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O “Garçom Vegetariano”, a ciência, e a zootecnia

16 de outubro de 2013
Paula Brügger
5 min. de leitura
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Ao acessar, na Internet , o universo de comentários a respeito do “Garçom vegetariano” (1), do site “Porta dos fundos”, me chamou a atenção a total falta de informação, a agressividade e a grosseria de alguns defensores ferrenhos da dieta onívora (isto é, carnista, como diria Melanie Joy), em contraste com o alto nível de informação por parte daqueles que advogam as dietas vegetarianas e/ou o veganismo.

São diversas e variadas as boçalidades e impropriedades que grassam nessas postagens, tais como “alfaces que choram”, “de onde vou tirar minhas proteínas”, e argumentos estúpidos como “os animais nasceram para isso” (leia-se, serem explorados e chacinados para agradar o paladar humano).

Observa-se também muito egoísmo (dane-se o animal, meu prazer em primeiro lugar!), declarações debochadas ou cínicas, e opiniões bizarras como achar que o vegetarianismo e o veganismo são quase uma espécie de seita ou religião (“os animais nasceram para nos servir”, isso sim, cheira a dogma religioso!). Há ainda aqueles que “saem pela tangente” e reduzem a escolha pelas dietas vegetarianas a uma decisão de natureza estética, quando o propósito de tal escolha é o tratamento moralmente correto dos animais não-humanos, além, é claro, de uma preocupação com diversas outras questões – todas de natureza ética – como a preservação da integridade dos ecossistemas naturais, justiça social, destinação correta de recursos monetários, etc.

Entre as inúmeras defesas do carnismo, há uma postagem de uma estudante de zootecnia que procura esclarecer o que ela chamou de erros presentes no “Garçom vegetariano”. Sua defesa é pautada, como era de se esperar, em quesitos técnicos.

Mas, qual a importância de esclarecer questões de ordem técnica diante das conclusões da “Declaração de Cambridge sobre Consciência” (2)? Nela, vinte e seis pesquisadores renomados afirmam que os fornecedores compulsórios do que os carnistas chamam de “produtos” são seres que têm consciência e, com isso, são passíveis de sofrimento não apenas físico, mas também psicológico.

Que argumentos carnistas sobrevivem ao fato de que tanto a American Dietetic Association (3), quanto o Conselho Regional de Nutrição (CRN-3/ Brasil) (4), atestam que TODOS os tipos de dietas vegetarianas (incluindo a estrita) são viáveis e podem ser inclusive mais saudáveis do que aquelas que incluem carnes e outros derivados de animais (leite, ovos)?

A zootecnia é uma área do conhecimento que se vale da ciência e da técnica para explorar de forma “racional” (sic) seres sencientes indefesos cujos corpos são perfurados, sofrem amputações sem anestesia, são submetidos a químicos tóxicos, a condições insalubres, etc, sem que, sequer, como assinalado antes, isso seja uma necessidade. Além do sofrimento de seres conscientes (5), a pecuária – produto direto da zootecnia – é um setor econômico que ocupa um dos primeiros lugares em desastres ambientais (6), está ligado ao trabalho escravo, a desmandos políticos e à malversação de dinheiro público (7), entre vários outros problemas. Tudo isso torna esse “produto” totalmente impalatável.

É importante esclarecer que nem as chamadas práticas de “bem-estar” poderão legitimar eticamente essa atividade porque os danos infligidos aos animais, mesmo que ínfimos, não são do interesse deles e sim de quem os subjuga. A verdadeira civilização requer jaulas vazias.

É patética a credulidade de estudantes (e mesmo da população em geral) nesse sistema produtivo: a ciência da exploração animal é exata; os artefatos e técnicas ligados ao “manejo”, bem como os seus operadores são infalíveis; e a fiscalização é rígida! Acreditar em Papai Noel seria menos absurdo.

Mais impressionante, porém, é o poder de lavagem cerebral subjacente ao discurso supostamente técnico (8) – como “Genética, Nutrição e Manejo” – cujo propósito é a manutenção de uma ciência especista e antropocêntrica dentro da qual os outros animais são meros recursos (lucrativos) dessa grande fábrica que é a natureza.

Recomendo aos estudantes e profissionais de zootecnia que, da próxima vez que forem lidar com seus “objetos de estudo”, olhem nos olhos deles(as). Prestem atenção e verão que cada animal-máquina é na verdade um sujeito-de-uma vida que experimenta emoções e sentimentos, como medo, tédio e até desespero. Eles não são apenas números, ou elementos de estatísticas.

Assim como em outros fóruns de discussão sobre esse assunto, fica claro que os carnistas não guiam suas relações com os animais nem pelo que há disponível de conhecimento científico e ético-filosófico sobre a senciência animal (ou a saúde humana), nem pelas informações provenientes de seus próprios órgãos dos sentidos (alfaces não gritam, porcos sim!). Vale destacar que todas essas vias de informação sobre a relação humanos-animais levam a uma mesma conclusão: os animais são seres sencientes, passíveis de sofrimento, e não devem ser escravizados e mortos. É incrível, portanto, a engenharia mental que fazem para permanecer em suas zonas de conforto porque, mudar, “não agrega qualidade de vida”, como diria um conhecido meu (sic).

Parabenizo aqueles que postaram mensagens inteligentes, baseadas nas inúmeras evidências acerca da insustentabilidade ética do carnismo e, sobretudo, a equipe do “Porta dos Fundos”, pela escolha do tema, esperando que esse espaço lúdico ajude a fomentar uma nova consciência acerca da nossa relação com os outros animais.

Notas/links relacionados úteis:

(1): http://www.portadosfundos.com.br/garcom-vegetariano/

(2): http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf; http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/nao-e-mais-possivel-dizer-que-nao-sabiamos-diz-philip-low

(3): http://www.vrg.org/nutrition/2009_ADA_position_paper.pdf

(4): http://www.crn3.org.br/legislacao/doc_pareceres/dra_denise.pdf

(5): http://www.youtube.com/watch?v=Zo-9XJNAWqw (Glass walls /Paul McCartney); http://www.youtube.com/watch?v=FDvw6hhjTdI (From farm to fridge)

(6): ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/010/a0701e/a0701e07.pdf (Livestock’s long shadow/FAO); http://br.boell.org/downloads/gado_brasil_sergio_schlesinger.pdf (Onde pastar?/FASE)

(7): http://reporterbrasil.org.br/2012/09/quot-moendo-gente-quot-mostra-as-condicoes-de-trabalho-nos-frigorificos-do-brasil/ (Moendo gente/Repórter Brasil)

(8): Digo “supostamente técnico” porque nada é meramente técnico. Por trás de cada técnica – e mesmo de cada teoria cientifica – existe um paradigma mais amplo que é o pano de fundo sobre o qual são erigidas as teorias e os procedimentos técnicos delas decorrentes. Não há neutralidade no conhecimento.

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