumo de carne na espécie humana.

Hoje o ser humano possui plenas condições agrícolas, além da flexibilidade nutricional, de ser vegetariano estrito. Mas isso em nada interfere no passado, no qual, em muitas situações, ele teve que realmente comer carne de caça ou de rebanhos, na falta da variedade moderna de produtos cultivados.

E em segundo lugar, o argumento do “ser humano essencialmente vegetariano” incorre na falácia non sequitur (dar um argumento no qual premissa e conclusão não batem uma com a outra), visto que não há relação válida entre a premissa “Houve hominídeos vegetarianos no passado” e a conclusão “Logo, o ser humano de hoje é biologicamente vegetariano e intolerante à carne”.

10. O organismo humano não consegue digerir a carne.

Sendo biologicamente onívoro, o ser humano não tem grandes problemas em digerir proteína animal, visto que tem um estômago rico em ácido clorídrico, conta com enzimas digestoras como a pepsina e tem intestinos de tamanho mediano – nem tão curtos quanto os dos carnívoros nem tão longos quanto os dos herbívoros. Isso não implica que ele precise comer carne, mas nega o mito interno de que ele não pode digeri-la. Fisiologicamente falando, é possível comer carne em quantidades moderadas sem sofrer grandes abalos na saúde. Mas não é ético.

11. A carne fica retida por relativamente muito tempo no tubo digestivo, podendo apodrecer lá dentro.

Segundo implicita Eric Slywitch no seu já mencionado livro, a crença na putrefação da carne dentro do sistema digestório advém do odor mais forte das fezes de algumas pessoas que comem muita carne e têm uma dieta pobre em fibras. Mas não há apodrecimento nem retenção de carne.

Há sim uma digestão um pouco mais lenta do que a de vegetais, mas as enzimas digestivas conseguem digerir os nutrientes da carne e enviar o resto não aproveitável para o intestino grosso transformar, junto com os alimentos vegetais, em fezes. E como foi dito, uma alimentação pobre em fibras e rica em carne pode piorar o fedor das fezes e dar a impressão de que a carne apodreceu dentro do organismo do onívoro.

12. Herbívoros não contraem câncer (logo os vegetarianos também não contraem).

Não há evidências de que animais herbívoros sejam imunes a todos os tipos possíveis de câncer. E mesmo que a incidência de câncer seja menor em animais herbívoros do que em carnívoros e onívoros, isso não se aplica por razão e proporção aos seres humanos vegetarianos. Isso porque há inúmeros outros fatores que podem induzir um vegetariano a eventualmente contrair a doença: tabagismo, exposição excessiva à poluição ou radioatividade, consumo de resíduos de agrotóxicos acima de níveis seguros, predisposição genética etc.

13. Vegetarianos são mais saudáveis. Vejam meu caso/o caso de fulana: eu me tornei/ela se tornou muito mais saudável depois que parei/parou de consumir alimentos de origem animal.

Costuma-se apontar o exemplo próprio, ou de uma pessoa próxima ao argumentador, como uma “prova” de que o vegetarianismo é saudável e/ou melhora a saúde da pessoa que deixa de consumir alimentos de origem animal. Mas essa não é uma prova válida da saúde vegetariana, sendo, na verdade, nada mais do que a versão vegetariana da falácia de evidência-anedota.

Essa alegação acaba sendo tão questionável e inválida quanto a evidência anedótica carnista, por exemplo, do amigo de fulano que contraiu anemia “porque” tinha deixado de comer carne. Isso porque ambos os casos carecem de uma observação metodologicamente rígida, que poderia apontar se em cada caso houve a influência de fatores paralelos independentes do consumo de alimentos de origem animal.

Entre esses fatores, incluem-se o cuidado com a adequação nutricional da dieta, a ocorrência de doenças que ocasionassem ou potencializassem os problemas de saúde passados ou presentes alegados, a adoção ou abandono dos exercícios físicos, o consumo ou abandono de refrigerantes e/ou bebidas alcoólicas etc.

Em outras palavras, existem muitos casos em que a pessoa melhorou a saúde não tanto porque abandonou os alimentos de origem animal, mas sim porque, por exemplo, parou de fumar, começou a praticar atividades físicas regularmente e adotou um estilo de vida menos estressante.

Por isso, o exemplo pessoal tanto não é uma prova válida da saúde vegetariana como é facilmente duvidável e questionável pelos onívoros ou carnistas. É necessário mostrar comprovações menos suscetíveis a interferências externas e vieses, como os pareceres de associações de profissionais de saúde e alguns artigos que constem em periódicos científicos, para provar que o vegetarianismo é saudável a ponto de melhorar a saúde da pessoa que aderiu a ela.

