EnglishEspañolPortuguês

Amizade canina

26 de agosto de 2013
4 min. de leitura
A-
A+
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Há quem zombe da afeição pelos bichos. Mas o fato é que animais como os cachorros colocam na gente o senso da nossa própria humanidade, quando forma-se entre eles e nós um elo comunicativo que desafia certas proposições da linguística e da filosofia.

Conviver com um cachorero é como ter uma paixão. Lá estamos nós, nos achando os melhores do mundo, os reis da cocada preta, no alto da nossa prepotência juvenil e adolescente, quando então aparece a garota. A garota faz “gato-e-sapato” da gente e, graças a ela, começamos a pensar que “Ops, as coisas não são exatamente como achei que fossem, nem sempre a razão é minha”. Fazemos um esforço enorme para ganhar a garota, e ganhamos. Queremos aprender mais. O amor é um aprendizado de nós mesmos. Todos os dias contam.

Com os nossos cachorros, acontece a mesma coisa. No colégio, as aulas de biologia são diretas, “O homem é o único animal racional blá blá blá”. “Vá lá”, você pensa, “aceito”. Mas a aula vai mais longe, “O homem é o único ser vivo detentor de linguagem”. Você leva isso a sério, até ter um cachorro.

Quando o seu cachorro chega, você logo percebe que ele entende os seus sinais. Ele faz desaforos, inclusive. E teimosias. A suposta burrice do animal se torna um mito. Você se dá conta de que o seu cachorro é capaz de fingir que não entende. Chega a ser incrível. Ele é mais do que inteligente. É astuto. À medida que o tempo passa, você vê que ele vive de olho em você, e que ele é um sensitivo sentimental. O coração dele é o coração de um gigante. Ele não conhece mágoa nem rancor. Se acontece de você chorar, por algum motivo, seu cachorro está plantado à sua frente, olhando fixamente para você, raspando uma pata na sua perna. Você lembra da sua professora de biologia e pensa “Ok, posso até aceitar que o homem seja o único animal capaz de articular uma linguagem fonética. Mas é claro que não é o único a ter linguagem”. Você pensa em J. M. Coetzee, em Elisabeth Costello e Peter Singer. Pensa em todas as atrocidades que andamos fazendo com o animais. Você se dá conta de que, bem alfabetizado, seu cachorro seria capaz de escrever um romance, melhor que as suas crônicas semanais para um portal de notícias.

Sua relação com o seu cachorro se torna rapidamente uma relação de intenso companheirismo e diálogo. Você e ele começam a fazer passeios noturnos exploratórios. Ele nunca se afasta muito. Quando se afasta, é para fuçar do outro lado da rua. Logo, se ele acha alguma coisa, ele te chama, latindo ou simplesmente ficando ereto, no meio da noite. De longe, nessas horas, você admira a exuberância altiva do bicho. Isso sem falar dos momentos em que ele pleiteia ou sugere um caminho. Ele para numa esquina, olha alternadamente para você e para a direção que quer tomar. A cidade é de vocês, nesses passeios. Vocês andam pelos becos, mapeiam os moradores de rua, saúdam os garçons e os vigias.

Assim, um dia você entende que o seu cachorro está falando com você há muito tempo, sem dizer uma palavra. Você descobre que ele sempre vai estar nas aventuras que você quiser fazer, que ele nunca dirá “não”, até quando ele aguentar. Vocês fazem mil vezes tudo o que duas espécies podem fazer juntas: viajam, vão ao parque. Na areia da praia, ele mostra uns instintos de tatu que você não conhecia totalmente. De volta ao casebre, você deixa ele lamber sua garota. Quando ela se deita, o malandro toma o seu lugar na cama pra ganhar o carinho dela.

Você jamais admitiria que isso acontecesse quando ela não está, mas ele seduziu sua mulher e agora você tem duas fontes para a reconfiguração intensiva do seu caráter: dois amores lhe que ajudam a perceber os limites da sua própria humanidade, a bobajada sobre ego e autoridade, as teorias sobre as fronteiras entre gentes e bichos, razão, emoção.

Um dia, pouco antes de aprender o português, seu cachorro simplesmente morre, e você não é mais o mesmo. Ele entrou na sua vida e expandiu no seu coração o significado da palavra homem. Ele sai, e você fica. Você sempre o levará dentro de si, um pedaço espelhado da sua própria natureza.

*por José Guilherme Pereira Leite

Fonte: Yahoo

Você viu?

Ir para o topo