Mitos sobre veganismo

1. O estilo de vida vegano salva vidas.

É muito comum veganos acreditarem e argumentarem que o abandono do consumo de produtos com ingredientes de origem animal e/ou testados em animais salva vidas sencientes por si só. Na verdade não há necessariamente a salvação de animais já nascidos e explorados dentro de fazendas, granjas e biotérios. Nenhum desses lugares retira animais da “linha de produção” para encaminhá-los à adoção ou a santuários por causa da adesão de pessoas ao veganismo e da consequente perda de consumidores. É praticamente inexorável que os animais serão mortos, exceto se forem salvos graças a ações diretas de libertação – como o exemplo da ação que libertou as cobaias presas no laboratório do Instituto Royal.

O que o veganismo, enquanto hábito de consumo, faz é evitar que mais animais venham a nascer para uma vida de prisão, escravidão, privação de direitos e morte violenta. Baseia-se tanto em quebrar o ciclo vicioso no qual mais e mais animais nascem e morrem em prol de violentos interesses humanos, como em diminuir gradativamente o número de vítimas da pecuária, da pesca, da vivissecção, dos testes de produtos industrializados etc.

É graças ao veganismo que há a perspectiva de, num futuro próximo, a pecuária e outras atividades caírem numa decadência que só irá terminar no momento da sua abolição. E nisso, o número estimado de 50 bilhões de animais terrestres mortos por ano pela indústria de alimentos de origem animal irá cair, em alguns anos, para 30 bilhões, e em seguida para 10 bilhões, 5 bilhões, 1 bilhão, 500 milhões… até chegar a zero nas sociedades modernas. É basicamente diminuir cada vez mais a carga de violência e sofrimento existente no planeta. É fazer não com que animais já vivos parem de sofrer – o que apenas as ações diretas podem proporcionar –, mas sim que animais parem de nascer para uma existência miserável.

Mas deve-se deixar claro que isso vai acontecer graças não apenas ao veganismo, mas sim à soma de todos os meios de ativismo abolicionista, incluindo palestras, ações diretas, cyberativismo, criação e publicação de material de conscientização, diálogos boca-a-boca etc. E o veganismo é apenas um deles, o mínimo necessário que o indivíduo precisa fazer em prol da futura abolição da escravidão animal.

2. Ser vegano já pode ser considerado o bastante para contribuir com um mundo melhor.

O veganismo é indispensável para que o indivíduo diminua sua contribuição à perpetuação da cultura da exploração animal, mas não é o bastante. Na verdade é o mínimo a se fazer em termos individuais, e não dispensa a necessidade de ações de libertação animal que envolvam mais do que o indivíduo vegano – envolvendo, por exemplo, o vegano e um onívoro em processo de conscientização, ou um grupo de veganos, ou o vegano e um público ouvinte de pessoas sendo conscientizadas etc. –, como as citadas na resposta ao mito anterior.

Foi abordado na série de vídeos Os limites do veganismo por que adotar o veganismo de forma isolada, sem contrapartidas ativistas, é algo distante do suficiente para que seja de fato viabilizado um futuro livre de escravidão animal. Entre os fatores que a série coloca, estão a inviabilidade de o hábito de consumo vegano por si só (desacompanhado de ações ativistas como a denúncia) diminuir a clientela de empresas envolvidas com exploração animal – já que, nesse caso, elas irão baixar os preços e atrair novos clientes não veganos – e a inadmissível lentidão do declínio, ou mesmo declínio zero, da exploração animal num contexto imaginário em que o boicote vegano fosse sendo gradualmente adotado pelos indivíduos sem o apoio de ações coletivas.

Além disso, abandonar o consumo de produtos com determinadas características, isoladamente falando, tem um impacto muito pequeno também em se tratando de oposição à exploração humana. Sem questionar o capitalismo, as hierarquias de seres humanos e a dominação de algumas pessoas por outras, o veganismo de consumo terá um impacto não negativo, mas sim positivo para o sistema, inspirando pequenas reformas que irão aumentar os lucros e favorecer a exploração de mais trabalhadores – como no caso das campanhas para que grandes corporações de fast-food lancem sanduíches veganos, atraindo novos clientes e aumentando o número e carga de trabalho de funcionários.

E com isso, todos os flagelos do capitalismo – hierarquias sociais, dominação, exploração, miséria, concentração de renda e de terras, destruição ambiental, desrespeito aos Direitos Humanos etc. – continuarão ilesos, mesmo com a massificação do estilo de vida vegano. Ou seja, não faz sentido crer que basta adotar o modo de vida vegano para contribuir grandemente por um mundo melhor.

3. Veganismo e política não se misturam.

A consciência de libertação animal que vem com o veganismo é necessariamente carregada de diversos valores político-ideológicos interligados, por mais que veganos de direita tentem negar. Como mostrado no artigo Por que a esquerda libertária precisa abraçar os Direitos Animais, o veganismo enquanto postura abolicionista tem muito em comum com a esquerda libertária, aquela que se opõe tanto à direita como às formas ditatoriais de governos de esquerda.

Quando alguém, mesmo considerando-se de direita, abraça o veganismo, está assimilando valores libertários de esquerda, como a igualdade moral entre os animais humanos e não humanos, o questionamento e rejeição da ordem vigente e das crenças dogmáticas que o sustentam, o combate a formas abusivas e dominadoras de propriedade privada, a libertação de uma minoria política (os animais não humanos), a extensão de diversos direitos humanos aos demais animais e a oposição a uma ideologia conservadora (o carnismo especista). Ou seja, está sendo parcialmente de esquerda, mesmo que se recuse no momento a estender sua convicção política sobre os não humanos à humanidade.

Se o veganismo não tivesse essa carga política, seria nada mais que um estilo de vida baseado em crenças morais pessoais muito subjetivas, algo comparável a uma convicção espiritualista sincrética. E é basicamente esse veganismo baseado em crenças individua(l)is(tas) que a mídia conservadora tem “divulgado” e o capitalismo tem apoiado como nicho de consumo. O mercado lança produtos veganos e muda posturas (como a realização de testes em animais) com a perspectiva de respeitar não os animais, mas sim as “crenças” e valores de seus novos consumidores – aqueles que, não conscientes do peso político do veganismo, aplaudem cada novo produto vegano lançado, seja ele um sanduíche, um xampu ou um cosmético.

Ou seja, dissociar veganismo de política faz o veganismo deixar de ser uma convicção político-ideológica libertária e tornar-se um mero conjunto de crenças e valores pessoais que os outros devem “respeitar”, tal como uma religião. E isso desempodera por completo o ideal da libertação animal.

Vale dizer também que a crença na alienação política do veganismo favorece a aparição de veganos reacionários, que adotam atitudes nada libertadoras, como a misantropia, o machismo, o heterossexismo, a transfobia, o preconceito de classe, a xenofobia, o desprezo aos Direitos Humanos etc. Isso faz desses veganos tão opressores quanto qualquer carnista, reduzindo seu veganismo a um misto de estilo de vida com sistema de crenças subjetivas.

4. O veganismo forma pessoas eticamente melhores.

O veganismo por si só não forma pessoas mais éticas. Nada impede a existência de veganos machistas, racistas, elitistas, grosseiros, intolerantes, manipuladores, egoístas contra seres humanos, estelionatários, estupradores, agressores etc. Da mesma forma, muitos veganos, com rompantes de desvio de caráter, terminam por prejudicar a própria causa vegano-abolicionista, rebaixando e difamando outros veganos e/ou afastando, com intolerância e grosseria, onívoros e vegetarianos não veganos de terem qualquer simpatia e interesse pelo veganismo.

O único “upgrade” ético que o veganismo promove é na relação do indivíduo com os animais não humanos explorados pela pecuária, pela pesca e por outras atividades de exploração animal.

Mitos sobre pesquisas em animais

1. Já existem métodos alternativos à altura de todos os testes em animais existentes.

Na verdade, não existe hoje ainda nenhum modelo de pesquisa que possa substituir totalmente as pesquisas em animais, pelo menos no que tange às pesquisas farmacológicas. Os modelos alternativos hoje existentes em ramos industriais ainda não livrados da dependência de cobaias tendem a ser complementares, correspondendo a determinadas etapas da pesquisa de um medicamento ou de um novo ingrediente de produto de limpeza.

Não se tem ainda um modelo que, por exemplo, simule um organismo complexo o bastante para emular os efeitos pretendidos e colaterais de uma substância química usada como princípio ativo de um medicamento, ou para verificar o progresso de um transtorno psiquiátrico ou uma doença neurodegenerativa não tratada.

Com isso, é necessário pé no chão para perceber que a luta abolicionista é por um amanhã no qual haja um método superior e ético de pesquisa, que dispense o chamado “modelo animal”. E esse método deverá aparecer em algumas décadas, à medida que as capacidades computacionais forem se multiplicando e outros modelos alternativos se tornem cada vez mais complexificados e avançados a ponto de demonstrar, por exemplo, os efeitos de medicamentos.

2. Testes em voluntários humanos podem ser uma alternativa válida para substituir as pesquisas em animais.

Diversos tipos de experimentos biológicos requerem uma amostra suficientemente numerosa de “objetos” de pesquisa – amostra essa que pode ser de centenas ou milhares de cobaias –, assim como um controle rigoroso das variáveis (fatores dependentes ou independentes que causam ou são causados pelo fenômeno a ser estudado) para que haja o mínimo possível de interferências externas ou problemas internos inesperados. E pesquisas em seres humanos voluntários nunca poderão favorecer tais condições.

É extremamente difícil livrar as variáveis da pesquisa da interferência de hábitos humanos individuais (como alimentação, atividades físicas, tabagismo, predisposição genética etc.), assim como obter uma amostra suficientemente grande de seres humanos que compartilhem de características fisiológicas muito similares. Os efeitos de um certo medicamento num voluntário que fuma, bebe e é sedentário serão fatalmente bem distintos dos que vão acometer um que não fuma, não bebe e pratica atividades físicas regularmente.

Com isso, percebe-se que não adianta tentar trocar a escravidão de cobaias não humanas pelo voluntariado humano, porque o problema está nas limitações do(s) modelo(s) de pesquisa vigente(s). Vai ser necessária uma mudança bem mais complexa do que a simples substituição de “objetos” de pesquisa para a abolição da experimentação animal.

3. Deveriam fazer testes farmacológicos em criminosos condenados, especialmente gente como estupradores, pedófilos, homicidas e torturadores de animais.

Este mito, além de ser tecnicamente ineficaz pelos mesmos motivos do mito anterior, é carregado de um severo desvio ético de seus defensores. Isso porque defender “testes em criminosos” é fazer apologia à tortura de seres humanos. Além disso, quem defende esse tipo de providência, está sendo explicitamente a favor de que o mesmo modelo cruel e pouco eficaz de pesquisas biomédicas seja perpetuado, mudando-se não o método, mas sim suas vítimas.

Vale dizer, numa abordagem interdisciplinar, que a oficialização da tortura como pena para crimes, mesmo hediondos, não tem qualquer efeito positivo na diminuição da incidência destes. Pelo contrário, só estará satisfazendo anseios emocionais de uma sociedade autoritária que deseja não o fim da violência, mas sim a mera vingança contra autores de determinados crimes.

E com isso, haverá a criação de mais problemas de Direitos Humanos e a piora dos já vigentes, como o agravamento da criminalidade – já que as causas desta não são resolvidas e os criminosos soltos depois do cumprimento da pena voltarão às ruas ainda mais perigosos e cruéis –, a formação de mais criminosos graças a uma cultura ainda mais violenta, a banalização do desrespeito à vida e integridade alheias, o excessivo empoderamento da polícia – que passa a ser ainda mais cruel, racista e elitista e vitimar ainda mais inocentes do que já vitima hoje –, entre outros.

Até pela interligação entre Direitos Animais e Direitos Humanos, esse mito é claramente absurdo, e contraria o ideal de libertação animal humana e não humana. Desmoraliza o movimento defensor dos Direitos Animais e tira sua razão de defender a erradicação da cultura de violência que legitima crueldades contra seres humanos e não humanos.

4. Os cientistas que fazem pesquisa em animais são sádicos.

Na maioria das vezes, não é sadismo e psicopatia o que leva a maioria dos vivisseccionistas a fazerem suas experiências violando e matando animais, mas sim a racionalização dos procedimentos de tortura, assim como a crença inquestionada na inferioridade moral dos animais não humanos. Ambos fazem esse tipo de cientista enxergar as cobaias meros objetos autômatos, disponíveis para serem violados, manipulados e posteriormente descartados.

Acreditar que pesquisas em animais só são realizadas por psicopatas é ignorar o contexto cultural no qual violências como essa acontecem. Muitas vezes não é nenhum desequilíbrio mental que leva alguém a agredir e matar, mas sim o condicionamento cultural do indivíduo a valores violentos e opressivos. É isso que, por exemplo, leva militares a matarem pessoas – eles são doutrinados a uma cultura na qual se valoriza a hierarquia que comporta “superiores” e “inferiores”, a submissão a ordens de “superiores”, a “virilidade”, o nacionalismo, a exaltação da guerra, a prevalência da disciplina fanática perante a convicção ética do indivíduo etc., não sendo os soldados e os oficiais todos sádicos psicopatas.

Isso se aplica também a machistas que agridem verbal ou fisicamente mulheres nas ruas ou em casa; aos pecuaristas que exploram e matam animais às dezenas, centenas ou milhares; aos pescadores que veem os peixes como meros objetos a serem colhidos da água; e também aos pesquisadores que exploram, torturam e matam animais em laboratórios. O problema não é nenhuma desordem psiquiátrica sadística, mas sim a cultura de hierarquização e violência à qual foram submetidos ao longo de toda a sua vida.

Fonte: Veganagente

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